No episódio “Board Wages”, da série Upstairs, Downstairs, a família Bellamy encontra-se fora (na Escócia), tal como o mordomo e a cozinheira. A restante criadagem aproveita para beber e pavonear-se pela casa, dançando e jogando em imitação jocosa dos patrões, usando mesmo para isso roupas destes. São apanhados por James Bellamy, o filho e herdeiro, que chega inesperadamente e os obriga a continuar a farsa, fazendo o papel de mordomo e criando-lhes o embaraço de terem de beber e falar como se fossem os senhores que há pouco imitavam. Todos sentem a tortura da vergonha e do desconforto, excepto Sarah (representada por Pauline Collins), que segue representando o papel de senhora com altivez, e chega mesmo a falar a James com rispidez.
A cena é clássica: com os patrões fora, os criados tomam-lhes o lugar e gozam-lhes os confortos; imitam-lhes os jeitos, acentuam-lhes os traços e riem das suas pantominices. Se os donos da casa forem realmente senhores e senhoras, porém, nunca poderão perturbar-se verdadeiramente no caso de descobrirem a farsa – i. e., poderá incomodá-los a falta de nível, ou até o desrespeito, mas não se sentirão questionados na integridade do que os faz nobres.
É isso que estes criados não chegarão a ser. Pela representação excessiva, fracassam: exageram e caricaturam, porque, no fim de contas, não são o que imitam. Fantocham e parodiam, porque não consegue mais que isso quem só assiste de fora. Bem podem vestir as roupas finas, empunhar as bengalas chiques e beber o champanhe caro, que nunca serão nobres por dentro: só sabem o que vêem do exterior.
Quando James adopta as vestes e atitudes de empregado, a farsa, que de burlesca passa a rondar o grotesca, prossegue. Mas é o criado que decide o que acontece, enquanto os senhores obedecem. Porque por dentro, o criado é senhor, e os senhores são criados. A lição chega com humilhação às avessas: de avental e a servir, James ordena, enquanto os demais, de vestidos e bebendo champanhe, obedecem.
Só não é assim com Sarah, que joga com o jovem patrão nos termos deste: não só aceita o papel, que começou por representar em brincadeira e agora lhe é imposto, como passa mesmo a dar ordens e até a falar rispidamente com o criado fingido. Não nos apressemos, todavia, a julgá-la verdadeira senhora por isso. O que explica a naturalidade da moça não é a verdade de quem ela é por dentro, mas por fora; porque Sarah não traz quem é no interior, e sim no que veste. Por isso é senhora enquanto traz o vestido da patroa, mas será criada quando voltar à farda. É tão forte quanto a armadura que traga, e tão frágil quanto a nudez que exiba: despindo-se, torna-se submissa perante James, ficando à mercê deste. Quando ele, finalmente, lhe rasga a farda, ela chora em desespero: quem é ela, se não puder vestir-se?
A um tempo, Sarah é menos que os criados, porque se estes são prisioneiros da sua natureza interior, Sarah parece vazia por dentro: o que a faz vem de fora. Mas a outro tempo, ela é mais livre até do que os senhores, porque está sempre aberta a definir-se novamente e de outro modo. Com a mesma desfaçatez e facilidade, tanto pode ser criada como senhora, desde que lhe dêem roupa adequada. Pode, no fim do episódio e apesar das dificuldades em arranjar emprego para que alerta Rose, abandonar a casa, porque não está presa a lugares, nem condenada a ser quem quer que seja. Nada a assusta, porque não tem destino, nem conhece etiquetas ou papéis; sabe todas as falas, e todos os vestidos lhe servem, porque é a actriz por excelência. Tem toda a liberdade que é possível desejar: a de quem não é ninguém no princípio, mas tem vocação para todos os papéis; de quem nada tem por que lutar ou perder-se, e portanto, pode conquistar tudo; de quem nada tem de seguro, e por isso, não conhece correntes.
Sarah é livre durante o dia, porque quando se deita, não é ninguém. Com a sua imaginação de riqueza shakespeareana, pode sonhar todas as personagens, porque quando acordar sem roupa, continuará não sendo nenhuma delas. Pode abrir todos os armários e vestir confiante todas as roupas, porque quando se deitar, nenhuma delas terá deixado marca. Devemos invejar o desprendimento de Sarah? A natureza que nos prende e condena dá-nos segurança na mesma medida. A liberdade que nos obriga a deitar e acordar não sendo ninguém, que nos separa dos nossos sonhos e gestos, exige a coragem de abandonarmos tudo o que não nos satisfaça por mero capricho, e de respondermos como cabe quando nos atribuírem um papel inesperado. Não é verdadeiramente a independência que devemos invejar, mas a coragem de viver a mais terrível e ousada e das liberdades: a que nos permite cumprir todos os sonhos, sem nunca podermos chegar a ser o que sonhamos.
É isso que estes criados não chegarão a ser. Pela representação excessiva, fracassam: exageram e caricaturam, porque, no fim de contas, não são o que imitam. Fantocham e parodiam, porque não consegue mais que isso quem só assiste de fora. Bem podem vestir as roupas finas, empunhar as bengalas chiques e beber o champanhe caro, que nunca serão nobres por dentro: só sabem o que vêem do exterior.
Quando James adopta as vestes e atitudes de empregado, a farsa, que de burlesca passa a rondar o grotesca, prossegue. Mas é o criado que decide o que acontece, enquanto os senhores obedecem. Porque por dentro, o criado é senhor, e os senhores são criados. A lição chega com humilhação às avessas: de avental e a servir, James ordena, enquanto os demais, de vestidos e bebendo champanhe, obedecem.
Só não é assim com Sarah, que joga com o jovem patrão nos termos deste: não só aceita o papel, que começou por representar em brincadeira e agora lhe é imposto, como passa mesmo a dar ordens e até a falar rispidamente com o criado fingido. Não nos apressemos, todavia, a julgá-la verdadeira senhora por isso. O que explica a naturalidade da moça não é a verdade de quem ela é por dentro, mas por fora; porque Sarah não traz quem é no interior, e sim no que veste. Por isso é senhora enquanto traz o vestido da patroa, mas será criada quando voltar à farda. É tão forte quanto a armadura que traga, e tão frágil quanto a nudez que exiba: despindo-se, torna-se submissa perante James, ficando à mercê deste. Quando ele, finalmente, lhe rasga a farda, ela chora em desespero: quem é ela, se não puder vestir-se?
A um tempo, Sarah é menos que os criados, porque se estes são prisioneiros da sua natureza interior, Sarah parece vazia por dentro: o que a faz vem de fora. Mas a outro tempo, ela é mais livre até do que os senhores, porque está sempre aberta a definir-se novamente e de outro modo. Com a mesma desfaçatez e facilidade, tanto pode ser criada como senhora, desde que lhe dêem roupa adequada. Pode, no fim do episódio e apesar das dificuldades em arranjar emprego para que alerta Rose, abandonar a casa, porque não está presa a lugares, nem condenada a ser quem quer que seja. Nada a assusta, porque não tem destino, nem conhece etiquetas ou papéis; sabe todas as falas, e todos os vestidos lhe servem, porque é a actriz por excelência. Tem toda a liberdade que é possível desejar: a de quem não é ninguém no princípio, mas tem vocação para todos os papéis; de quem nada tem por que lutar ou perder-se, e portanto, pode conquistar tudo; de quem nada tem de seguro, e por isso, não conhece correntes.
Sarah é livre durante o dia, porque quando se deita, não é ninguém. Com a sua imaginação de riqueza shakespeareana, pode sonhar todas as personagens, porque quando acordar sem roupa, continuará não sendo nenhuma delas. Pode abrir todos os armários e vestir confiante todas as roupas, porque quando se deitar, nenhuma delas terá deixado marca. Devemos invejar o desprendimento de Sarah? A natureza que nos prende e condena dá-nos segurança na mesma medida. A liberdade que nos obriga a deitar e acordar não sendo ninguém, que nos separa dos nossos sonhos e gestos, exige a coragem de abandonarmos tudo o que não nos satisfaça por mero capricho, e de respondermos como cabe quando nos atribuírem um papel inesperado. Não é verdadeiramente a independência que devemos invejar, mas a coragem de viver a mais terrível e ousada e das liberdades: a que nos permite cumprir todos os sonhos, sem nunca podermos chegar a ser o que sonhamos.