E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A impotência paradoxal


  No filme Le Boucher (Claude Chabrol), quando chega ao lugar do crime, Hélène encontra o isqueiro que oferecera a Paul junto do cadáver e rapidamente o apanha e esconde. Mais tarde, nada diz à polícia.
  Que laço é este que se criou entre os dois? Que ligação é essa que se estabelece entre eles e que Hélène não pode deixar cair? Parece claro que ela não existia antes: é a própria descoberta da prova da culpa de Paul que faz nascer o fio que o prende a Hélène. Mais do que invisível, essa ligação é frágil: Hélène tem de a proteger a todo o custo. Mas é inequívoca. Tão clara e definitiva que impõe logo as suas barreiras: todos os outros (que não eles os dois) são isso mesmo e nada mais (ou menos): outros. Não há certo ou errado, crime ou inocência - há, isso sim, fora e dentro. E todos - polícia, aldeões, etc. - estão fora, porque não partilham aquela ligação.
  Que a ligação se estabeleça precisamente através do isqueiro apenas a torna mais evidente. Pois foi Hélène que o ofereceu a Paul. Paul deixa o isqueiro no lugar do crime, Hélène encontra-o e é como se ele lhe dissesse: "quando o fiz, tu estavas comigo". Ela aceita-o. Que há nesse laço que a leva a acolhê-lo, a protegê-lo - mesmo implicando isso partilhar a culpa do criminoso?
  Talvez seja justamente essa culpa que lhe dá força. As ligações sociais fazem-se, na sua generalidade, num espaço-de-todos, o espaço da não exclusão, em que todos, à partida, podem entrar (e sair) quando quiserem. As ligações só ganham força, todavia, à medida que a sua maior definição implica barreiras mais rigorosas. É assim com a amizade. É assim, sobretudo, com o amor, cujo funcionamento tem por base o espaço privado, fechado. Ora, a ligação amorosa entre Paul e Hélène, já o sabíamos (pois ela já o esclarecera) é impossível, pelo menos por via directa. Paul enceta então a via de substituição. Os filmes de Hitchcock ensinam-nos que, se é verdade que a lógica amorosa pode tornar-se uma lógica assassina, é igualmente certo que a lógica assassina pode revelar-se amorosa (ou, pelo menos, intrinsecamente sexual). Chabrol aprendeu bem essa lição: o sexo impossível entre Hélène e Paul consuma-se pelo homicídio. Mas não é tanto Paul que o propõe a Hélène, e sim o inverso: é esta quem, logo a seguir a explicar àquele que a relação sexual entre eles é impossível, lhe oferece o isqueiro. Ou seja, é ela quem imediatamente sugere que o sexo é possível por um meio indirecto. Ao encontrar o isqueiro, Hélène descobre apenas que Paul concretizou isso mesmo. Ao contrário de Guy Haines, em Strangers on a Train, ela aceita a ligação (também ali, note-se, proposta no isqueiro que o assassino Bruno recebeu de Guy).
  Como nos filmes de Hitchcock, o sexo entre os personagens assenta na culpa que eles têm de partilhar - pois é esse o elemento que lhes permite construírem o seu espaço privado. Um desses muitos filmes que ecoam em Le Boucher, todavia, poderia sugerir um desmentido do que se vem dizendo. Refiro-me a Marnie. Pois aí Mark propõe-se precisamente a partilhar a culpa de Marnie antes de forçar a união entre ambos. Ora, se assim é, não haveria razão para Marnie rejeitar essa união, como de facto o faz. Este desmentido parece até confirmar-se em Le Boucher: é verdade que Hélène acaba por tentar salvar Paul e até chega a beijá-lo quando este lhe pede que o faça. Mas não encontramos aqui senão a aparência do amor tradicional. Parece até mais que Hélène cede à chantagem emocional de Paul: o beijo é, no fundo, a consumação da violação. Paul, ainda que educadamente, viola Hélène. Atente-se na postura de Hélène depois do beijo. Marnie reagia com horror à cor vermelha, bem como a aproximações de homens. Mas perante a violência de Mark, ela paralisa em choque. É precisamente uma Marnie chocada e paralisada que, no fim de Le Boucher, beija passivamente Paul e fica a olhar sem reacção a luz vermelha do elevador.
  Em suma, esta circunstância - a de que a consumação sexual entre o casal não se dá verdadeiramente, ou só se dá através da violação, apesar da culpa que partilham - parece desmentir o que tinha dito sobre a harmonia da relação assentar na partilha da culpa. Mas não é assim. Pelo contrário, estes casos apenas confirmam o que vinha transmitindo. A lição hitchcockiana está aqui plenamente presente. É o assassínio o acto sexual por excelência, é ele que - mais ainda do que a penetração propriamente dita - permite a dita consumação, mesmo que, se se quiser, por via simbólica. É esta via simbólica que é desejada por Marnie e Hélène e é nela que Mark e Paul se revelam impotentes. Isto é tão claro no caso daquele (ao procurar legalizar toda a sua relação com Marnie) como neste (a final, Paul não consegue matar Hélène, acabando por se esfaquear a si mesmo). "Podes violar-me, mas continuas incapaz de me matar", parece dizer o olhar vazio e abandonado de Marnie e Hélène. É essa a paradoxal impotência de Mark e Paul. Ao inverso do assassino impotente tradicional - que, frustrado por não conseguir a penetração directa, mata a mulher que ri da sua impotência -, tanto Mark como Paul, incapazes de consumarem simbolicamente a penetração, cedem à brutalidade da relação sexual directa. O horror da sua acção aparece quando percebemos que é entrando na mulher que a deixam terrivelmente vazia. E é esse vazio que exibe o olhar à deriva de Hélène e Marnie.

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