E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 30 de abril de 2021

Divina solidão

   No conto "In the reign of Harad IV", de Steven Millhauser, o protagonista é um artesão ao serviço do rei, perito na criação de pequenas réplicas de edifícios, alimentos, animais, e praticamente tudo o dotado de forma física. Se a princípio a sua arte é admirada na corte e além-fronteiras, com o passar do tempo, vai fazendo cada vez mais minúsculas as suas reproduções, sem nunca perder ou diminuir o cuidado pela exactidão nos pormenores. As suas obras vão-se fazendo cada vez mais invisíveis para o olho humano, até se tornarem inalcançáveis mesmo com lupas, e o miniaturista torna-se ele mesmo uma personagem distante na corte, quase perdido no seu mundo ínfimo.

  Pouco há de mais humano do que atingir esse mundo que adivinhamos por detrás dos panos, no esconderijo das ilusões que nos distraem no quotidiano. Presumivelmente imaginado, esse reino da verdade mantém-se invisível, por não podermos confiar nos nossos sentidos. Mas se não somos capazes de, pela razão ou alucinações, puxar as cortinas e aceder à realidade em si, este artista parece movido pelo fito de lá chegar por meio inverso: em vez de tentarmos aproximar-nos dessa realidade tão distante, vamos pegar nela enquanto ainda está connosco e é, portanto, ilusória, e vamos dar-lhe distância, enchendo-a de realidade, sem chegarmos, ainda assim, a perdê-la. O miniaturista quer criar um mundo mais e mais pequeno, ao ponto de se tornar claro, a dada altura, que ele deseja um reino invisível, que não pode ser descoberto – e parece consegui-lo, a acreditar no fracasso dos seus visitantes em vislumbrarem as suas obras. Não podendo confiar numa divindade que lhe abra a porta ao mundo das coisas em si, verdadeiras ou essenciais, vê-se na necessidade de criar ele mesmo esse mundo para o poder descobrir. E talvez não haja, afinal, gesto mais divino que esse de criar um universo tão pequeno, de pormenores tão ínfimos e distantes, que não se pode lá chegar depois de criado, o toque criador não pode mais encontrá-lo. A distância de um deus que nunca nos visita é, afinal, essa de um artesão que nos fez demasiado minúsculos para nos conseguir encontrar. Por isso mesmo, o seu maior milagre, na Bíblia, seria a vinda de Jesus: o criador faz-se do tamanho impossível das suas criaturas inalcançáveis para poder caminhar entre elas. Foi preciso deixar de ser Deus para o fazer, mas, ainda assim, não pudemos suportar perceber que afinal não somos ainda tão pequenos que Deus não possa chegar a nós, e demos-lhe a morte.
  O conto termina anunciando que a vida do miniaturista seria, doravante, difícil e sem perdão. De que perdão precisaria ele? Pode sem dúvida alçar-se a heresia esta ambição divina criadora de se fazer demasiado distante da obra. Como pode, além disso, o mundo não lhe perdoar esse isolamento, seu e dos seus frutos: é ele o único a poder desfrutar do seu reino, e já esta atitude de exclusão de tudo o mais, de suficiência dos próprios poderes criadores e de se bastar a si mesmo não apenas na satisfação com a sua arte como igualmente na imersão no próprio universo criado, se mostra difícil de compreender e aceitar. O artista não quer apenas bastar-se a si mesmo e ficar quieto, quer dispensar o mundo afirmando só precisar de si para criar outro – não reclama sequer espaço, porque o seu mundo invisível e ínfimo ameaça poder ser deixado, não em qualquer lugar, mas até fora de lugar algum.
  A ambição deste artesão pode, não obstante, ser, no fim de contas, própria de qualquer artista. Porque talvez seja essencial à obra de arte essa inacessibilidade, essa separação definitiva do criador. Quando Alberto Caeiro se despede dos versos que partem pela janela (XLVIII), fá-lo aceitando a inevitabilidade de eles partirem para serem versos e a impossibilidade de regressarem. Ora, o nosso protagonista vem a entender que a única maneira de garantir a separação definitiva do esculpido das mãos do escultor é privar também os olhos. E com esta separação, claro, assegura que a obra permanece, não morre com o criador, propósito último de quem cria. A sua arte e a sua ambição, porém, preparam-lhe uma armadilha cruel. O mundo minúsculo que ele criou já não é sequer vislumbrado pelos seus visitantes, e engolido por esse mundo, ele próprio já desapareceu, de certo modo, do universo que partilhava com a generalidade das pessoas. O seu sucesso será a sua condenação definitiva: pois quando conseguir finalmente fabricar esse mundo tão ínfimo e distante que já nem ele consiga aceder-lhe, terá terminado o seu trabalho e ficará só. Sozinho como um deus.