Na série Stranger Things (The Duffer Brothers), Mike, Will, Dustin e Lucas são pré-adolescentes fãs de jogos de tabuleiros, máquinas de jogos e filmes de ficção científica, estudiosos, vítimas de bullying e, em geral, impopulares na escola. Geeks e nerds por definição. Quando na sua cidade surgem ameaças sobrenaturais, porém, revelam-se os mais aptos a combatê-las.
Nerds no mundo escolar, Mike, Will, Dustin e Lucas nunca ganharão um concurso de popularidade. No mundo de Stranger Things, são heróis. Na vida social, nada do que acontece os envolve, mas aqui, estão no centro das ocorrências.
Nerds no mundo escolar, Mike, Will, Dustin e Lucas nunca ganharão um concurso de popularidade. No mundo de Stranger Things, são heróis. Na vida social, nada do que acontece os envolve, mas aqui, estão no centro das ocorrências.
Os rapazes precisam de um mundo de fantasia
para viverem? Colaria bem na série a revelação de que um deles – ou todos –
sonharam esta aventura em que são eles os heróis e as pessoas que habitualmente
não lhes prestam atenção dependem agora deles para serem salvas. Parece-nos,
com efeito, facilmente descortinável um desajustamento entre os jogos,
interesses e hábitos do grupo e a realidade terrena do quotidiano. Os rapazes
não estão bem adaptados a um mundo sem magia, onde as preocupações têm que ver
com roupas, penteados e desporto, em vez de criaturas comedoras de pessoas, mundos
paralelos e poderes fantásticos.
A fantasia, de resto, mantém-se restringida a
um espaço limitado. Só um círculo estrito de pessoas lida com as estranhas
ameaças e só um grupo determinado tem delas conhecimento. Todas as outras se
satisfazem com explicações sensatas ou não chegam sequer a aperceber-se do que
quer que seja. A magia continua a ser coisa apenas dos rapazes – deles e dos
poucos que podem partilhar o seu heroísmo. Em geral, o mundo vive bem sem
magia. Este grupo precisa dela, porém, para triunfar. As “coisas mais
estranhas” são as únicas verdadeiramente normais para os rapazes. É só com elas
que eles realmente conseguem lidar.
O que parece acontecer aqui é, no fundo, uma
inversão encenada dos mundos em confronto: o estranho e o fantástico ocupam o
lugar do real. Monstros e espíritos deixam de ser criaturas de jogos e cartas para se
tornarem adversários mundanos. Especulações fantasiosas resultam em soluções
práticas para problemas dramáticos. Curiosamente, tudo isso surge como que
elaborado à medida dos miúdos peritos em jogos de tabuleiro, fãs de ficção científica
e entusiastas da fantasia. Monstros e desafios trazem perigos sérios, mas estes
jovens passaram a vida a preparar-se para isto. Qualquer nerd com espírito de
aventura, no fundo, tem o potencial de um herói: só precisa do monstro certo.
É por aqui que começamos a apreender a lição
invertida de Stranger Things. Sem
monstros para combater, todo o herói resulta inadaptado. Sem fantasmas para
perseguir, um caça-fantasmas está condenado a ressaltar como os rapazes na escola quando apareceram disfarçados: ridículos. Quando, todavia, monstros irrompem pelas paredes, quando espíritos ominosos se apoderam do corpo de crianças ou quando se abrem portas para outras dimensões, a expertise dos geeks revela-se fundamental e os seus conhecimentos, subitamente, são mais que pertinentes.
O que é, afinal, um nerd senão um herói sem contexto? Todos poderíamos ter sido miúdos campeões, bravos salvadores do mundo, se ao menos tivéssemos tido os monstros certos. Mas os monstros não seriam monstros se aparecessem quando é preciso. É por isso que precisamos de os inventar. Quando o adolescente David Copperfield (no livro homónimo de Charles Dickens), querendo impressionar a sua adorada Emily, dá por si sem monstros para combater, vê-se na necessidade de os inventar, e sonha com dragões toda a noite. As perigosas ameaças de Stranger Things parecem todas estranhamente saídas do universo de fantasia que aqueles rapazes cultivam. Podiam ter sido eles a inventá-las. E, de certa forma, foram – porque todos temos direito aos nossos monstros.
A verdadeira lição, porém, vem depois do heroísmo. Os rapazes – com a ajuda de alguns adultos feitos à medida de miúdos – são protagonistas graças a todas as ocorrências fantasiosas, todos os perigos irreais que os ameaçam. Tornam-se importantes nesse contexto e quando o quotidiano retoma a sua normalidade terrena eles são geeks de novo, individualidades perdidas como pontos excêntricos na corrente social homogeneizadora. Mas pensar que tudo volta a ser como antes é falhar em compreender a mensagem. E esta não é a de que as coisas mudaram; na verdade, eles não passam a ser heróis daqui em diante, estas aventuras não serviram para revelar as suas aptidões escondidas, o seu valor oculto ou a coragem que eles guardavam. Serviram apenas para mostrar que o mais importante eles sempre tiveram, que eles sempre foram os heróis que os monstros lhes vieram pedir que se tornassem. Já se tinham uns aos outros, já eram amigos, leais e honestos. Já se apoiavam, brincavam e divertiam. Nos seus jogos, já combatiam, arriscavam e salvavam-se. Os perigos e as criaturas deram-lhes o contexto certo, mas eles sempre tiveram o significado. Ofereceram-lhes uma história, mas antes disso já eles eram, como sempre foram, as personagens.
O que é, afinal, um nerd senão um herói sem contexto? Todos poderíamos ter sido miúdos campeões, bravos salvadores do mundo, se ao menos tivéssemos tido os monstros certos. Mas os monstros não seriam monstros se aparecessem quando é preciso. É por isso que precisamos de os inventar. Quando o adolescente David Copperfield (no livro homónimo de Charles Dickens), querendo impressionar a sua adorada Emily, dá por si sem monstros para combater, vê-se na necessidade de os inventar, e sonha com dragões toda a noite. As perigosas ameaças de Stranger Things parecem todas estranhamente saídas do universo de fantasia que aqueles rapazes cultivam. Podiam ter sido eles a inventá-las. E, de certa forma, foram – porque todos temos direito aos nossos monstros.
A verdadeira lição, porém, vem depois do heroísmo. Os rapazes – com a ajuda de alguns adultos feitos à medida de miúdos – são protagonistas graças a todas as ocorrências fantasiosas, todos os perigos irreais que os ameaçam. Tornam-se importantes nesse contexto e quando o quotidiano retoma a sua normalidade terrena eles são geeks de novo, individualidades perdidas como pontos excêntricos na corrente social homogeneizadora. Mas pensar que tudo volta a ser como antes é falhar em compreender a mensagem. E esta não é a de que as coisas mudaram; na verdade, eles não passam a ser heróis daqui em diante, estas aventuras não serviram para revelar as suas aptidões escondidas, o seu valor oculto ou a coragem que eles guardavam. Serviram apenas para mostrar que o mais importante eles sempre tiveram, que eles sempre foram os heróis que os monstros lhes vieram pedir que se tornassem. Já se tinham uns aos outros, já eram amigos, leais e honestos. Já se apoiavam, brincavam e divertiam. Nos seus jogos, já combatiam, arriscavam e salvavam-se. Os perigos e as criaturas deram-lhes o contexto certo, mas eles sempre tiveram o significado. Ofereceram-lhes uma história, mas antes disso já eles eram, como sempre foram, as personagens.