E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 11 de março de 2018

Monstros à medida



  Na série Stranger Things (The Duffer Brothers), Mike, Will, Dustin e Lucas são pré-adolescentes fãs de jogos de tabuleiros, máquinas de jogos e filmes de ficção científica, estudiosos, vítimas de bullying e, em geral, impopulares na escola. Geeks e nerds por definição. Quando na sua cidade surgem ameaças sobrenaturais, porém, revelam-se os mais aptos a combatê-las.

  Nerds no mundo escolar, Mike, Will, Dustin e Lucas nunca ganharão um concurso de popularidade. No mundo de Stranger Things, são heróis. Na vida social, nada do que acontece os envolve, mas aqui, estão no centro das ocorrências.
  Os rapazes precisam de um mundo de fantasia para viverem? Colaria bem na série a revelação de que um deles – ou todos – sonharam esta aventura em que são eles os heróis e as pessoas que habitualmente não lhes prestam atenção dependem agora deles para serem salvas. Parece-nos, com efeito, facilmente descortinável um desajustamento entre os jogos, interesses e hábitos do grupo e a realidade terrena do quotidiano. Os rapazes não estão bem adaptados a um mundo sem magia, onde as preocupações têm que ver com roupas, penteados e desporto, em vez de criaturas comedoras de pessoas, mundos paralelos e poderes fantásticos.
  A fantasia, de resto, mantém-se restringida a um espaço limitado. Só um círculo estrito de pessoas lida com as estranhas ameaças e só um grupo determinado tem delas conhecimento. Todas as outras se satisfazem com explicações sensatas ou não chegam sequer a aperceber-se do que quer que seja. A magia continua a ser coisa apenas dos rapazes – deles e dos poucos que podem partilhar o seu heroísmo. Em geral, o mundo vive bem sem magia. Este grupo precisa dela, porém, para triunfar. As “coisas mais estranhas” são as únicas verdadeiramente normais para os rapazes. É só com elas que eles realmente conseguem lidar.
  O que parece acontecer aqui é, no fundo, uma inversão encenada dos mundos em confronto: o estranho e o fantástico ocupam o lugar do real. Monstros e espíritos deixam de ser criaturas de jogos e cartas para se tornarem adversários mundanos. Especulações fantasiosas resultam em soluções práticas para problemas dramáticos. Curiosamente, tudo isso surge como que elaborado à medida dos miúdos peritos em jogos de tabuleiro, fãs de ficção científica e entusiastas da fantasia. Monstros e desafios trazem perigos sérios, mas estes jovens passaram a vida a preparar-se para isto. Qualquer nerd com espírito de aventura, no fundo, tem o potencial de um herói: só precisa do monstro certo.
  É por aqui que começamos a apreender a lição invertida de Stranger Things. Sem monstros para combater, todo o herói resulta inadaptado. Sem fantasmas para perseguir, um caça-fantasmas está condenado a ressaltar como os rapazes na escola quando apareceram disfarçados: ridículos. Quando, todavia, monstros irrompem pelas paredes, quando espíritos ominosos se apoderam do corpo de crianças ou quando se abrem portas para outras dimensões, a expertise dos geeks revela-se fundamental e os seus conhecimentos, subitamente, são mais que pertinentes.
  O que é, afinal, um nerd senão um herói sem contexto? Todos poderíamos ter sido miúdos campeões, bravos salvadores do mundo, se ao menos tivéssemos tido os monstros certos. Mas os monstros não seriam monstros se aparecessem quando é preciso. É por isso que precisamos de os inventar. Quando o adolescente David Copperfield (no livro homónimo de Charles Dickens), querendo impressionar a sua adorada Emily, dá por si sem monstros para combater, vê-se na necessidade de os inventar, e sonha com dragões toda a noite. As perigosas ameaças de Stranger Things parecem todas estranhamente saídas do universo de fantasia que aqueles rapazes cultivam. Podiam ter sido eles a inventá-las. E, de certa forma, foram – porque todos temos direito aos nossos monstros.
  A verdadeira lição, porém, vem depois do heroísmo. Os rapazes – com a ajuda de alguns adultos feitos à medida de miúdos – são protagonistas graças a todas as ocorrências fantasiosas, todos os perigos irreais que os ameaçam. Tornam-se importantes nesse contexto e quando o quotidiano retoma a sua normalidade terrena eles são geeks de novo, individualidades perdidas como pontos excêntricos na corrente social homogeneizadora. Mas pensar que tudo volta a ser como antes é falhar em compreender a mensagem. E esta não é a de que as coisas mudaram; na verdade, eles não passam a ser heróis daqui em diante, estas aventuras não serviram para revelar as suas aptidões escondidas, o seu valor oculto ou a coragem que eles guardavam. Serviram apenas para mostrar que o mais importante eles sempre tiveram, que eles sempre foram os heróis que os monstros lhes vieram pedir que se tornassem. Já se tinham uns aos outros, já eram amigos, leais e honestos. Já se apoiavam, brincavam e divertiam. Nos seus jogos, já combatiam, arriscavam e salvavam-se. Os perigos e as criaturas deram-lhes o contexto certo, mas eles sempre tiveram o significado. Ofereceram-lhes uma história, mas antes disso já eles eram, como sempre foram, as personagens.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Os olhos famintos


  Na série Stranger Things (The Duffer Brothers), Eleven, ou El (Millie Bobby Brown), é uma rapariga com poderes telequinésicos que foge de um laboratório e é acolhida por Mike, um rapaz da sua idade.

  Quantos mundos cabem numa criança? Eleven é uma rapariga que traz um pequeno grande mundo dentro de si. Um mundo que, como um berlinde, está aí para ser jogado pelos outros que com ela se cruzam. Mas ela sabe quão valioso é esse berlinde, porque sente intensamente cada embate que o atinge. É tentador pensar que os berlindes foram feitos para serem lançados, para se confrontarem uns com os outros em batalhas de golpes e agressões. Mas a quem doem as pancadas não parece que as coisas tenham de ser assim. Nem todos os encontros têm de resultar em combates e para criaturas como Eleven as lutas são apenas encontros indesejados, que podiam e deviam ter sido evitados. A guerra não é o destino de todos os berlindes.
  Privada dos encontros certos, de abraços, festas e sorrisos – é assim que Eleven surge no princípio da série. Mas só os berlindes mais adultos, tornados superficiais por muitas batalhas, capazes apenas de empurrar e afastar, vivem cheios. El aparece como a criança que é, ainda cheia de fome de amor e à procura de acolhimento. Nenhum berlinde deveria ser lançado para o jogo de batalhas sem encontros prévios que a preencham de sentimentos, risos e pontos de apoio. El é um berlinde pequeno, vazio de tudo o que os encontros que nunca teve não lhe puderam dar. Mas é para esse pequeno mundo dentro de si que ela consegue absorver tudo. É nesse pequeno mundo que tudo o que entra se torna gigante. E essas coisas que, pequenas cá fora, se agigantam dentro de nós, são as que doem mais. Também é assim que os monstros trabalham.
  El está sempre em desequilíbrio. A única condição que conhece é a da fragilidade e tudo o que se aproxima é perigoso, porque pode magoar. Por não ter lugares dentro de si onde possa recolher-se e abrigar-se, El está sempre exposta às intempéries. Condenada também a devolver tudo o que engole e que é demasiado grande para ficar guardado no seu pequeno mundo particular, apresenta cá fora tudo exactamente como traz dentro de si. Por isso todas as coisas pequenas que lhe acontecem e que se tornam tempestades nessa cabana interior surgem como temporais nos seus olhares zangados, nos seus gritos de desespero, nos seus chamamentos angustiados. Os seus gestos, as suas palavras, até mesmo os seus risos, são quase sempre intensos. As excepções nunca são momentos de relaxamento, mas apenas de alívio breve da pressão, de descompressão momentânea. El não pode verdadeiramente descontrair. Há sempre algo na perspectiva de acontecer, alguém que a procura, algo que a persegue, algum perigo que a ameaça.
  Acima de tudo, El é uma criança sem ligações para crescer. Está pronta a acreditar em tudo o que lhe digam, a absorver o que partilhem com ela, a seguir as regras que lhe apresentem. Desde que a deixem agarrar a mão que lhe oferecem, desde que não a larguem. Porque apesar dos seus fantásticos poderes, apesar de inclusive matar mais gente do que provavelmente qualquer outra personagem, ela é de entre todas a mais frágil. É a ela que tudo acontece com mais força, porque tudo é nela muito mais intenso. E a sua fragilidade salta à vista em todos os gestos, todas as palavras, todas as perguntas. Mas é mais evidente sobretudo quando parece mais forte: quando grita zangada, quando luta, quando censura, quando reclama. Porque tudo isso é só o desespero de quem tem medo de que a larguem. Como se ela não tivesse hipótese de se segurar sozinha, como se a ortostasia fosse uma arte que ela nunca pôde aprender, como se no caso de a mão (do pai, da mãe, de Mike...) a largar ela estivesse condenada a afundar-se no buraco que ameaça engoli-la.
  Nos seus olhos mora sempre a dor porque o seu rosto traz o desenho do drama. Quando ri ou brinca tudo sai como se fossem momentos que já acabaram há muito tempo, que estão condenados a acabar logo que nascem, que são apenas distracções da profundidade abismal que carrega nos olhos. Quando o seu olhar intenso pousa em algo ou alguém é como se o engolisse, porque El usa tudo para se agarrar, para que não a deixem cair. Se o seu olhar nos rasga por dentro e nos faz querer apertar-lhe a mão é porque sabemos que não só encontrámos alguém que precisa de nós, mas também alguém que gostamos que precise assim de nós, alguém que, com esses olhos tão ricos, nos torna mais valiosos, mais importantes, mais precisos. O seu cabelo selvagem é o da criatura que nunca teve correntes. Algo, porém, que nunca lhe deu liberdade; só solidão. É a essa criança que mora naquele pequeno mundo interior cheio de coisas gigantes, é a ela que queremos abraçar para dizer que estamos aqui, que não a largaremos por nada. Bem sabendo que esta mentira é tão óbvia quanto necessária, que é algo que nos faz sentir tão bem que não poderíamos verdadeiramente prescindir dela, nem a trocaríamos por nenhuma outra, porque é afinal dessa mentira que dependem todas as nossas verdades. Essa mentira pela qual dizemos que é simplesmente bom sermos tão necessários, fingindo não ver que afinal quem nos salva é essa pessoa que tanto precisa de nós.