E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 17 de maio de 2016

Onde a magia se esconde

 

  No livro The Wonderful Wizard of Oz (L. Frank Baum), quando Dorothy e os amigos conseguem finalmente matar a Bruxa Má do Oeste e exigem ao feiticeiro que cumpra as suas promessas, descobrem que este é apenas um impostor. A sensação de desilusão que os invade assalta igualmente o leitor: afinal não há magia. Oz é capaz apenas de ilusões produzidas com maquinaria.
  É claro que se o feiticeiro é charlatão, pelo caminho não faltam encantos: bruxas, fadas, um chapéu especial que permite dar ordens a macacos voadores, árvores ferozes, etc. E, no entanto, o surgimento do homem escondido atrás da cortina parece transformar tudo em faz-de-conta. Esta impressão é ainda mais forte no filme The Wizard of Oz (Victor Fleming), onde a revelação do impostor quase traz de volta à colorida Cidade Esmeralda os tons sépia do início do filme.
  Disse Jorge Luís Borges sobre o Bartleby de Melville: "Es como si Melville hubiera escrito:  Basta que sea irracional un sólo hombre para que otros lo sean y para que lo sea el universo". Algo de semelhante sucede com o feiticeiro de Oz: parece bastar a revelação de que este homem é um impostor para toda a magia desaparecer do mundo. E soa-nos assim ridícula a felicidade do espantalho quando Oz lhe enche a cabeça de farelos, como se fossem miolos; ou a do lenhador de latão, quando recebe, como coração, uma almofada de serradura. A sua alegria reveste-se do despropósito infantil de ver coisas com a imaginação e não com a razão. Porque agora que a cortina foi aberta e descobrimos o homem por detrás dela, já sabemos, adultos descrentes, que a magia não existe. O espantalho, o leão e o lenhador, pelo contrário, não o sabem, porque eles, no fim de contas, seguiram a famosa recomendação dada no filme pelo feiticeiro: "Pay no attention to that man behind the curtain!".
  A humanidade de Oz faz-nos esquecer toda a magia que habita aquele universo. Mas ela continua lá. E cá também. Habituámo-nos tanto a ela que deixámos de a ver. Os milagres não têm por que acontecer somente em uma ocasião; mas é só perante esses – que têm lugar apenas uma vez – que falamos em milagres. É como se, aos nossos olhos, um milagre morresse de cada vez que se repete. Mas não é por o sol ter nascido hoje que o seu nascimento amanhã será menos espectacular. É o que nos explica Chesterton: "A tree grows fruit because it is a magic tree. Water runs downhill because it is bewitched. The sun shines because it is bewitched." (G. K. Chesterton, Orthodoxy). Se um fruto se desprender do ramo da árvore e fugir disparado para o céu ficaremos maravilhados. Mas porque ele tende a cair ao chão sempre que se desprende achamos que a queda não tem mistério. Como se essa queda fosse menos mágica por já a termos visto antes. A magia não mora na novidade e sim no oculto: eu sei que o fruto cai devido à gravidade. Mas "gravidade" é apenas o nome do feitiço. Se o fruto cai é por estar enfeitiçado.
  Dizia-se no livro Peter and Wendy (J. M. Barrie) que uma fada morre de cada vez que alguém diz que não acredita em fadas. É um pouco assim que, de facto, a magia funciona. Oz é afinal um impostor, a almofada de serradura é um coração a fingir, como os farelos não são verdadeiros miolos. Mas a abóbora da Cinderela também não é um verdadeiro coche. E, no entanto, é este coche que a leva ao baile. O espantalho tem farelos no lugar de miolos, mas pensa muito bem, assim como o lenhador com uma almofada no lugar do coração tem sempre bons sentimentos. A magia dos contos de fadas torna verdadeiras as coisas de faz-de-conta. É esta a magia que desprezamos e que, por isso, deixamos de ver. Mas esquecemos que as coisas não são apenas mágicas por aquilo que não são, mas sobretudo por aquilo que são. Parece-nos disparatada a história da bruxa que transforma o príncipe num sapo. Mas aceitamos como banal que um ovo se transforme numa galinha.
  Podemos rir-nos do ridículo do espantalho, do leão e do lenhador, por verem a magia onde ela não existe. Mas não há maior ridículo que o nosso: onde a magia existe, não a vemos.

segunda-feira, 2 de maio de 2016

"To look upon your face always"


    No episódio "Fruit of the poisonous tree" (Bryan Spicer), da série Once Upon a Time, um rei encontra uma lâmpada mágica, usa o primeiro desejo para libertar o génio e o segundo para oferecer ao génio o terceiro desejo. Mais tarde, o génio conhece a rainha e apaixona-se por ela. Para a libertar do rei, que ela não ama, e acreditando que poderão ficar juntos, o génio mata o rei que lhe dera a liberdade. A rainha rejeita, porém, o génio, agora que este já cumpriu o papel que ela lhe reservara. Apesar da traição, o génio continua a amar a rainha e resolve usar o terceiro desejo para ficar com ela (“I wish to be with you forever, to look upon your face always, to never leave your side). O seu desejo é satisfeito: é condenado a viver no espelho da rainha.

    Nós somos aquilo que vemos. Esta verdade é porventura mais evidente quando nos olhamos ao espelho: é olhando o espelho que nos descobrimos. Aquele que os nossos olhos descobrem é quem nós somos. Mas a ideia confirma-se igualmente em outros momentos da nossa vida. Quando temos medo ou vergonha de que descubram aquilo que vemos – seja porque espreitamos ilicitamente alguém ou porque aquilo que vemos é um objecto cujo prazer queremos manter secreto, não queremos partilhar –, também aí estamos, afinal, a identificar-nos com o que vemos. Porque a vergonha daquilo que vemos só se justifica na medida em que nos colocamos no lugar do que é visto: a exposição do que olhamos transforma-se assim numa exposição de nós mesmos.
    É esta identificação que nos permite compreender com ainda mais clareza a concretização do desejo do génio. Porque ama a rainha, o génio não vê nada a não ser ela. Pelo que, em bom rigor, o seu desejo, levado à letra, já estava concretizado antes de ele o formular. O que pede então verdadeiramente o génio? Precisamente porque, de certo modo, somos aquilo que vemos, ele quer que o outro lado desta verdade se concretize: ele já vê aquilo em que se tornou e agora quer tornar-se naquilo que vê. Ele não pode, claro, tornar-se na rainha, pois ele permanece um outro para ela – i. e., eles mantêm-se duas pessoas diferentes. Todavia, resta-lhe ainda uma possibilidade de se identificar com ela: embora não possa deixar de ser um outro para a rainha, ele pode, em alternativa, deixar de ser um outro que lhe é completamente estranho, para passar a ser o seu (dela) outro. É assim que ele se torna o seu reflexo: pois este não é senão o outro que o espelho nos devolve, com o qual nos identificamos pelo olhar; o nosso reflexo é sempre o nosso outro.
    Isto não implica nenhuma transformação na rainha: ela mantém-se quem é. E mesmo o que vê no espelho, afinal, não varia: precisamente porque nos identificamos com o que vemos e porque o génio apenas a vê a ela, ver o génio no espelho é, afinal, ver-se a si mesma. E concretiza assim o vaticínio do génio, proferido quando ofereceu à rainha o espelho e lhe quis explicar porque o fazia: "So you can see me the way I see you". Porque, no fim de contas, a rainha vai continuar a ver-se a si mesma sempre que se olhar ao espelho. Mas vai ver-se através dos olhos de um outro. E assim descobrimos uma lição final que esta história nos oferece. Já sabíamos que ao olharmo-nos no espelho víamos o outro que mora em nós. Mas surge-nos agora uma outra verdade, igualmente esclarecedora: quando nos olhamos ao espelho, é com os olhos de um outro que nos vemos a nós mesmos.