E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 20 de outubro de 2019

Por detrás do sorriso


  Joker (Todd Phillips) conta a história de Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), palhaço de festas e aspirante a comediante que depende de serviços sociais para conseguir os medicamentos de que precisa, vive com a mãe, de quem cuida, e, por razões médicas, sofre de ataques de riso em contextos de pressão ou nervosismo. Acossado por dificuldades financeiras, problemas de adaptação e constantes abusos, maus tratos e incompreensão, além de perder acesso à medicação, Arthur entra numa espiral de descontrolo e alienação que se vem a traduzir em diversos actos de violência.

  Arthur não é o vilão do universo Batman que conhecemos até aqui. Tomado como reverso do super-herói (um veste negro, é sisudo, obedece a um código moral; o outro é colorido, ri e viola todas as leis), ou simplesmente como agente do caos, o Joker quase sempre se identificou com a sua máscara. É fácil pensar que se trata dum Batman fracassado, ou um ponto de chegada diverso do que levou ao homem-morcego, se adoptarmos ambos os casos como respostas a eventos traumáticos – um passaria a usar máscara para tentar corrigir as injustiças do mundo, enquanto o outro adoptaria uma para mostrar que as regras que ditam a observância da lei e da ordem são tão arbitrárias como as que ditam o que tem graça e o que não tem. Mas outra perspectiva pode apresentar-nos o Joker como o caso de sucesso: Batman é a tentativa desesperada de Bruce Wayne de se tornar a máscara, o símbolo, de se desligar do seu passado traumático. Está condenado a fracassar, porque é esse mesmo trauma que alimenta a vida da máscara. Bruce só se torna Batman por não ter podido ser a pessoa que se tornaria no caso de os seus pais sobreviverem; mas essa tragédia não é mera interrupção que o leva a desviar os passos do caminho esperado, já que ele a traz sempre consigo. Não assim com o Joker: não há história que explique em definitivo a (origem da) personagem, porque qualquer que se lhe queira atribuir é redutora e mesmo transformadora: só a máscara – as cores, o sorriso disforme, permanente e sem razão definitiva – o resume. Ao contrário do Batman, consegue tornar-se a imagem que usa. Não é sequer um homem esquecido mascarado, ou pintado; é o Joker.
  Curiosamente, isto fica bem demonstrado na cena de abertura da famosa obra em que se pretende justamente oferecer uma história de origem à personagem: The Killing Joke (Alan Moore e Brian Bolland). Batman desloca-se ao manicómio para tentar falar com o seu inimigo e chamá-lo à razão. Encontra, todavia, um substituto no seu lugar, a fazer dele, e que presumimos tê-lo ajudado a fugir. É isto que acontece quando procuramos falar com o Joker e encontrar nele algum senso ou razoabilidade: só encontramos o seu sorriso; a resposta é sempre de violência e total ausência de razão. Se o homem à nossa frente não rir das nossas palavras, então não encontrámos quem procurávamos, mas sim um qualquer indivíduo disfarçado. Não encontrámos a máscara, mas alguém pintado (é a tinta da pintura, aliás, que denuncia o impostor na obra referida). O homem pintado nunca será quem procuramos; esse andará por outro lado. O próprio Joker, aliás, faz-nos duvidar do relato de origem que a obra nos propõe, já que, como no filme The Dark Knight (Christopher Nolan), garante saltar nas suas recordações de história em história, incerto sobre qual (se alguma) será a verdadeira: "Sometimes I remember it one way, sometimes another ... If I'm going to have a past, I prefer it to be multiple choice!". Não importa verdadeiramente o que lhe deu origem, porque ele já se desligou do que lhe aconteceu.
  É justamente esta a nota diferenciadora no filme de Phillips. Arthur Fleck nunca deixa de ser Arthur Fleck. Evolui, deteriora-se e deforma-se, mas não desaparece, e por isso o Joker nunca surge. Arthur carrega a sua história e nunca consegue libertar-se dela, dos seus dramas, traumas e dores. Pode soar paradoxal, mas Arthur nunca deixa de ser quem é num filme em que o seu drama é muito o de perda de identidade (descobre que as ideias que tinha sobre quem eram os seus pais podem estar erradas). Nem quando perde o domínio e começa a recorrer à violência para reagir aos abusos e injustiças sentimos que desapareça o homem maltratado. As suas acções nunca são crimes dum louco sem nexo; mantêm-se gestos dum homem magoado. A única sugestão (sem passar disso) de que o Joker que conhecíamos chegou surge no fim do filme, quando os seguranças do hospital perseguem Arthur sem o conseguirem apanhar: é isso, que nesta linha mais define esta personagem, a impossibilidade de agarrar a pessoa que esperaríamos encontrar atrás da pintura.
  Arthur sofre duma condição que desemboca em risos que não domina e surgem em situações inapropriadas, normalmente de nervosismo ou ansiedade. O seu riso não lhe pertence. Não surge por sua vontade e nunca é lido pelos outros como pretende. Cita repetidamente a mãe, que lhe recomenda sorrir e pôr uma cara feliz; mas nunca ri de felicidade. O seu propósito, ainda segundo a mãe, seria o de trazer riso e alegria ao mundo; mas só provoca desconforto e estranheza. O riso de Arthur carrega-lhe a tragédia: a expressão mais característica da imagem que projecta é-lhe alheia por completo, e é assim que ele erra pelo mundo, completamente alienado, inadaptado e nunca aceite. Queixa-se à assistente social de que ela não ouve nada do que ele diz, que ela lhe repete as mesmas perguntas sem nunca atender verdadeiramente às respostas. Mas é assim que ouvimos aqueles que, como Arthur, não correspondem aos esquemas que projectamos no mundo para o organizar: quando as suas respostas falham em encaixar nesses esquemas, não as aceitamos e tomamos o seu autor como estranho, louco ou mesmo aberração. Arthur não é outra coisa para quem o ouve.
  Nada na vida de Arthur lhe dá motivos para rir, mas quando nada resta para desmoronar, ele abraça o seu sorriso. Não deixa para trás a sua tragédia, mas deixa de combater a máscara que o amordaçou até então. Passou os anos, como explica, a encarar a sua vida como tragédia, e agora percebe que é uma comédia. Não porque tenha encontrado motivo para rir até então desconhecido, mas porque percebeu não haver verdadeiramente motivos correctos ou preferíveis para gargalhadas. Como esclarece também, os outros decidem quem é bom ou mau – no limite, o que está certo ou errado – com a mesma arbitrariedade que usam para declarar o que é engraçado (e em que momento). É essa autoridade que ele deixa de reconhecer. Quando, no programa de televisão em que comparece como convidado, leva a cara pintada, mostra que deixou de rejeitar a máscara com que se debatera até então; mas se percebeu não poder tirá-la nunca, decidiu que vai ser ele mesmo a pintá-la. Até aí, como os pretendentes à mão de Penélope por força de Atena na Odisseia de Homero (canto XX, 347), rira com as bocas dos outros; agora passará a rir com a sua. O apresentador insiste em troçar dele, e o público em rir das suas peculiaridades; mata então o apresentador, não num gesto frustrado de quem não consegue vencer o riso alheio, mas de quem percebe que para ser dono do riso basta ter poder. E, dependendo da perspectiva, um homicídio pode ser algo muito errado e terrível, ou algo muito engraçado. Talvez as duas coisas: o homicídio torna-se para Arthur terrivelmente cómico.
  Quando Arthur dança para a multidão de arruaceiros violentos que o idolatra, não o faz por aceitar o papel de símbolo que lhe querem colar, mas como quem está livre da necessidade de corresponder ao que quer que seja que os outros exijam, como quem despreza a arbitrariedade que o quer pôr no pedestal (a mesma que antes o largava espancado em sarjetas). Ainda aí, contudo, encontramos um homem e não um palhaço; descobrimos o sujeito que faz palhaçadas, não para divertir os outros ou para se humilhar, mas para se libertar das suas dores. São ainda estas – se bem que agora pela negativa – que continuam a explicá-lo. No universo Batman, o Joker-vilão usa muitas vezes um gás que mata as vítimas deixando-lhes na cara um sorriso desfigurador permanente. Curiosamente, é isso que nunca chega a acontecer a Arthur. Porque se ele abraça o riso que não pode abandonar, não chega a transformar-se nele. Por detrás desse sorriso terrível e traumático, continua a morar o homem magoado que ainda não aceitamos, porque não compreendemos. Nas palavras do próprio, ele ri porque nada tem a perder, porque não é ninguém. Mas não é o riso feliz de quem está contente por ser nada; é antes o riso trágico de quem só se consola por já não poder perder o que quer que seja depois de ter perdido tudo. Quando o vemos rir com tanta tristeza e distanciamento cínico, sabemos que há aí um sinal, por fraco que seja, de que Arthur ainda não desapareceu por completo: rindo, ele chora a perda de si. Mora aí a primeira possibilidade de se encontrar novamente a si mesmo.