E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 30 de novembro de 2021

Cabeça perdida


John Quidor

  Em "The legend of Sleepy Hollow", Washington Irving conta como Ichabod Crane é perseguido por uma figura espectral que parece corresponder ao protagonista de vários contos de terror: o fantasma de um cavaleiro sem cabeça que aparece para procurar a cabeça perdida numa batalha.

 Em Monstros, José Gil explica que o fascínio exercido pelos monstros se deve desde logo à superabundância da realidade que eles oferecem. O monstro é sempre um excesso de presença, mesmo que a sua anomalia passe por lhe faltar alguma parte de um corpo normal. Não manifesta privações ou faltas enquanto entidade, nem é apreendido como menos que um homem ou que um corpo, quando aparece, por exemplo, sem cabeça, ou com um único olho. Fazem-se uma categoria à parte tornando um traço presente a falta de órgãos: um ciclope não é uma criatura a que falta um olho, mas sim uma com um olho na testa.
  Como compreender a esta luz o cavaleiro do conto de  Irving? 
  Ele parece um monstro, criatura de história de terror, reforçando-se isto na impressão causada: Ichabod, ao vê-lo, não sente compaixão por lhe faltar a cabeça, antes se assusta com aquela presença excessiva e foge dela. A suposta privação apenas confirma a completude da entidade avistada, já anunciada pelo nome: ele é o cavaleiro sem cabeça, precisa, portanto, de não ter cabeça para o ser, para ser quem (e o que) é.
  Estranho parece, no entanto, o seu propósito: não está ali simplesmente para ser olhado; faz parte da sua figura o seu objectivo, o seu intento de cortar a cabeça a quem passa; quer uma cabeça para si. Esta fome que o move denuncia porventura que ele afinal não está tão instalado na monstruosidade como nos apressamos a pensar: o cavaleiro mostra-se insatisfeito com a sua privação. Procurando a cabeça que lhe falta, talvez queira ser humano.
  Conseguirá? Na verdade, ele parece não somente vir do plano espectral como estar preso ali. Deste modo, não adianta quantas cabeças corte, seguirá faltando-lhe a sua, continuará sendo monstro. Mas também seguirá faminto. E uma fome que se sacia por umas horas, mas sempre volta, uma privação que só é iludida por instantes, para tornar a confirmar a sua realidade, não é o sinal mais ilustrativo do que é ser humano?