E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 15 de julho de 2018

Magia arrumada

  No livro Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho, relatam-se breves histórias dos moradores de um bairro cheio de personagens e incidentes caricatos. Todos envolvem elementos sobrenaturais que se entrelaçam na vivência quotidiana das pessoas e são por estas integrados com naturalidade na sua perspectiva do mundo.

  Talvez o mais curioso destes contos sejam os termos do encontro entre o fantástico e o natural. Tudo começa sempre com contextos situados, marcadamente populares ou próprios do bairro em questão. Inevitavelmente surgem, todavia, elementos que não pertencem àquele lugar nem a qualquer outro: estão fora de toda e qualquer empiria, por definição localizada e limitada nas suas fronteiras. Assim, uma máquina de costura capaz de congelar o que se aproxime ou um gato grande o suficiente para comer polícias não são aparições estranhas para aquele lugar, mas sim para qualquer lugar humano em que queiramos situar uma história. Mesmo os elementos comuns à humanidade são arrastados pela voragem ficcional que expulsa da realidade tudo o que toca com a magia: a lua é engolida por um rapaz, enquanto um outro roda uma válvula que faz cair do céu uma coluna de água concentrada (e por pouco não puxa uma alavanca que mudaria o eixo da terra).
  Não se trata, contudo, de extrapolar a partir destes acontecimentos para o exterior, de fazer crescer os incidentes oferecendo-lhes uma dimensão mais abrangente, conferindo-lhes um significado universal. Passa-se o inverso: as ocorrências extraordinárias, susceptíveis de abalar a mundividência universal, são trazidas para uma escala reduzida, limitada e bairrista. Aos elementos universais é dada uma existência particular, ocorrências pitorescas, incidentes localizados. Torna-se cómico o cósmico quando uma nuvem manienta insiste em perseguir determinados transeuntes. O extraordinário é integrado na normalidade da paisagem quando a nuvem é presa e usada para alimentar uma fonte no meio da rua. Podemos também assim dizer que a lua engolida pelo moço não é de facto a que conhecemos e que não pertence a ninguém, mas sim a lua do Beco das Sardinheiras: ela começou por ser a lua de todos quando lá estava em cima, mas passou a ser a do beco para ser engolida e para poder fazer-se uma história que se passa naquela região e àquela região pertence.
  O extraordinário chega sorrateiramente e dá sinal de si como um gato com que deparamos no meio da estrada. Como também acontece com os gatos, ele não é rejeitado: os moradores do Beco adaptam-se e passam a lidar com o que entretanto deixa de ser mágico. O espaço vazio onde a lua estava não é um buraco negro, mas uma inconveniência. A nuvem irrequieta não é temida como uma praga ou maldição divina; é usada para uma fonte. Neste lugar, as pessoas tratam o extraordinário como quotidiano e arrumam-no no meio das suas tarefas de sempre. Tudo é pequeno, pitoresco e local – até, ou sobretudo, a magia.