E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 28 de julho de 2019

O brinquedo iludido


  No filme Toy Story (John Lasseter), Buzz Lightyear é o novo brinquedo que Andy recebe no aniversário. Buzz faz imenso sucesso e destrona o xerife Woody como favorito do rapaz. Mas Buzz está convencido de ser um verdadeiro ranger espacial e não cede por nada às tentativas de Woody de o convencer de que é um brinquedo.

  Buzz é um iludido. Demasiado emaranhado na sua luta contra o Imperador Zurg, não consegue afastar-se o suficiente para dar conta do verdadeiro tamanho das suas aventuras. O cínico Woody, pelo contrário, parece descortinar-lhe as ilusões: sabe que os voos de Buzz só têm lugar na imaginação deste. Vê bem que ele tem a cabeça nas nuvens, mas não as asas.
  Escolheríamos provavelmente, se nos fora dada a alternativa, calçar as botas do xerife, não as do viajante espacial. Tememos ser apanhados fora de lugar, desajustados, sem compreender o que nos rodeia. Rimo-nos de quem vive noutro mundo, perdido em aventuras que são afinal brincadeiras, a batalhar monstros que não passam de bonecos de plástico. São assim os loucos: estão longe do universo real e por isso lhes chamamos alienados. Vivem longe, no mundo que só existe dentro deles.
  Será isso que se passa com Buzz? É difícil vê-lo como totalmente desligado da realidade. Se bem que dando-lhe uma leitura diferente, ele adapta-se a ela na perfeição: o seu sucesso estende-se de Andy aos restantes brinquedos, é completamente funcional e até a sua lunática tentativa de voo arrebata o entusiasmo do público. O ranger não é, portanto, um alienado, porque não está perdido no seu mundo interior, longe do nosso; ao invés, para trabalhar, a sua ilusão precisa da realidade exterior. Buzz não funcionaria se não interagisse com o que se passa à sua volta, e a sua interacção não assusta ninguém nem entretém como as coisas ridículas; antes atrai e fascina, como as admiráveis.
  O jogo com Buzz é de sentido duplo: não se limita a aceitar passivamente o que a realidade lhe apresenta. Trabalhando com o que lhe é oferecido, não deixa de viver a leitura que ele mesmo faz da realidade. A sua história mantém-se a que ele conta e da qual não desiste, por mais que Woody insista com outros factos. Só temos de comparar as suas duas tentativas de voo para compreendermos o mecanismo: tudo corre bem quando se atira de olhos fechados “para o infinito e além”, porque se lança sem aceitar o abismo com que a realidade ameaçava receber a sua ousadia. Mais tarde, já sem certezas sobre o enredo em que tão piamente acreditara, volta a atirar-se, agora de olhos abertos. Cai e quebra-se, porque desta vez o seu salto deu-se minado pela dúvida. O primeiro salto foi dado para provar aos outros o que ele sabia ser verdade. O segundo foi feito para provar a si mesmo o que deixou de saber. No primeiro, foi Buzz Lightyear, o ranger espacial, quem satou e voou. No segundo, foi Buzz Lightyear, o brinquedo, quem saltou e caiu. A realidade não levanta voo por nós, e Buzz, sem a sua personagem a sustentá-lo, teve de obedecer à gravidade à qual, pela dúvida, já se resignara sem dar conta.
  A história de Buzz não nos ensina, contudo, a aceitarmos a lei da gravidade e a abdicarmos de criar enredos com voos. Nada fora de nós voará em nosso lugar, mas, se não voamos, é só porque nos deixamos em terra. Acabamos convencidos de que somos meros brinquedos, e isso impede-nos de criar a personagem que nos ajudaria a deixar o solo. Enquanto brinquedos, dispensamo-nos de contar as histórias que protagonizamos: outros, que nos usarão para brincadeiras, decidirão que histórias vamos viver, e contam-nas por nós. Furtam-nos a narrativa e assim as aventuras que protagonizamos nunca serão verdadeiramente nossas, porque nunca as contaremos. Seremos personagens, talvez, mas imaginadas por outros. Porque as personagens que encarnamos só nos pertencem quando nos assumimos ao mesmo tempo seus narradores.
  O heroísmo de Buzz, enquanto se mantém iludido, é admirável. Convencido de que voa, combate ameaças intergalácticas e salva inocentes, ele mesmo escreve todas as histórias que protagoniza e não entra em aventura que nao lhe pertença. Quando salta, é livre para o fazer de olhos fechados, porque, conhecendo a lei da gravidade, sabe outra coisa ainda mais importante: consegue voar. É o mais hábil dos escritores, porque não se despede do mundo; usa-o para contar a história que traz dentro de si.
  No fim de contas, tem Woody razão quando insiste em convencer o rival de que é só um brinquedo? Não tem, porque Buzz não é verdadeiramente um brinquedo; o seu espírito não é esse, mas o de uma criança. Não deixa que outros imaginem o seu mundo e as suas aventuras; é ele mesmo que dá ao universo em redor todos os significados. Não deixa de ser uma brincadeira cada uma das peripécias que protagoniza — porque brincar é isso mesmo, oferecer um universo aos objectos inanimados. Mas é ele mesmo quem brinca, porque é ele quem inventa e acredita. Woody e os restantes brinquedos são ateus resignados: aceitam que uma criança toda-poderosa lhes decida os destinos todos os dias. Ao invés, Buzz não abdica da mais assustadora das prendas divinas: a liberdade para se inventar. Se Buzz é um brinquedo, é o brinquedo de si mesmo; se o encontramos manipulado pelas mãos de alguma criança, a verdadeira criança não é ninguém senão ele.