E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 23 de agosto de 2015

O espectador irrequieto



  No filme Pleasantville (Gary Ross), David não ocupa espaço no mundo: é introvertido, não tem amigos, passa o tempo em casa. O único interesse que lhe conhecemos é o de ver a série Pleasantville. Ele é o espectador por definição: existe apenas como aquele-que-vê. Quando fica preso na série de que tanto gosta, começa por pedir para sair de lá. O velho que o condena a ser um personagem de televisão não o compreendeu: David adora aquele mundo, mas só a partir de fora, não vivendo nele. Só através de um écran. Parece assim, no fundo, querer ser apenas um olho. No seu mundo, ele não vive - i. e., não actua -, a sua casa é apenas um lugar onde ele pode espreitar o mundo-Pleasantville. Aqui, pelo contrário, ele é um personagem, tem de actuar, de representar.


  No episódio "Sixteen-millimeter shrine", da série The Twilight Zone, Barbara Trenton é uma actriz esquecida que passa o tempo a ver os filmes da sua juventude. Não quer viver no mundo em que envelheceu e deseja retornar ao lugar de maravilha que habitou em tempos. É o que acaba por conseguir no fim do episódio: transpõe a barreira do écran para morar do outro lado, entre os personagens dos filmes. 

  David e Barbara fazem a mesma viagem, mas encaram-na de modo diverso.
  O desejo de Barbara tem algo de intrinsecamente humano. Não quer assistir, quer actuar. Não quer ser quem olha, mas (apenas) olhada. Quer ser o objecto do olhar do outro. Não quer ser espectadora: quer viver diante do espectador.
  Já a atitude de David aproxima-o do divino. Não é Deus o sujeito-que-olha por excelência, o espectador omnipotente que tudo vê? Mas Deus é, ou quer ser, apenas um olho e, para cumprir esse desejo, precisa de um outro mundo para ver. O mundo humano oferece a Deus o mesmo que Pleasantville oferece a David: a hipótese de ser apenas um espectador e nunca um personagem. Por isso Deus teve de criar uma criatura que só se realiza – tomando consciência de si – quando se apercebe de ser vista. Uma criatura que precisa de ser vista é, de facto, uma obra feita à sua medida. E por isso o desejo de Barbara é tão humano: o seu mundo de fantasia só é um paraíso na medida em que é um filme, uma projecção – ou seja, na medida em que lhe permite exibir-se diante de um público. A frustração humana pela ausência das provas da existência de Deus não passa, afinal, de uma angústia por não podermos ter a certeza de que estamos a ser vistos.
  Claro que Jesus teve de morrer. Nenhum ser humano quer um deus que actue, um deus que intervenha. Um deus que aparece deixa de ver para passar a ser visto. Por isso, Jesus é a negação intrínseca de Deus, o oposto do deus que o ser humano quer. O deus que não aparece também é assim, por seu lado, uma entidade construída à medida do seu criador exibicionista (a pessoa humana). Também nós criámos um deus à nossa medida. E daí que, na deliciosa ironia de Gonçalo M. Tavares (O Senhor Juarroz), o senhor Juarroz resolva desligar a electricidade quando pensa num deus que, em vez de nunca aparecer, estivesse sempre a tocar à campainha.
  As pessoas não são, porém, tão cruéis com o deus que criaram como este o é para com as pessoas. Perante o pecado original de Deus (apareceu no mundo, quis, como Barbara, ser uma personagem), as pessoas tiveram a coragem de o perdoar rejeitando essa intervenção e deixando-o ser apenas Aquele-que-vê. Porque a armadilha em que David caiu, se o condena a ser homem quando ele queria ser Deus, também alerta Deus para que não queira ser homem. É, no fundo, um aviso para que Deus se lembre de que um écran é uma barreira que nem Ele (ou especialmente Ele não) pode ultrapassar.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A impotência paradoxal


  No filme Le Boucher (Claude Chabrol), quando chega ao lugar do crime, Hélène encontra o isqueiro que oferecera a Paul junto do cadáver e rapidamente o apanha e esconde. Mais tarde, nada diz à polícia.
  Que laço é este que se criou entre os dois? Que ligação é essa que se estabelece entre eles e que Hélène não pode deixar cair? Parece claro que ela não existia antes: é a própria descoberta da prova da culpa de Paul que faz nascer o fio que o prende a Hélène. Mais do que invisível, essa ligação é frágil: Hélène tem de a proteger a todo o custo. Mas é inequívoca. Tão clara e definitiva que impõe logo as suas barreiras: todos os outros (que não eles os dois) são isso mesmo e nada mais (ou menos): outros. Não há certo ou errado, crime ou inocência - há, isso sim, fora e dentro. E todos - polícia, aldeões, etc. - estão fora, porque não partilham aquela ligação.
  Que a ligação se estabeleça precisamente através do isqueiro apenas a torna mais evidente. Pois foi Hélène que o ofereceu a Paul. Paul deixa o isqueiro no lugar do crime, Hélène encontra-o e é como se ele lhe dissesse: "quando o fiz, tu estavas comigo". Ela aceita-o. Que há nesse laço que a leva a acolhê-lo, a protegê-lo - mesmo implicando isso partilhar a culpa do criminoso?
  Talvez seja justamente essa culpa que lhe dá força. As ligações sociais fazem-se, na sua generalidade, num espaço-de-todos, o espaço da não exclusão, em que todos, à partida, podem entrar (e sair) quando quiserem. As ligações só ganham força, todavia, à medida que a sua maior definição implica barreiras mais rigorosas. É assim com a amizade. É assim, sobretudo, com o amor, cujo funcionamento tem por base o espaço privado, fechado. Ora, a ligação amorosa entre Paul e Hélène, já o sabíamos (pois ela já o esclarecera) é impossível, pelo menos por via directa. Paul enceta então a via de substituição. Os filmes de Hitchcock ensinam-nos que, se é verdade que a lógica amorosa pode tornar-se uma lógica assassina, é igualmente certo que a lógica assassina pode revelar-se amorosa (ou, pelo menos, intrinsecamente sexual). Chabrol aprendeu bem essa lição: o sexo impossível entre Hélène e Paul consuma-se pelo homicídio. Mas não é tanto Paul que o propõe a Hélène, e sim o inverso: é esta quem, logo a seguir a explicar àquele que a relação sexual entre eles é impossível, lhe oferece o isqueiro. Ou seja, é ela quem imediatamente sugere que o sexo é possível por um meio indirecto. Ao encontrar o isqueiro, Hélène descobre apenas que Paul concretizou isso mesmo. Ao contrário de Guy Haines, em Strangers on a Train, ela aceita a ligação (também ali, note-se, proposta no isqueiro que o assassino Bruno recebeu de Guy).
  Como nos filmes de Hitchcock, o sexo entre os personagens assenta na culpa que eles têm de partilhar - pois é esse o elemento que lhes permite construírem o seu espaço privado. Um desses muitos filmes que ecoam em Le Boucher, todavia, poderia sugerir um desmentido do que se vem dizendo. Refiro-me a Marnie. Pois aí Mark propõe-se precisamente a partilhar a culpa de Marnie antes de forçar a união entre ambos. Ora, se assim é, não haveria razão para Marnie rejeitar essa união, como de facto o faz. Este desmentido parece até confirmar-se em Le Boucher: é verdade que Hélène acaba por tentar salvar Paul e até chega a beijá-lo quando este lhe pede que o faça. Mas não encontramos aqui senão a aparência do amor tradicional. Parece até mais que Hélène cede à chantagem emocional de Paul: o beijo é, no fundo, a consumação da violação. Paul, ainda que educadamente, viola Hélène. Atente-se na postura de Hélène depois do beijo. Marnie reagia com horror à cor vermelha, bem como a aproximações de homens. Mas perante a violência de Mark, ela paralisa em choque. É precisamente uma Marnie chocada e paralisada que, no fim de Le Boucher, beija passivamente Paul e fica a olhar sem reacção a luz vermelha do elevador.
  Em suma, esta circunstância - a de que a consumação sexual entre o casal não se dá verdadeiramente, ou só se dá através da violação, apesar da culpa que partilham - parece desmentir o que tinha dito sobre a harmonia da relação assentar na partilha da culpa. Mas não é assim. Pelo contrário, estes casos apenas confirmam o que vinha transmitindo. A lição hitchcockiana está aqui plenamente presente. É o assassínio o acto sexual por excelência, é ele que - mais ainda do que a penetração propriamente dita - permite a dita consumação, mesmo que, se se quiser, por via simbólica. É esta via simbólica que é desejada por Marnie e Hélène e é nela que Mark e Paul se revelam impotentes. Isto é tão claro no caso daquele (ao procurar legalizar toda a sua relação com Marnie) como neste (a final, Paul não consegue matar Hélène, acabando por se esfaquear a si mesmo). "Podes violar-me, mas continuas incapaz de me matar", parece dizer o olhar vazio e abandonado de Marnie e Hélène. É essa a paradoxal impotência de Mark e Paul. Ao inverso do assassino impotente tradicional - que, frustrado por não conseguir a penetração directa, mata a mulher que ri da sua impotência -, tanto Mark como Paul, incapazes de consumarem simbolicamente a penetração, cedem à brutalidade da relação sexual directa. O horror da sua acção aparece quando percebemos que é entrando na mulher que a deixam terrivelmente vazia. E é esse vazio que exibe o olhar à deriva de Hélène e Marnie.