No livro Brave new World, de Aldous Huxley, quando morre Linda, mãe do "selvagem" John, este desata a chorar em frente a algumas das crianças que ainda estão a ser sujeitas ao processo de death-conditioning. A enfermeira responsável por elas fica muito preocupada com medo de que as crianças, ao verem aquilo, comecem a achar que a morte é motivo de perturbação. Para evitar tais estragos, tenta desviar-lhes a atenção oferecendo-lhes em tom alegre um éclair de chocolate, ao que as crianças, de novo felizes e distraídas, respondem que sim.
O que acontece nesta cena? John é apanhado numa tragédia eminentemente humana (não apenas perdeu a mãe como ela, no fim da vida, só repetia o nome do seu amante, que ele odiava, além de parecer tomar John como um estranho, um intruso no seu leito) e afunda-se no seu sofrimento. Ao seu lado, a enfermeira e as crianças são pessoas para quem aquilo não tem o mínimo significado, nem sequer sentido. Não se trata apenas de não conhecerem o "selvagem" e a mãe, mas de não compreenderem porque há-de alguém chorar a morte de outra pessoa.
A enfermeira e as crianças são pessoas? São humanos?
Neste "admirável mundo novo", os indivíduos não têm qualquer ligação emocional significativa com quem quer que seja – de tal modo que “todos pertencem a todos” (“every one belongs to every one else”): todos têm encontros sexuais com todos indiscriminadamente; não há fidelidade, compromisso ou ligação efectiva de ninguém com ninguém em particular.
Não há sequer amizade entre eles. Depois de contar uma história oriental sobre uma árvore torta que, por ser inútil, foi sobrevivendo às sucessivas investidas de lenhadores e caçadores de essências, Tolentino Mendonça diz-nos que "[u]m amigo é como aquela árvore: vive da sua inutilidade. A nossa espiritualidade tem também de ser inútil, para ser mais que um momento, mais do que uma necessidade, para persistir, para acolher a dança do eterno" (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma teologia da amizade). Ora, à "amizade" dos habitantes do admirável mundo novo falta essa inutilidade. Na verdade, ela parece reduzir-se a ligações momentâneas ditadas pelo que é conveniente e fácil, pelo prazeroso efémero e sem significado. Esta ausência de ligações reflecte-se na postura perante a morte: deparando-se com a morte, eles não sofrem, encarando-a como um acontecimento rotineiro. Não estando ligados a ninguém, não perderam nada quando alguém morre.
Não há sequer amizade entre eles. Depois de contar uma história oriental sobre uma árvore torta que, por ser inútil, foi sobrevivendo às sucessivas investidas de lenhadores e caçadores de essências, Tolentino Mendonça diz-nos que "[u]m amigo é como aquela árvore: vive da sua inutilidade. A nossa espiritualidade tem também de ser inútil, para ser mais que um momento, mais do que uma necessidade, para persistir, para acolher a dança do eterno" (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma teologia da amizade). Ora, à "amizade" dos habitantes do admirável mundo novo falta essa inutilidade. Na verdade, ela parece reduzir-se a ligações momentâneas ditadas pelo que é conveniente e fácil, pelo prazeroso efémero e sem significado. Esta ausência de ligações reflecte-se na postura perante a morte: deparando-se com a morte, eles não sofrem, encarando-a como um acontecimento rotineiro. Não estando ligados a ninguém, não perderam nada quando alguém morre.
Por outro lado, tudo neles é superficial. Não há qualquer profundidade, seja a nível de sentimentos, seja de pensamento: na verdade, a enfermeira nunca poderá compreender a dor de John porque ela só vive à superfície. Todas as verdadeiras perdas se dão no interior: só sentimos a perda de algo pelo vazio que ele deixou dentro de nós. A perda é um espaço vazio. Porque naqueles indivíduos tudo vive à superfície, eles não podem sentir a perda. Porque nada trazem dentro de si, nada podem perder. O grande triunfo de Bias sobre Ciro foi o de mostrar que este não podia derrotá-lo despojando-o dos seus bens. Porque Bias trazia dentro de si tudo o que lhe pertencia. Já com os habitantes do admirável mundo novo passa-se o contrário: tudo o que têm está fora deles. De modo que podemos dizer que nem eles nem Bias têm a perder seja o que for: este porque traz tudo dentro de si e aqueles porque dentro de si não trazem nada.
Para sentir a sua dor, John tem de descer ao mais fundo de si mesmo. É precisamente no fundo de nós que se situa a zona mais íntima e sensível, aquela onde o mínimo abalo provoca estragos descomunais e irreparáveis. Essa zona está no fundo de tudo precisamente porque precisamos de a proteger. Ela não existe, porém, nestes indivíduos. Sem interioridade, profundidade ou intimidade, eles não sofrem porque nada têm a proteger. Mas isso apenas significa uma coisa: que nada têm de valioso que seja seu.
Nem a enfermeira nem nenhum dos outros indivíduos que formam a maioria disciplinada do admirável mundo novo trazem dentro de si algo com valor. Estão vazios, todas as coisas que lhes preenchem as vidas estão fora deles e são, na verdade, descartáveis, valendo apenas pelo prazer efémero que proporcionam. Só John pode sofrer com aquela intensidade porque só ele traz dentro de si algo que magoa. Se, perante Mustapha Mond, ele reclama o "direito a ser infeliz" (“I’m claiming the right to be unhappy”), o que ouvimos claramente é a sua ânsia de proteger esta fragilidade tão valiosa. Por isso, o selvagem John sabe algo que os habitantes daquele mundo esqueceram ou quiseram ignorar: que há uma dignidade inegável em tudo o que sofre e que é também precisamente por ser frágil que uma pessoa pode mostrar-se digna. Porque é justamente a pessoa mais frágil a que dentro de si traz o tesouro mais maravilhoso, aquele que mais merece ser protegido.
Nem a enfermeira nem nenhum dos outros indivíduos que formam a maioria disciplinada do admirável mundo novo trazem dentro de si algo com valor. Estão vazios, todas as coisas que lhes preenchem as vidas estão fora deles e são, na verdade, descartáveis, valendo apenas pelo prazer efémero que proporcionam. Só John pode sofrer com aquela intensidade porque só ele traz dentro de si algo que magoa. Se, perante Mustapha Mond, ele reclama o "direito a ser infeliz" (“I’m claiming the right to be unhappy”), o que ouvimos claramente é a sua ânsia de proteger esta fragilidade tão valiosa. Por isso, o selvagem John sabe algo que os habitantes daquele mundo esqueceram ou quiseram ignorar: que há uma dignidade inegável em tudo o que sofre e que é também precisamente por ser frágil que uma pessoa pode mostrar-se digna. Porque é justamente a pessoa mais frágil a que dentro de si traz o tesouro mais maravilhoso, aquele que mais merece ser protegido.