E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 2 de maio de 2016

"To look upon your face always"


    No episódio "Fruit of the poisonous tree" (Bryan Spicer), da série Once Upon a Time, um rei encontra uma lâmpada mágica, usa o primeiro desejo para libertar o génio e o segundo para oferecer ao génio o terceiro desejo. Mais tarde, o génio conhece a rainha e apaixona-se por ela. Para a libertar do rei, que ela não ama, e acreditando que poderão ficar juntos, o génio mata o rei que lhe dera a liberdade. A rainha rejeita, porém, o génio, agora que este já cumpriu o papel que ela lhe reservara. Apesar da traição, o génio continua a amar a rainha e resolve usar o terceiro desejo para ficar com ela (“I wish to be with you forever, to look upon your face always, to never leave your side). O seu desejo é satisfeito: é condenado a viver no espelho da rainha.

    Nós somos aquilo que vemos. Esta verdade é porventura mais evidente quando nos olhamos ao espelho: é olhando o espelho que nos descobrimos. Aquele que os nossos olhos descobrem é quem nós somos. Mas a ideia confirma-se igualmente em outros momentos da nossa vida. Quando temos medo ou vergonha de que descubram aquilo que vemos – seja porque espreitamos ilicitamente alguém ou porque aquilo que vemos é um objecto cujo prazer queremos manter secreto, não queremos partilhar –, também aí estamos, afinal, a identificar-nos com o que vemos. Porque a vergonha daquilo que vemos só se justifica na medida em que nos colocamos no lugar do que é visto: a exposição do que olhamos transforma-se assim numa exposição de nós mesmos.
    É esta identificação que nos permite compreender com ainda mais clareza a concretização do desejo do génio. Porque ama a rainha, o génio não vê nada a não ser ela. Pelo que, em bom rigor, o seu desejo, levado à letra, já estava concretizado antes de ele o formular. O que pede então verdadeiramente o génio? Precisamente porque, de certo modo, somos aquilo que vemos, ele quer que o outro lado desta verdade se concretize: ele já vê aquilo em que se tornou e agora quer tornar-se naquilo que vê. Ele não pode, claro, tornar-se na rainha, pois ele permanece um outro para ela – i. e., eles mantêm-se duas pessoas diferentes. Todavia, resta-lhe ainda uma possibilidade de se identificar com ela: embora não possa deixar de ser um outro para a rainha, ele pode, em alternativa, deixar de ser um outro que lhe é completamente estranho, para passar a ser o seu (dela) outro. É assim que ele se torna o seu reflexo: pois este não é senão o outro que o espelho nos devolve, com o qual nos identificamos pelo olhar; o nosso reflexo é sempre o nosso outro.
    Isto não implica nenhuma transformação na rainha: ela mantém-se quem é. E mesmo o que vê no espelho, afinal, não varia: precisamente porque nos identificamos com o que vemos e porque o génio apenas a vê a ela, ver o génio no espelho é, afinal, ver-se a si mesma. E concretiza assim o vaticínio do génio, proferido quando ofereceu à rainha o espelho e lhe quis explicar porque o fazia: "So you can see me the way I see you". Porque, no fim de contas, a rainha vai continuar a ver-se a si mesma sempre que se olhar ao espelho. Mas vai ver-se através dos olhos de um outro. E assim descobrimos uma lição final que esta história nos oferece. Já sabíamos que ao olharmo-nos no espelho víamos o outro que mora em nós. Mas surge-nos agora uma outra verdade, igualmente esclarecedora: quando nos olhamos ao espelho, é com os olhos de um outro que nos vemos a nós mesmos.

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