No livro Gabriela Cravo e Canela, de Jorge Amado, Gabriela é uma moça pobre que Nacib conhece e contrata para cozinheira.
Quem é Gabriela?
Ela surge difícil de descortinar e impossível de perceber. Quando aparece pela primeira vez, vem tão coberta de poeira que "era impossível distinguir seus traços". E quando Nacib a conhece, encontra-a com "tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade". Já este surgimento nos diz algo sobre o que é Gabriela, porque Nacib demora a vê-la de facto; conhece-a primeiro, mas só a descobre depois, leva-a consigo para casa, mas demora a trazê-la para junto de si. E é assim porque Gabriela vem indiscernível atrás da poeira. Aparece sem aparecer, porque enquanto não for vista não existe. Existe somente por fora, nos seus olhos que "brilhavam enquanto ela ria", no "riso claro, cristalino", no "passo de dança". Escondida, Gabriela não existe, porque ela existe mais nas coisas fora de si do que dentro de si. Quando Nacib a desperta espantado com a beleza acabada de descobrir e lhe vê o sorriso, pensa que "toda a sala pareceu sorrir com ela". É nestas impressões que Gabriela vive verdadeiramente, é no que acontece às coisas e às pessoas quando as encontra que ela acontece, porque ela é muito mais o que acontece aos outros do que o que acontece dentro dela.
Gabriela não é propriamente vazia. Ela está simplesmente noutro lugar e é como se, incapaz de viver presa seja onde for, incluindo em si mesma, ela tivesse já partido há muito para morar em tudo o que visita brevemente. Esta ausência torna-a leve. De entre os vários trabalhadores cansados do longo percurso até Ilhéus, ela é a única que "parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada". Não aprendeu a andar, como não aprende seja o que for. Tudo o que faz, fá-lo naturalmente: são coisas que lhe acontecem, como ela acontece às coisas e às pessoas. Por isso desliza quando devia andar e dança quando devia chegar a algum lado. A dança é algo que lhe acontece como o perfume de cravo ou a cor de canela.
As visitas de Gabriela são breves, mesmo quando perduram, porque já vêm condenadas a ter um fim. São sempre visitas, porque ela não se agarra a lado algum. Quando parte com Nacib, vai "já esquecida de Clemente", o homem com quem se deitara nas noites anteriores. As coisas passam por ela como ela pelas coisas: esquece-as rapidamente, deixa-as partir como ela parte, sem demoras nem remorsos. Mesmo quando diz que “é melhor não bulir com os mortos”, di-lo, não como quem tem medo deles ou lhes quer fazer vontades, mas como quem quer simplesmente deixá-los partir. Clemente pensa nela, tem saudades, quere-a de volta. Julga que a trará para sempre consigo, que ela lhe faz falta. Mas está enganado, como estará Nacib mais tarde: não a leva consigo porque nunca a teve, só recebeu a sua visita. Nem ela lhe faz falta porque o que ele quer dela foi ele mesmo que imaginou. Com Gabriela, como com todas as mulheres livres, é o homem que pelo seu desejo lhe inventa a ausência. Porque ela nunca pode chegar a ausentar-se do lugar onde nunca morou.
As visitas de Gabriela são breves, ainda que duradouras, mas ela aparece sempre inteira. Abandona Clemente "como se as noites que dormiram juntos não contassem, como se apenas se conhecessem". Mas enquanto fazia amor com ele "se entregava toda, abandonada nas mãos dele, morrendo em suspiros, gemendo e rindo". Entrega-se "toda" enquanto faz amor porque nada tem dentro de si para esconder ou preservar. Sempre noutro lugar que não dentro de si, chega inteira ao encontro do amor e parte também inteira, sem deixar o que quer que seja atrás de si, para chegar cheia de tudo a outro encontro. E é como se nascesse em cada visita e ganhasse vida a cada chamamento, como se respirasse pelo contacto. Sem nada no seu interior para ocultar ou guardar apenas para si, também não pode desejar guardar dos outros o que quer que seja, nem pode compreender a posse. Por isso não consegue mais tarde entender verdadeiramente o ciúme de Nacib nem se importa de o saber deitado com outras mulheres. Esse é, afinal, o verdadeiro segredo do seu “corpo de mistério diariamente renovado”: o facto de não trazer segredo algum.
Inteira em qualquer contacto, os olhos de Gabriela brilham quando ela ri porque o seu riso é tudo o que ela tem. O mesmo se pode dizer de qualquer um dos seus outros encantos: a voz "arrastada e quente", o "ar ingênuo" ou a "nudez cândida". Cada uma destas coisas é tudo o que ela tem porque ela aparece toda em cada uma delas. Está inteira em cada momento, cada toque, cada visita. O seu feitiço mora neste paradoxo de nunca trazer nada consigo e mostrar tanta coisa (tudo o que tem) em cada um dos seus pormenores. Se os seus olhos conseguem ser "ora tímidos e cândidos, ora insolentes e provocadores", não é porque ela tenha algo a esconder, mas sim porque tem tudo a mostrar e mostra tudo de cada vez. E em cada vez, ao mesmo tempo, convoca tudo ao seu encontro: quando faz amor à noite com Nacib, abraça todos os “moços bonitos” que a galanteiam durante o dia.
Também no amor Gabriela é leve. O amor de Clemente, de Nacib e dos outros homens em geral é pesado (exceptuando o caso de Tonico Bastos, mas a leveza deste não é a do pássaro, e sim a de um parasita). Gabriela, ao invés, não prende, não assenta e não proíbe. O apaixonado Romeo queixa-se a Mercutio de não poder dançar porque a sua alma de chumbo o prende ao chão (Shakespeare, Romeo and Juliet). Gabriela não compreende o amor de chumbo de Nacib e Clemente, porque, como Mercutio, ela acha que os enamorados deveriam poder voar com as asas do cupido. Por isso o seu amor, tão carnal, não é terreno. E assim não admira como consegue dormir com tantos homens em simultâneo, bastando-lhe pensar neles de cada vez: “com um moço dormir. Com outro moço sonhar”. O seu amor leve basta-se com pensamentos.
Se até o amor é vivido por Gabriela com leveza, é porque ela não conhece outro modo de viver. Se dança em vez de andar, se em vez dos passos desliza, é porque somente sabe ser leve. Por isso chega à noite “fresca e descansada”, apesar do trabalho ao longo dia. Também por isso sorri em todos os instantes, mesmo a dormir. A descontracção do seu sorriso, mais uma vez, não mora unicamente nela, mas no encontro com as coisas: quando a vê sorrir, parece a Nacib ver toda a sala sorrir com ela; mas não é só impressão, é o real encontro de Gabriela com as coisas à sua volta. E com as pessoas: quando surge, o seu sorriso vai-se “espalhando dos seus lábios para todas as bocas”.
O seu riso é “sem motivo”, porque ela é uma “mulher sem explicação”. Motivos e razões são causas que prendem, passado que se arrasta. Gabriela não se prende nem pertence a lugar algum, porque ela não tem uma história, tem histórias. Passou momentos duros, mas basta-lhe cantar e logo “esquece os maus pedaços”. “Só no mundo”, não tem verdadeiras ligações. Não está presa a um motivo ou a um objectivo, não procura sequer um lugar; visita, sim, todos os lugares. Por isso o seu riso é “inesperado”; vem sem explicação, como ela. E sem significado: quando está prestes a fazer amor com ela e a vê sorrir, Nacib não sabe se aquilo “era de medo ou era para encorajar”. Na verdade, porque não traz razões nem propósitos, o seu gesto sorridente pode significar tudo isso em simultâneo. É mais uma vez ela inteira em cada pormenor: quem nada esconde e coloca tudo o que tem em tudo o que mostra, pode em cada coisa ser ela e o seu contrário.
Ri também quando conta coisas sérias, porque, sem o hábito de pensar, Gabriela sabe muitas coisas das que não se pensam: sabe que é no meio das coisas sérias que o riso faz mais sentido. Assegura constantemente que “importa não” quando lhe falam de algo com que se deveria preocupar, porque sabe que nunca chegamos verdadeiramente a possuir seja o que for, e por isso não faz sentido ter medo de perder o que quer que seja. Não consegue aprender jogos porque quem vive a brincar não precisa que lhe ensinem regras. Sabe conquistar os animais porque atrás da bondade que lhes dedica não há interesse, medo ou dúvida.
De regras, Gabriela não sabe – a verdadeira simplicidade não joga com condições. Nacib preocupa-se com o limite da fidelidade de Gabriela, já que “toda a mulher fiel tem um”. O que ele não percebe é que o problema é o inverso: não o de ela ter realmente um limite, mas o de não ter nenhum. Depois de trair o marido e de ser espancada, tem pena dele continua a achá-lo bom, pensando que não fez aquilo para o ofender ou magoá-lo. A estupidez de não perceber verdadeiramente o que fez de errado nasce na incapacidade de se desdobrar: inteira em tudo o que faz, Gabriela não pode estar com Tonico Bastos e pensar em Nacib longe dali. Só desejos e emoções, não consegue pensar para avaliar os seus gestos. Gabriela é natureza, não convenções. Não é verdade que esteja para lá do bem e do mal, como se sugere por vezes. Pelo contrário, demonstra bondade constantemente e, embora sem más intenções ou sentimentos, traz a maldade da estupidez. Não tem outra senão essa, mas essa é já bastante para chamar tragédias. Por isso ninguém a define tão bem como Clemente: “era uma cobra de vidro, não tinha veneno, mas semeava aflições só de passar entre os homens como um mistério, um milagre”. E, no entanto, se por milagre entendermos o que não pode ser explicado pelas leis naturais, Gabriela não será milagre nenhum, já que ela não é mais (nem menos) do que natureza. Ou talvez ela assim nos lembre aquilo que, presos na inteligência limitadora de tantos conhecimentos e explicações, tendemos a esquecer com facilidade: que a natureza é o verdadeiro milagre.
Quem é Gabriela?
Ela surge difícil de descortinar e impossível de perceber. Quando aparece pela primeira vez, vem tão coberta de poeira que "era impossível distinguir seus traços". E quando Nacib a conhece, encontra-a com "tamanha sujeira que era impossível ver-lhe as feições e dar-lhe idade". Já este surgimento nos diz algo sobre o que é Gabriela, porque Nacib demora a vê-la de facto; conhece-a primeiro, mas só a descobre depois, leva-a consigo para casa, mas demora a trazê-la para junto de si. E é assim porque Gabriela vem indiscernível atrás da poeira. Aparece sem aparecer, porque enquanto não for vista não existe. Existe somente por fora, nos seus olhos que "brilhavam enquanto ela ria", no "riso claro, cristalino", no "passo de dança". Escondida, Gabriela não existe, porque ela existe mais nas coisas fora de si do que dentro de si. Quando Nacib a desperta espantado com a beleza acabada de descobrir e lhe vê o sorriso, pensa que "toda a sala pareceu sorrir com ela". É nestas impressões que Gabriela vive verdadeiramente, é no que acontece às coisas e às pessoas quando as encontra que ela acontece, porque ela é muito mais o que acontece aos outros do que o que acontece dentro dela.
Gabriela não é propriamente vazia. Ela está simplesmente noutro lugar e é como se, incapaz de viver presa seja onde for, incluindo em si mesma, ela tivesse já partido há muito para morar em tudo o que visita brevemente. Esta ausência torna-a leve. De entre os vários trabalhadores cansados do longo percurso até Ilhéus, ela é a única que "parecia não sentir a caminhada, seus pés como que deslizando pela picada". Não aprendeu a andar, como não aprende seja o que for. Tudo o que faz, fá-lo naturalmente: são coisas que lhe acontecem, como ela acontece às coisas e às pessoas. Por isso desliza quando devia andar e dança quando devia chegar a algum lado. A dança é algo que lhe acontece como o perfume de cravo ou a cor de canela.
As visitas de Gabriela são breves, mesmo quando perduram, porque já vêm condenadas a ter um fim. São sempre visitas, porque ela não se agarra a lado algum. Quando parte com Nacib, vai "já esquecida de Clemente", o homem com quem se deitara nas noites anteriores. As coisas passam por ela como ela pelas coisas: esquece-as rapidamente, deixa-as partir como ela parte, sem demoras nem remorsos. Mesmo quando diz que “é melhor não bulir com os mortos”, di-lo, não como quem tem medo deles ou lhes quer fazer vontades, mas como quem quer simplesmente deixá-los partir. Clemente pensa nela, tem saudades, quere-a de volta. Julga que a trará para sempre consigo, que ela lhe faz falta. Mas está enganado, como estará Nacib mais tarde: não a leva consigo porque nunca a teve, só recebeu a sua visita. Nem ela lhe faz falta porque o que ele quer dela foi ele mesmo que imaginou. Com Gabriela, como com todas as mulheres livres, é o homem que pelo seu desejo lhe inventa a ausência. Porque ela nunca pode chegar a ausentar-se do lugar onde nunca morou.
As visitas de Gabriela são breves, ainda que duradouras, mas ela aparece sempre inteira. Abandona Clemente "como se as noites que dormiram juntos não contassem, como se apenas se conhecessem". Mas enquanto fazia amor com ele "se entregava toda, abandonada nas mãos dele, morrendo em suspiros, gemendo e rindo". Entrega-se "toda" enquanto faz amor porque nada tem dentro de si para esconder ou preservar. Sempre noutro lugar que não dentro de si, chega inteira ao encontro do amor e parte também inteira, sem deixar o que quer que seja atrás de si, para chegar cheia de tudo a outro encontro. E é como se nascesse em cada visita e ganhasse vida a cada chamamento, como se respirasse pelo contacto. Sem nada no seu interior para ocultar ou guardar apenas para si, também não pode desejar guardar dos outros o que quer que seja, nem pode compreender a posse. Por isso não consegue mais tarde entender verdadeiramente o ciúme de Nacib nem se importa de o saber deitado com outras mulheres. Esse é, afinal, o verdadeiro segredo do seu “corpo de mistério diariamente renovado”: o facto de não trazer segredo algum.
Inteira em qualquer contacto, os olhos de Gabriela brilham quando ela ri porque o seu riso é tudo o que ela tem. O mesmo se pode dizer de qualquer um dos seus outros encantos: a voz "arrastada e quente", o "ar ingênuo" ou a "nudez cândida". Cada uma destas coisas é tudo o que ela tem porque ela aparece toda em cada uma delas. Está inteira em cada momento, cada toque, cada visita. O seu feitiço mora neste paradoxo de nunca trazer nada consigo e mostrar tanta coisa (tudo o que tem) em cada um dos seus pormenores. Se os seus olhos conseguem ser "ora tímidos e cândidos, ora insolentes e provocadores", não é porque ela tenha algo a esconder, mas sim porque tem tudo a mostrar e mostra tudo de cada vez. E em cada vez, ao mesmo tempo, convoca tudo ao seu encontro: quando faz amor à noite com Nacib, abraça todos os “moços bonitos” que a galanteiam durante o dia.
Também no amor Gabriela é leve. O amor de Clemente, de Nacib e dos outros homens em geral é pesado (exceptuando o caso de Tonico Bastos, mas a leveza deste não é a do pássaro, e sim a de um parasita). Gabriela, ao invés, não prende, não assenta e não proíbe. O apaixonado Romeo queixa-se a Mercutio de não poder dançar porque a sua alma de chumbo o prende ao chão (Shakespeare, Romeo and Juliet). Gabriela não compreende o amor de chumbo de Nacib e Clemente, porque, como Mercutio, ela acha que os enamorados deveriam poder voar com as asas do cupido. Por isso o seu amor, tão carnal, não é terreno. E assim não admira como consegue dormir com tantos homens em simultâneo, bastando-lhe pensar neles de cada vez: “com um moço dormir. Com outro moço sonhar”. O seu amor leve basta-se com pensamentos.
Se até o amor é vivido por Gabriela com leveza, é porque ela não conhece outro modo de viver. Se dança em vez de andar, se em vez dos passos desliza, é porque somente sabe ser leve. Por isso chega à noite “fresca e descansada”, apesar do trabalho ao longo dia. Também por isso sorri em todos os instantes, mesmo a dormir. A descontracção do seu sorriso, mais uma vez, não mora unicamente nela, mas no encontro com as coisas: quando a vê sorrir, parece a Nacib ver toda a sala sorrir com ela; mas não é só impressão, é o real encontro de Gabriela com as coisas à sua volta. E com as pessoas: quando surge, o seu sorriso vai-se “espalhando dos seus lábios para todas as bocas”.
O seu riso é “sem motivo”, porque ela é uma “mulher sem explicação”. Motivos e razões são causas que prendem, passado que se arrasta. Gabriela não se prende nem pertence a lugar algum, porque ela não tem uma história, tem histórias. Passou momentos duros, mas basta-lhe cantar e logo “esquece os maus pedaços”. “Só no mundo”, não tem verdadeiras ligações. Não está presa a um motivo ou a um objectivo, não procura sequer um lugar; visita, sim, todos os lugares. Por isso o seu riso é “inesperado”; vem sem explicação, como ela. E sem significado: quando está prestes a fazer amor com ela e a vê sorrir, Nacib não sabe se aquilo “era de medo ou era para encorajar”. Na verdade, porque não traz razões nem propósitos, o seu gesto sorridente pode significar tudo isso em simultâneo. É mais uma vez ela inteira em cada pormenor: quem nada esconde e coloca tudo o que tem em tudo o que mostra, pode em cada coisa ser ela e o seu contrário.
Ri também quando conta coisas sérias, porque, sem o hábito de pensar, Gabriela sabe muitas coisas das que não se pensam: sabe que é no meio das coisas sérias que o riso faz mais sentido. Assegura constantemente que “importa não” quando lhe falam de algo com que se deveria preocupar, porque sabe que nunca chegamos verdadeiramente a possuir seja o que for, e por isso não faz sentido ter medo de perder o que quer que seja. Não consegue aprender jogos porque quem vive a brincar não precisa que lhe ensinem regras. Sabe conquistar os animais porque atrás da bondade que lhes dedica não há interesse, medo ou dúvida.
De regras, Gabriela não sabe – a verdadeira simplicidade não joga com condições. Nacib preocupa-se com o limite da fidelidade de Gabriela, já que “toda a mulher fiel tem um”. O que ele não percebe é que o problema é o inverso: não o de ela ter realmente um limite, mas o de não ter nenhum. Depois de trair o marido e de ser espancada, tem pena dele continua a achá-lo bom, pensando que não fez aquilo para o ofender ou magoá-lo. A estupidez de não perceber verdadeiramente o que fez de errado nasce na incapacidade de se desdobrar: inteira em tudo o que faz, Gabriela não pode estar com Tonico Bastos e pensar em Nacib longe dali. Só desejos e emoções, não consegue pensar para avaliar os seus gestos. Gabriela é natureza, não convenções. Não é verdade que esteja para lá do bem e do mal, como se sugere por vezes. Pelo contrário, demonstra bondade constantemente e, embora sem más intenções ou sentimentos, traz a maldade da estupidez. Não tem outra senão essa, mas essa é já bastante para chamar tragédias. Por isso ninguém a define tão bem como Clemente: “era uma cobra de vidro, não tinha veneno, mas semeava aflições só de passar entre os homens como um mistério, um milagre”. E, no entanto, se por milagre entendermos o que não pode ser explicado pelas leis naturais, Gabriela não será milagre nenhum, já que ela não é mais (nem menos) do que natureza. Ou talvez ela assim nos lembre aquilo que, presos na inteligência limitadora de tantos conhecimentos e explicações, tendemos a esquecer com facilidade: que a natureza é o verdadeiro milagre.