No livro Casos do Beco das Sardinheiras, de Mário de Carvalho, relatam-se breves histórias dos moradores de um bairro cheio de personagens e incidentes caricatos. Todos envolvem elementos sobrenaturais que se entrelaçam na vivência quotidiana das pessoas e são por estas integrados com naturalidade na sua perspectiva do mundo.
Talvez o mais curioso destes contos sejam os termos do encontro entre o fantástico e o natural. Tudo começa sempre com contextos situados, marcadamente populares ou próprios do bairro em questão. Inevitavelmente surgem, todavia, elementos que não pertencem àquele lugar nem a qualquer outro: estão fora de toda e qualquer empiria, por definição localizada e limitada nas suas fronteiras. Assim, uma máquina de costura capaz de congelar o que se aproxime ou um gato grande o suficiente para comer polícias não são aparições estranhas para aquele lugar, mas sim para qualquer lugar humano em que queiramos situar uma história. Mesmo os elementos comuns à humanidade são arrastados pela voragem ficcional que expulsa da realidade tudo o que toca com a magia: a lua é engolida por um rapaz, enquanto um outro roda uma válvula que faz cair do céu uma coluna de água concentrada (e por pouco não puxa uma alavanca que mudaria o eixo da terra).
Não se trata, contudo, de extrapolar a partir destes acontecimentos para o exterior, de fazer crescer os incidentes oferecendo-lhes uma dimensão mais abrangente, conferindo-lhes um significado universal. Passa-se o inverso: as ocorrências extraordinárias, susceptíveis de abalar a mundividência universal, são trazidas para uma escala reduzida, limitada e bairrista. Aos elementos universais é dada uma existência particular, ocorrências pitorescas, incidentes localizados. Torna-se cómico o cósmico quando uma nuvem manienta insiste em perseguir determinados transeuntes. O extraordinário é integrado na normalidade da paisagem quando a nuvem é presa e usada para alimentar uma fonte no meio da rua. Podemos também assim dizer que a lua engolida pelo moço não é de facto a que conhecemos e que não pertence a ninguém, mas sim a lua do Beco das Sardinheiras: ela começou por ser a lua de todos quando lá estava em cima, mas passou a ser a do beco para ser engolida e para poder fazer-se uma história que se passa naquela região e àquela região pertence.
O extraordinário chega sorrateiramente e dá sinal de si como um gato com que deparamos no meio da estrada. Como também acontece com os gatos, ele não é rejeitado: os moradores do Beco adaptam-se e passam a lidar com o que entretanto deixa de ser mágico. O espaço vazio onde a lua estava não é um buraco negro, mas uma inconveniência. A nuvem irrequieta não é temida como uma praga ou maldição divina; é usada para uma fonte. Neste lugar, as pessoas tratam o extraordinário como quotidiano e arrumam-no no meio das suas tarefas de sempre. Tudo é pequeno, pitoresco e local – até, ou sobretudo, a magia.
Não se trata, contudo, de extrapolar a partir destes acontecimentos para o exterior, de fazer crescer os incidentes oferecendo-lhes uma dimensão mais abrangente, conferindo-lhes um significado universal. Passa-se o inverso: as ocorrências extraordinárias, susceptíveis de abalar a mundividência universal, são trazidas para uma escala reduzida, limitada e bairrista. Aos elementos universais é dada uma existência particular, ocorrências pitorescas, incidentes localizados. Torna-se cómico o cósmico quando uma nuvem manienta insiste em perseguir determinados transeuntes. O extraordinário é integrado na normalidade da paisagem quando a nuvem é presa e usada para alimentar uma fonte no meio da rua. Podemos também assim dizer que a lua engolida pelo moço não é de facto a que conhecemos e que não pertence a ninguém, mas sim a lua do Beco das Sardinheiras: ela começou por ser a lua de todos quando lá estava em cima, mas passou a ser a do beco para ser engolida e para poder fazer-se uma história que se passa naquela região e àquela região pertence.
O extraordinário chega sorrateiramente e dá sinal de si como um gato com que deparamos no meio da estrada. Como também acontece com os gatos, ele não é rejeitado: os moradores do Beco adaptam-se e passam a lidar com o que entretanto deixa de ser mágico. O espaço vazio onde a lua estava não é um buraco negro, mas uma inconveniência. A nuvem irrequieta não é temida como uma praga ou maldição divina; é usada para uma fonte. Neste lugar, as pessoas tratam o extraordinário como quotidiano e arrumam-no no meio das suas tarefas de sempre. Tudo é pequeno, pitoresco e local – até, ou sobretudo, a magia.