No conto "The other town", de Steven Millhauser, as pessoas visitam uma réplica da cidade que habitam, quase perfeitamente idêntica à original, afora estar vazia de moradores. Os replicadores trabalham ali para que tudo, dentro e fora das casas, esteja igual ao original, assegurando que não apenas a natureza se desenvolve nos mesmos termos como os objectos assumem as mesmas posições e até as marcas de acidentes ou vestígios de calamidades são cuidadosamente repetidas.
Os próprios cidadãos não têm seguro o motivo por que mantêm a réplica, avançando diferentes justificações e propósitos. Alguns pretendem mesmo que o melhor será livrarem-se dela. Mas não se dá notícia de uma inquietação que podia facilmente ser alimentada por um olhar atento ao quadro com que deparam.
Um atractivo para algum dos habitantes (e preocupação para outros) é a oportunidade de entrarem nas réplicas das casas dos seus conterrâneos. Com efeito, não se fechando nenhuma porta aos visitantes, estes podem andar por onde bem entenderem na cidade artificial, inclusive nos lugares onde se reproduz o interior dos lares alheios. Desaparece a fronteira da privacidade, e o visitante pode encontrar o que lhe está barrado no original, pois tudo está disposto nos mesmos exactos termos, desde os objectos decorativos à roupa interior ou ao arranjo da cama, com a arrumação, ou desarrumação, correspondentes – nada falta nas réplicas das casas dos vizinhos, excepto os vizinhos.
A ausência dos donos das casas assim invadidas no outro lado do espelho parece bastar aos cidadãos para terem por legítima a entrada e a espionagem – mas quão decisivo é esse vazio? Tem ele força suficiente para despir de relevância, ou significado, o quadro exposto nas casas de imitação?
O exame destas outras casas não permite unicamente ao visitante ter conhecimento de que objectos (e quantos) possui o ausente. Se, num instante, o quarto de dormir da casa alheia está arrumado e organizado, e, nos seguintes, podem ser encontradas peças de roupa, inclusive interior, pelo chão, a cama desfeita, a luz apagada, copos com bebida alcoólica deixados na sala, etc., então não temos meramente informação sobre a localização das coisas num dado momento; temos, mais do que isso, um enredo, encontramos indícios de um episódio sexual. Prosseguindo o exame e alargando a atenção, podemos chegar a mais conclusões, descortinando, por exemplo, uma história romântica, quiçá de traição, ou até criminosa.
O exemplo serve para notar que, estendendo-se no espaço e no tempo a observação dos objectos tocados (ou deixados por tocar) pela pessoa ausente, o que vemos é a vida dela, apesar de ela não estar lá para a viver. No limite, não é preciso encontrar a própria pessoa para a conhecermos por inteiro, e o que isto sugere é que o funcionamento da linguagem se replica na natureza narrativa da interacção humana. Para Wittgenstein, lembre-se, os jogos de linguagem, pela sua estrutura e modo de funcionamento, dispensam o referencial dos termos usados numa conversa: no conhecido exemplo do § 293 das Investigações Filosóficas, se supusermos que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho, que consegue ver a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam o termo "escaravelho" sem disputas quanto ao seu significado (apesar de nenhuma poder garantir que a caixa que o outro traz contém um bicho igual ao da sua), então, conclui o filósofo austríaco, não faz diferença se realmente as caixas guardam algo idêntico, ou diferente, ou se, no limite, estão vazias. Ora, há algo de próximo a funcionar no mundo de "The other town", pois acabamos a concluir que, no limite, para conhecermos por completo a vida, a história, mesmo porventura a personalidade de alguém, não precisamos que ela esteja presente – talvez ela nem precise de existir, ou não mais que o escaravelho dentro da caixa.
A conclusão seguinte é fácil, e não vem por mero espelhamento: as coisas passam-se na cidade-réplica como na original. O que a urbe de imitação sugere, no fim de contas, é que também deste lado do espelho não somos afinal tão essenciais como julgamos, nem sequer à nossa própria vida. Somos talvez, quando muito, um pretexto para que ela vá sendo vivida. Como os escaravelhos dentro da caixa, porém, não é verdadeiramente importante se existimos.