E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 29 de fevereiro de 2020

O segredo dos pelicanos


Edward Lear

  No poema “The Pelican Chorus”, de Edward Lear, o rei e a rainha dos pelicanos falam de si, dos seus hábitos e da sua história, na qual destacam o aparecimento da filha, Dell, e o casamento desta com o rei grou, que a levou para longe do Nilo, onde os pais ainda vivem. Ao longo do poema, ambos garantem ser mais felizes que qualquer outro pássaro, e que assim continuam, apesar da partida de Dell e das noites que passam a ver a lua e a pensar que nunca mais verão a filha.

  Estranha felicidade a dos pelicanos, porque mais do que sem motivo, parece surgir entre motivos que a contrariam. Apesar das razões para a tristeza e do quadro melancólico, seguem dizendo-se felizes. Perante tal contraste, surge facilmente a suspeita de que querem enganar-nos, ou até a si mesmos, convencendo da sua felicidade quem se disponha a ouvi-los. Tão duvidosa é a asserção, aliás, que nem parecem capazes de a formular em termos devidos, trocando os tempos verbais ao que se esperaria ("We think so then, and we thought so still!").
  Parece natural arrumar a postura dos pelicanos como exibição de comportamento e atitude absurdas, entre tantos exemplos em que a escrita de Lear é rica – nem será outra a proposta do autor. Como Chesterton destaca (“A defence of nonsense”), o absurdo de Lewis Carroll vive da escapatória que veicula: pela inversão ou desprezo das regras lógicas, gramaticais, judiciais, etc., proporciona libertação do mundo onde as coisas estão sempre fixas, arrumadas com toda a propriedade e decoro. É como se as suas personagens fossem os senhores e senhoras muito formais, educados e respeitadores com que lidamos no dia-a-dia, mas virados do avesso. Diferentemente, as palavras inventadas por Lear são introduzidas e usadas de tal modo que parecem naturais, familiares – quase queremos dizer que lhes percebemos o significado. Porque o absurdo de Lear não vive nas costas do mundo, para onde fugimos quando queremos escapar às regras do labor quotidiano. A arte de Lear é realmente muito a de, introduzindo o absurdo no normal com tanta naturalidade, mostrar que se ele aí cabe tão bem, é porque o que nos é natural e normal já carrega em si muito de absurdo. O absurdo de Carroll dá voz a quem está preso pelas formalidades do dia-a-dia, a gritar para se libertar, explodir, escapar à asfixia das regras. Diferentemente, o absurdo de Lear respira tranquilamente nos gestos da habitualidade; vive nas próprias regras, que são, afinal, o que de mais absurdo existe.
  Talvez seja precipitado, porém, concluir que, por ser absurda, não há sentido na felicidade dos pelicanos. Na sua leitura do poema ("On rationality and nonsense"), Matthew Bevis sugere que atentemos na própria irracionalidade do estado de felicidade. A pergunta pelos motivos para a mesma parece sempre deslocada à criança que a receba. Bevis regista a evolução do conceito, que de associado a um estado (de abençoamento, de graça) passou a ligar-se mais a uma disposição (de alegria, de bom humor). A formulação dos pelicanos ("We think no birds so happy as we!") não é a de que não pensam que não haja outros pássaros tão felizes; é antes a de que não pensam outros pássaros tão felizes. Com a sua insistência em pensarem-se felizes, em vez de se saberem tal, vivem o que na felicidade é sentimento, inebriamento, não razão ou lógica.
  A felicidade é irracional, e assim, os pelicanos podem não apenas dizer-se, mas estar verdadeiramente felizes. São um pouco loucos? Talvez. Mas se racionalizarmos demasiado os nossos processos internos, se percebermos demasiado bem como funcionamos e desse modo adquirirmos uma consciência permanente sobre o que acontece em nós, vivendo cada estado de espírito na explicação que para ele fabricamos, acabamos por emperrar, deixamos de sentir simplesmente as coisas. Por isto, precisamos de um pouco de loucura para deixar entrar (ou sair) a alegria. Demais, tendemos a ver os felizes como algo inconscientes: se percebessem o que se passa à sua volta, o drama de tudo o que os rodeia, não ririam, não poderiam rir perante as ameaças, os perigos, as tragédias... Daí que soem tão loucos os pelicanos: pelo que vão contando, percebem tudo o que se passa, têm noção correcta de todos os dramas; ainda assim, dizem-se felizes. Só resta a possibilidade de serem loucos. Não cometamos, contudo, o erro de por esta via lhes reduzirmos o tamanho da ousadia: o seu admirável desafio é o de continuarem a ser felizes, mesmo sem inconsciência dos livres. Talvez sejam loucos para isso, mas nem sendo doido fica necessariamente mais fácil cair na alegria. A ousadia dos pelicanos é sem dúvida admirável: como nos aconselha Camus (Le Mythe de Sysiphe), pensando em Sísifo e na sua tarefa infindável, talvez devamos imaginar felizes os pelicanos, mesmo contra todas as evidências. Se Sísifo pode continuar a sorrir depois de ter compreendido que a pedra nunca ficará onde ele a arruma e que não há motivos para alegria, é porque aprendeu o segredo dos pelicanosNão dependem dos motivos, nem das causas; sorriem porque não os algemam a razão nem a lógica. São felizes porque são loucos? Sim, mas só perceberemos o valor dessa felicidade se traduzirmos a explicação dizendo que são felizes porque são livres.