Lucius Tarquinius Priscus (616-578 a. C.) foi o quinto rei de Roma.
Grego, viu em Roma terra de oportunidades, e para lá migrou. Rapidamente se fez conhecido: rico, deu dinheiro para projectos públicos, caridade e outros destinos, e assim o seu nome se foi tornando familiar. Por aqui se indicia a linha paradoxal que lhe marca a figura: a sua presença parece crescer na exacta medida da sua ausência. Assim é com a fama: o famoso está em muitos sítios sem precisar de estar fisicamente em nenhum deles.
Subindo na escala social, Priscus acabou por se fazer amigo do rei, tão próximo que, com a morte do monarca, ficou guardião dos dois filhos que ele deixou. Guardou-os, mas sem os servir: não demorou a enviá-los numa expedição, e logo convenceu o Senado a realizar eleições para ser escolhido novo rei o mais depressa possível. Os amigos que já fizera por ali garantiram-lhe, como previa, a eleição. Que nos diz este momento da figura? Tarquinius fez-se eleger aparecendo. E apareceu bem ciente de que para o fazer não basta, nem é sequer preciso, estar presente: essencial é ser visto, seja com os olhos da cara ou com os da mente. Tarquinius notou aos demais que o rei desaparecera e o trono estava vazio. Mestre na arte política da imagem e da oportunidade, fez-se necessário inventando uma crise, e soube mostrar-se providencial a todos os holofotes. Assegurou a ausência dos sucessores e disse presente quando todos o pudessem ver. Viram, votaram, e aí estava ele, feito rei.
Aumentando o Senado com mais uma centena de homens, todos a ele obrigados, Priscus fez sua a vontade deste órgão, crescendo ainda mais em presença. Tão grande se fez esta que, para celebrar as suas vitórias militares, não havia teatro ou estádio de tamanho que bondasse: fez então construir o hipódromo que viria a ser o Circo Máximo, um dos grandes estádios desportivos da Antiguidade, que havia de durar pelos séculos do império romano. Priscus estendia-se no espaço pelas consciências, e no tempo pelas obras.
Não era bastante ter um lugar para celebração. Era preciso um ritual: é pelos rituais que perpetuamos as nossas verdades e inventamos a perenidade. Tarquinius inaugurou um dos mais famosos da Roma Antiga: o Triunfo. Neste, o líder militar desfila pela cidade exibindo os espólios das suas vitórias, seguido pelas tropas e pelos vencidos, humilhados. O Triunfo é, sem dúvida, o momento da exibição mais ostensiva de Priscus: mostra-se e projecta-se de tal modo que é como se propusesse estar em todo o lado – como, de certo modo, estava. Mas a presença, em Tarquinius, tem sempre a sombra da ausência: diz-se que um escravo acompanhava o líder militar ao longo da celebração, lembrando-lhe ao ouvido que era apenas humano e que um dia morreria (memento mori). É possível que este escravo nunca tenha existido, mas a imagem cola bem na verdade da figura de Tarquinius. Aí está a natureza do que dele conhecemos: quando aparece estendido ao máximo, no instante da sua omnipresença, aí está por detrás uma voz a lembrar que ele é efémero, que vai desaparecer e não estará mais em lugar algum. Em todo o lado no espaço, mas só por um instante no tempo, o homem todo-poderoso não é nada, porque depois do seu breve momento, desaparecerá. A imagem mais paradigmática deste ritual talvez seja, por isso, o Triunfo póstumo do imperador Trajano: já estava morto, pelo que teve de ser usado um boneco no seu lugar. Já desaparecera, mas isso não o impediu de aparecer. Também disso foi capaz Tarquinius.
Só desaparecem os que primeiro apareceram, mas em Priscus, a lógica inverte-se: desaparece para poder aparecer, para poder continuar. Isso mesmo se comprova com a sua morte.
Os filhos do rei anterior guardaram rancor contra Tarquinius, e usando um esquema de engano, conseguiram matá-lo à traição. Não lhes serviu de muito, já que foram capturados de imediato. Mas Tanaquil, mulher de Priscus, temendo que com o rei morto, os assassinos, filhos do antigo rei, clamariam pelo trono, convenceu Servius, filho adoptado de Priscus, a alinhar numa fraude ainda maior que a que dera morte ao seu pai. Veio à janela informar a multidão expectante de que a ferida de Priscus era superficial e ele não tardaria a restabelecer-se. No entretanto, deviam obedecer a Servius, que faria de rei até Tarquinius voltar. Servius governou então sempre alegando que cumpria as indicações do seu pai.
Prestigitador de excelência, capaz de se estender no espaço e de enganar o tempo, Priscus soube pagar o preço para poder conitnuar presente: desaparecer. Assim o fazem os fantasmas desde sempre.