No filme Pleasantville (Gary Ross), David não ocupa espaço no mundo: é introvertido, não tem amigos, passa o tempo em casa. O único interesse que lhe conhecemos é o de ver a série Pleasantville. Ele é o espectador por definição: existe apenas como aquele-que-vê. Quando fica preso na série de que tanto gosta, começa por pedir para sair de lá. O velho que o condena a ser um personagem de televisão não o compreendeu: David adora aquele mundo, mas só a partir de fora, não vivendo nele. Só através de um écran. Parece assim, no fundo, querer ser apenas um olho. No seu mundo, ele não vive - i. e., não actua -, a sua casa é apenas um lugar onde ele pode espreitar o mundo-Pleasantville. Aqui, pelo contrário, ele é um personagem, tem de actuar, de representar.
No episódio "Sixteen-millimeter shrine", da série The Twilight Zone, Barbara Trenton é uma actriz esquecida que passa o tempo a ver os filmes da sua juventude. Não quer viver no mundo em que envelheceu e deseja retornar ao lugar de maravilha que habitou em tempos. É o que acaba por conseguir no fim do episódio: transpõe a barreira do écran para morar do outro lado, entre os personagens dos filmes.
David e Barbara fazem a mesma viagem, mas encaram-na de modo diverso.
O desejo de Barbara tem algo de intrinsecamente humano. Não quer assistir, quer actuar. Não quer ser quem olha, mas (apenas) olhada. Quer ser o objecto do olhar do outro. Não quer ser espectadora: quer viver diante do espectador.
Já a atitude de David aproxima-o do divino. Não é Deus o sujeito-que-olha por excelência, o espectador omnipotente que tudo vê? Mas Deus é, ou quer ser, apenas um olho e, para cumprir esse desejo, precisa de um outro mundo para ver. O mundo humano oferece a Deus o mesmo que Pleasantville oferece a David: a hipótese de ser apenas um espectador e nunca um personagem. Por isso Deus teve de criar uma criatura que só se realiza – tomando consciência de si – quando se apercebe de ser vista. Uma criatura que precisa de ser vista é, de facto, uma obra feita à sua medida. E por isso o desejo de Barbara é tão humano: o seu mundo de fantasia só é um paraíso na medida em que é um filme, uma projecção – ou seja, na medida em que lhe permite exibir-se diante de um público. A frustração humana pela ausência das provas da existência de Deus não passa, afinal, de uma angústia por não podermos ter a certeza de que estamos a ser vistos.
Claro que Jesus teve de morrer. Nenhum ser humano quer um deus que actue, um deus que intervenha. Um deus que aparece deixa de ver para passar a ser visto. Por isso, Jesus é a negação intrínseca de Deus, o oposto do deus que o ser humano quer. O deus que não aparece também é assim, por seu lado, uma entidade construída à medida do seu criador exibicionista (a pessoa humana). Também nós criámos um deus à nossa medida. E daí que, na deliciosa ironia de Gonçalo M. Tavares (O Senhor Juarroz), o senhor Juarroz resolva desligar a electricidade quando pensa num deus que, em vez de nunca aparecer, estivesse sempre a tocar à campainha.
As pessoas não são, porém, tão cruéis com o deus que criaram como este o é para com as pessoas. Perante o pecado original de Deus (apareceu no mundo, quis, como Barbara, ser uma personagem), as pessoas tiveram a coragem de o perdoar rejeitando essa intervenção e deixando-o ser apenas Aquele-que-vê. Porque a armadilha em que David caiu, se o condena a ser homem quando ele queria ser Deus, também alerta Deus para que não queira ser homem. É, no fundo, um aviso para que Deus se lembre de que um écran é uma barreira que nem Ele (ou especialmente Ele não) pode ultrapassar.