E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 31 de dezembro de 2016

Os brinquedos esquecidos


  Durante o arco "Dressrosa" da série de animação One Piece (Eiichiro Oda), os Piratas do Chapéu de Palha chegam à ilha Dressrosa, governada pelo Schichibukai Donquixote Doflamingo, e encontram uma população composta por seres humanos e brinquedos vivos. Descobrem que esses brinquedos são na verdade pessoas transformadas por acção dos poderes especiais de Sugar, subordinada de Doflamingo, com o intuito de melhor controlar a população. Depois de convertidas em brinquedos, as pessoas são esquecidas pelos seus familiares e amigos e é como se nunca tivessem existido – para além de deixarem de ter vontade própria, pois os seus corpos de brinquedo obedecem a todas as ordens que recebem.

  Não é surpreendente constatar que, uma vez brinquedos, as vítimas têm de obedecer aos comandos que lhes são dirigidos. Com efeito, um brinquedo é, por definição, destituído de vontade própria. Pode ser tudo o que se quiser, viver todas as aventuras, possíveis e impossíveis, realizar todo o tipo de feitos e sofrer todo e qualquer evento que possa ser imaginado – os seus limites são os da imaginação. Mas a vontade pertence sempre a outrem. Se o brinquedo está morto, é apenas porque é incapaz de imaginar: a sua vida mora na imaginação de quem brinca com ele.
  Mais difícil de perceber, à partida, é a outra consequência da metamorfose: porque são as vítimas esquecidas por toda a gente depois de transformadas?
  A sujeição trágica dos brinquedos ao esquecimento é bem ilustrada no filme Toy Story 2 (John Lasseter, Lee Unkrich, Ash Brannon), no qual o brinquedo Woody é raptado para ser vendido a um museu. Colocado perante a alternativa entre voltar ao seu dono – o qual acabará um dia por crescer e, muito provavelmente, abandoná-lo – e passar o resto de um tempo indefinido em exposição, Woody prefere a primeira opção, porque, no fim de contas, o destino de um brinquedo mora nas mãos das crianças.
  A brincadeira é a vida possível de um brinquedo. Para este, uma eternidade passada numa montra, sem ninguém para lhe pegar ou brincar consigo, é, afinal, morrer. Cada brincadeira tem a sombra trágica que lhe desenham os limites da efemeridade. Brincadeira nenhuma é eterna e, por isso, a vida do brinquedo só dura enquanto as mãos da criança permanecerem suficientemente pequenas para brincar. Mas privar-se de toda e qualquer brincadeira, escapar à perda de quem lhe dava a pouca vida que podia esperar, essa seria a verdadeira morte para Woody. Não podemos morrer se não chegarmos a nascer – mas, no fim de contas, privar-se da morte é a morte mais definitiva de todas. Woody escolheu viver.
  O brinquedo está condenado a lembrar a criança que desapareceu. A criança esquece, tem de esquecer, para continuar criança. Na verdade, se os brinquedos são abandonados, isso não se deve a que o seu dono, criança esquecida, os tenha olvidado. Pelo contrário, é precisamente porque deixou de ser criança que ele ainda os recorda. Os brinquedos lembram ao adulto a criança que ele foi e já não é, já não poderá ser nunca mais. A brincadeira, efémera por definição, traz sempre em si uma promessa impossível de eternidade: se for capaz de esquecer-se de si, a criança pode continuar criança. Se puder esquecer-se de crescer, ela continuará a ser quem é. A criança não cresce para parar de brincar; pára de brincar para crescer. O brinquedo é para o adulto a lembrança da promessa implícita na brincadeira que partilharam, a promessa que ele não cumpriu: nunca chegar a ser adulto.
  Isto mesmo pode ser percebido a partir da história de Peter Pan (J. M. Barrie, Peter and Wendy). Wendy, Jane, Margaret e muitas outras lembram-se das aventuras que tiveram com o rapaz que não cresce, mas este não se recorda. Peter Pan esqueceu cada uma delas e assim tem de ser, pois só esquecendo ele pode continuar criança. Esquecer é a condição para poder continuar a brincar. São os adultos, como Wendy, quem recorda. Não o rapaz perdido.
  Porque esquecem os habitantes de Dressrosa os familiares e amigos tornados brinquedos? Há um propósito agora muito claro neste plano: não se trata apenas de domesticar os novos brinquedos, transformados em instrumentos ao sabor de caprichos alheios. Trata-se também – ou talvez sobretudo – de tornar crianças as pessoas que agora com eles brincam, mas os esqueceram.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O estrangeiro em casa

  No conto "Round the Circle" (O. Henry), resumido aqui, Sam Webber parece ser apenas capaz de apreciar a mulher e o seu lar quando está longe. Assim que volta a casa, torna o seu desencanto e é como se nunca tivesse partido. Sam viaja, mas não volta estrangeiro. Ele só consegue ser um estranho ao seu mundo enquanto permanece fora dele.
  Também Innocent Smith, personagem de Manalive (G. K. Chesterton), se afasta da sua casa e família para voltar mais tarde. Também ele as aprecia à distância. Mas a sua viagem é diferente: ele parte precisamente para se afastar da mulher e dos filhos, em busca da saudade que o fará voltar.
  Ao contrário de Sam, Innocent lembra-se de brincar e do significado que os brinquedos têm. Os brinquedos atraem-nos por serem pequenos; é sua pequenez que os torna distantes: “Why, the whole aim of a house is to be a doll's house. Don't you remember, when you were a child, how those little windows WERE windows, while the big windows weren't.
  O segredo do encanto dos brinquedos é a sua distância. É no espaço desta que podemos imaginar, construir, tecer, narrar. É pela distância que a brincadeira pode nascer e é através dela que o mundo se pode tornar maravilhoso. Porque, como explica William Hazlitt ("Why distant objects please"), “[i]n looking at the misty mountain-tops that bound the horizon, the mind is as it were conscious of all the conceivable objects and interests that lie between; we imagine all sorts of adventures in the interim; strain our hopes and wishes to reach the air-drawn circle, or to 'descry new lands, rivers, and mountains,' stretching far beyond it (...). Where the landscape fades from the dull sight, we fill the thin, viewless space with shapes of unknown good, and tinge the hazy prospect with hopes and wishes and more charming fears.
  A distância é o segredo que dá vida à brincadeira e encanto à fantasia. É por saber isso que Innocent parte: “I have found out how to make a big thing small. I have found out how to turn a house into a doll's house. Get a long way off it: God lets us turn all things into toys by his great gift of distance. Once let me see my old brick house standing up quite little against the horizon, and I shall want to go back to it again.
  Também Sam, quando está longe, experimenta o desejo de tornar a casa. A distância também o afecta. Só que pode dizer-se dele o que diz Hazlitt sobre o efeito da distância em geral: “It is not the little, glimmering, almost annihilated speck in the distance that rivets our attention and 'hangs upon the beatings of our hearts': it is the interval that separates us from it, and of which it is the trembling boundary, that excites all this coil and mighty pudder in the breast. Into that great gap in our being 'come thronging soft desires' and infinite regrets.” De facto, o objecto distante apenas existe no horizonte de Sam para fazer nascer o espaço entre eles e permitir-lhe moldar aí a casa dos seus desejos, a família que ele adora. Ele não ama verdadeiramente o lar que tem, mas sim aquele de que sente a falta – e esse só pode aparecer quando estão separados. Porque quando Sam regressa, a distância desaparece: a casa de Sam só é uma casa de bonecas quando ele a vê de muito longe; deixa de ser pequena sempre que se aproxima. Sam esqueceu-se do que é brincar e por isso, ao invés das crianças, que apenas precisam da fantasia para se descobrirem distantes, ele precisa de se distanciar para ter a oportunidade de fantasiar.
  Não é assim com Innocent. Tal como Sam, é só à distância que ele consegue amar a sua família e o seu lar. Só que, como as crianças, ele consegue distanciar-se daquilo que lhe é mais próximo. As crianças fazem-no em cada brincadeira e é precisamente para ver a sua casa como uma casa de brincar que Innocent se afasta para a ver de longe.
  A condição para Innocent se manter junto dos seus é senti-los longe de si: “I heard my wife and children talking and saw them moving about the room (...) and all the time I knew they were walking and talking in another house thousands of miles away, under the light of different skies, and beyond the series of the seas. I loved them with a devouring love, because they seemed not only distant but unattainable.” Quando o passar do tempo começa a esvanecer essa distância, ele parte para a ganhar de novo – e trazê-la consigo no regresso.
  Quando Sam retorna, não chega estrangeiro, mas o mesmo de antes, porque não trouxe a distância consigo. Ao contrário, Innocent partiu precisamente para ir buscar o estrangeiro que tinha medo de perder: ele mesmo.