E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 29 de março de 2020

Longe dos nossos sonhos


  No episódio “Board Wages”, da série Upstairs, Downstairs, a família Bellamy encontra-se fora (na Escócia), tal como o mordomo e a cozinheira. A restante criadagem aproveita para beber e pavonear-se pela casa, dançando e jogando em imitação jocosa dos patrões, usando mesmo para isso roupas destes. São apanhados por James Bellamy, o filho e herdeiro, que chega inesperadamente e os obriga a continuar a farsa, fazendo o papel de mordomo e criando-lhes o embaraço de terem de beber e falar como se fossem os senhores que há pouco imitavam. Todos sentem a tortura da vergonha e do desconforto, excepto Sarah (representada por Pauline Collins), que segue representando o papel de senhora com altivez, e chega mesmo a falar a James com rispidez.

  A cena é clássica: com os patrões fora, os criados tomam-lhes o lugar e gozam-lhes os confortos; imitam-lhes os jeitos, acentuam-lhes os traços e riem das suas pantominices. Se os donos da casa forem realmente senhores e senhoras, porém, nunca poderão perturbar-se verdadeiramente no caso de descobrirem a farsa – i. e., poderá incomodá-los a falta de nível, ou até o desrespeito, mas não se sentirão questionados na integridade do que os faz nobres.
  É isso que estes criados não chegarão a ser. Pela representação excessiva, fracassam: exageram e caricaturam, porque, no fim de contas, não são o que imitam. Fantocham e parodiam, porque não consegue mais que isso quem só assiste de fora. Bem podem vestir as roupas finas, empunhar as bengalas chiques e beber o champanhe caro, que nunca serão nobres por dentro: só sabem o que vêem do exterior.
  Quando James adopta as vestes e atitudes de empregado, a farsa, que de burlesca passa a rondar o grotesca, prossegue. Mas é o criado que decide o que acontece, enquanto os senhores obedecem. Porque por dentro, o criado é senhor, e os senhores são criados. A lição chega com humilhação às avessas: de avental e a servir, James ordena, enquanto os demais, de vestidos e bebendo champanhe, obedecem.
  Só não é assim com Sarah, que joga com o jovem patrão nos termos deste: não só aceita o papel, que começou por representar em brincadeira e agora lhe é imposto, como passa mesmo a dar ordens e até a falar rispidamente com o criado fingido. Não nos apressemos, todavia, a julgá-la verdadeira senhora por isso. O que explica a naturalidade da moça não é a verdade de quem ela é por dentro, mas por fora; porque Sarah não traz quem é no interior, e sim no que veste. Por isso é senhora enquanto traz o vestido da patroa, mas será criada quando voltar à farda. É tão forte quanto a armadura que traga, e tão frágil quanto a nudez que exiba: despindo-se, torna-se submissa perante James, ficando à mercê deste. Quando ele, finalmente, lhe rasga a farda, ela chora em desespero: quem é ela, se não puder vestir-se?
  A um tempo, Sarah é menos que os criados, porque se estes são prisioneiros da sua natureza interior, Sarah parece vazia por dentro: o que a faz vem de fora. Mas a outro tempo, ela é mais livre até do que os senhores, porque está sempre aberta a definir-se novamente e de outro modo. Com a mesma desfaçatez e facilidade, tanto pode ser criada como senhora, desde que lhe dêem roupa adequada. Pode, no fim do episódio e apesar das dificuldades em arranjar emprego para que alerta Rose, abandonar a casa, porque não está presa a lugares, nem condenada a ser quem quer que seja. Nada a assusta, porque não tem destino, nem conhece etiquetas ou papéis; sabe todas as falas, e todos os vestidos lhe servem, porque é a actriz por excelência. Tem toda a liberdade que é possível desejar: a de quem não é ninguém no princípio, mas tem vocação para todos os papéis; de quem nada tem por que lutar ou perder-se, e portanto, pode conquistar tudo; de quem nada tem de seguro, e por isso, não conhece correntes.
  Sarah é livre durante o dia, porque quando se deita, não é ninguém. Com a sua imaginação de riqueza shakespeareana, pode sonhar todas as personagens, porque quando acordar sem roupa, continuará não sendo nenhuma delas. Pode abrir todos os armários e vestir confiante todas as roupas, porque quando se deitar, nenhuma delas terá deixado marca. Devemos invejar o desprendimento de Sarah? A natureza que nos prende e condena dá-nos segurança na mesma medida. A liberdade que nos obriga a deitar e acordar não sendo ninguém, que nos separa dos nossos sonhos e gestos, exige a coragem de abandonarmos tudo o que não nos satisfaça por mero capricho, e de respondermos como cabe quando nos atribuírem um papel inesperado. Não é verdadeiramente a independência que devemos invejar, mas a coragem de viver a mais terrível e ousada e das liberdades: a que nos permite cumprir todos os sonhos, sem nunca podermos chegar a ser o que sonhamos.