E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

O estrangeiro em casa

  No conto "Round the Circle" (O. Henry), resumido aqui, Sam Webber parece ser apenas capaz de apreciar a mulher e o seu lar quando está longe. Assim que volta a casa, torna o seu desencanto e é como se nunca tivesse partido. Sam viaja, mas não volta estrangeiro. Ele só consegue ser um estranho ao seu mundo enquanto permanece fora dele.
  Também Innocent Smith, personagem de Manalive (G. K. Chesterton), se afasta da sua casa e família para voltar mais tarde. Também ele as aprecia à distância. Mas a sua viagem é diferente: ele parte precisamente para se afastar da mulher e dos filhos, em busca da saudade que o fará voltar.
  Ao contrário de Sam, Innocent lembra-se de brincar e do significado que os brinquedos têm. Os brinquedos atraem-nos por serem pequenos; é sua pequenez que os torna distantes: “Why, the whole aim of a house is to be a doll's house. Don't you remember, when you were a child, how those little windows WERE windows, while the big windows weren't.
  O segredo do encanto dos brinquedos é a sua distância. É no espaço desta que podemos imaginar, construir, tecer, narrar. É pela distância que a brincadeira pode nascer e é através dela que o mundo se pode tornar maravilhoso. Porque, como explica William Hazlitt ("Why distant objects please"), “[i]n looking at the misty mountain-tops that bound the horizon, the mind is as it were conscious of all the conceivable objects and interests that lie between; we imagine all sorts of adventures in the interim; strain our hopes and wishes to reach the air-drawn circle, or to 'descry new lands, rivers, and mountains,' stretching far beyond it (...). Where the landscape fades from the dull sight, we fill the thin, viewless space with shapes of unknown good, and tinge the hazy prospect with hopes and wishes and more charming fears.
  A distância é o segredo que dá vida à brincadeira e encanto à fantasia. É por saber isso que Innocent parte: “I have found out how to make a big thing small. I have found out how to turn a house into a doll's house. Get a long way off it: God lets us turn all things into toys by his great gift of distance. Once let me see my old brick house standing up quite little against the horizon, and I shall want to go back to it again.
  Também Sam, quando está longe, experimenta o desejo de tornar a casa. A distância também o afecta. Só que pode dizer-se dele o que diz Hazlitt sobre o efeito da distância em geral: “It is not the little, glimmering, almost annihilated speck in the distance that rivets our attention and 'hangs upon the beatings of our hearts': it is the interval that separates us from it, and of which it is the trembling boundary, that excites all this coil and mighty pudder in the breast. Into that great gap in our being 'come thronging soft desires' and infinite regrets.” De facto, o objecto distante apenas existe no horizonte de Sam para fazer nascer o espaço entre eles e permitir-lhe moldar aí a casa dos seus desejos, a família que ele adora. Ele não ama verdadeiramente o lar que tem, mas sim aquele de que sente a falta – e esse só pode aparecer quando estão separados. Porque quando Sam regressa, a distância desaparece: a casa de Sam só é uma casa de bonecas quando ele a vê de muito longe; deixa de ser pequena sempre que se aproxima. Sam esqueceu-se do que é brincar e por isso, ao invés das crianças, que apenas precisam da fantasia para se descobrirem distantes, ele precisa de se distanciar para ter a oportunidade de fantasiar.
  Não é assim com Innocent. Tal como Sam, é só à distância que ele consegue amar a sua família e o seu lar. Só que, como as crianças, ele consegue distanciar-se daquilo que lhe é mais próximo. As crianças fazem-no em cada brincadeira e é precisamente para ver a sua casa como uma casa de brincar que Innocent se afasta para a ver de longe.
  A condição para Innocent se manter junto dos seus é senti-los longe de si: “I heard my wife and children talking and saw them moving about the room (...) and all the time I knew they were walking and talking in another house thousands of miles away, under the light of different skies, and beyond the series of the seas. I loved them with a devouring love, because they seemed not only distant but unattainable.” Quando o passar do tempo começa a esvanecer essa distância, ele parte para a ganhar de novo – e trazê-la consigo no regresso.
  Quando Sam retorna, não chega estrangeiro, mas o mesmo de antes, porque não trouxe a distância consigo. Ao contrário, Innocent partiu precisamente para ir buscar o estrangeiro que tinha medo de perder: ele mesmo.

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