E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 24 de abril de 2017

O tesouro frágil

  No livro Brave new World, de Aldous Huxley, quando morre Linda, mãe do "selvagem" John, este desata a chorar em frente a algumas das crianças que ainda estão a ser sujeitas ao processo de death-conditioning. A enfermeira responsável por elas fica muito preocupada com medo de que as crianças, ao verem aquilo, comecem a achar que a morte é motivo de perturbação. Para evitar tais estragos, tenta desviar-lhes a atenção oferecendo-lhes em tom alegre um éclair de chocolate, ao que as crianças, de novo felizes e distraídas, respondem que sim.

  O que acontece nesta cena? John é apanhado numa tragédia eminentemente humana (não apenas perdeu a mãe como ela, no fim da vida, só repetia o nome do seu amante, que ele odiava, além de parecer tomar John como um estranho, um intruso no seu leito) e afunda-se no seu sofrimento.  Ao seu lado, a enfermeira e as crianças são pessoas para quem aquilo não tem o mínimo significado, nem sequer sentido. Não se trata apenas de não conhecerem o "selvagem" e a mãe, mas de não compreenderem porque há-de alguém chorar a morte de outra pessoa.
  A enfermeira e as crianças são pessoas? São humanos?
  Neste "admirável mundo novo", os indivíduos não têm qualquer ligação emocional significativa com quem quer que seja – de tal modo que “todos pertencem a todos” (“every one belongs to every one else”): todos têm encontros sexuais com todos indiscriminadamente; não há fidelidade, compromisso ou ligação efectiva de ninguém com ninguém em particular.
  Não há sequer amizade entre eles. Depois de contar uma história oriental sobre uma árvore torta que, por ser inútil, foi sobrevivendo às sucessivas investidas de lenhadores e caçadores de essências, Tolentino Mendonça diz-nos que "[u]m amigo é como aquela árvore: vive da sua inutilidade. A nossa espiritualidade tem também de ser inútil, para ser mais que um momento, mais do que uma necessidade, para persistir, para acolher a dança do eterno" (Nenhum Caminho Será Longo – Para uma teologia da amizade). Ora, à "amizade" dos habitantes do admirável mundo novo falta essa inutilidade. Na verdade, ela parece reduzir-se a ligações momentâneas ditadas pelo que é conveniente e fácil, pelo prazeroso efémero e sem significado. Esta ausência de ligações reflecte-se na postura perante a morte: deparando-se com a morte, eles não sofrem, encarando-a como um acontecimento rotineiro. Não estando ligados a ninguém, não perderam nada quando alguém morre.
  Por outro lado, tudo neles é superficial. Não há qualquer profundidade, seja a nível de sentimentos, seja de pensamento: na verdade, a enfermeira nunca poderá compreender a dor de John porque ela só vive à superfície. Todas as verdadeiras perdas se dão no interior: só sentimos a perda de algo pelo vazio que ele deixou dentro de nós. A perda é um espaço vazio. Porque naqueles indivíduos tudo vive à superfície, eles não podem sentir a perda. Porque nada trazem dentro de si, nada podem perder. O grande triunfo de Bias sobre Ciro foi o de mostrar que este não podia derrotá-lo despojando-o dos seus bens. Porque Bias trazia dentro de si tudo o que lhe pertencia. Já com os habitantes do admirável mundo novo passa-se o contrário: tudo o que têm está fora deles. De modo que podemos dizer que nem eles nem Bias têm a perder seja o que for: este porque traz tudo dentro de si e aqueles porque dentro de si não trazem nada.
  Para sentir a sua dor, John tem de descer ao mais fundo de si mesmo. É precisamente no fundo de nós que se situa a zona mais íntima e sensível, aquela onde o mínimo abalo provoca estragos descomunais e irreparáveis. Essa zona está no fundo de tudo precisamente porque precisamos de a proteger. Ela não existe, porém, nestes indivíduos. Sem interioridade, profundidade ou intimidade, eles não sofrem porque nada têm a proteger. Mas isso apenas significa uma coisa: que nada têm de valioso que seja seu.
  Nem a enfermeira nem nenhum dos outros indivíduos que formam a maioria disciplinada do admirável mundo novo trazem dentro de si algo com valor. Estão vazios, todas as coisas que lhes preenchem as vidas estão fora deles e são, na verdade, descartáveis, valendo apenas pelo prazer efémero que proporcionam.  Só John pode sofrer com aquela intensidade porque só ele traz dentro de si algo que magoa. Se, perante Mustapha Mond, ele reclama o "direito a ser infeliz" (“I’m claiming the right to be unhappy”), o que ouvimos claramente é a sua ânsia de proteger esta fragilidade tão valiosa. Por isso, o selvagem John sabe algo que os habitantes daquele mundo esqueceram ou quiseram ignorar: que há uma dignidade inegável em tudo o que sofre e que é também precisamente por ser frágil que uma pessoa pode mostrar-se digna. Porque é justamente a pessoa mais frágil a que dentro de si traz o tesouro mais maravilhoso, aquele que mais merece ser protegido.

quarta-feira, 12 de abril de 2017

A magia nas coisas pequenas


  No filme Jurassic Park (Steven Spielberg), um grupo de investigadores é convidado a visitar um parque, situado numa ilha, que terá como atracções dinossauros vivos, recriados cientificamente para serem exibidos ao público.

  Os investigadores entram nos jipes e atravessam a ilha até encontrarem finalmente os dinossauros.  Imponentes braquiossauros a comer folhas de árvore, do alto dos seus pescoços estradais, diante dos olhos dos visitantes. Podiam ser girafas: vulgares, ainda que interessantes. Mas são dinossauros: inacreditáveis, mas reais.

  Podemos deixar-nos tremer pela excitação de ver um gigante extinto. Há algo de mágico nesta cena, em que o espectador sente a emoção de deparar com algo vindo do reino do fantástico sem de facto o ver. Pois não são apenas os efeitos especiais utilizados na recriação das criaturas, a música ou as posições e o movimento da câmera. É tudo isso e algo mais: a unidade destes elementos constrói-se de tal modo que no espectador nasce a maravilhosa sensação de encarar o maravilhoso, a surpresa de encontrar o que não podia ser encontrado.
  O que há de fascinante nos dinossauros? São criaturas pertencentes ao reino do fantástico, aquilo que podemos representar, mas não encontrar. Contudo, são também – ou foram – reais. Existiram, não num outro universo, mas sim neste que habitamos. Os dinossauros são, por isso, tão verdadeiros como os elefantes e ao mesmo tempo tão mágicos como os dragões. Todo o fantástico é, por definição, inacessível. Estas criaturas, tão inalcançáveis como os grifos, são, porém, aquelas que mais perto estivemos de agarrar. Os dinossauros são frutos de magia, aos quais, como Tântalo, estendemos a mão por os vermos tão perto, para logo os descobrimos demasiado longe para lhes conseguirmos tocar.
  No fim de contas, parece ser mesmo esta distância que torna os dinossauros tão fascinantes. Porque, nas palavras de Hazlitt ("Why distant objects please"), "[i]t is not the little, glimmering, almost annihilated speck in the distance that rivets our attention and 'hangs upon the beatings of our hearts': it is the interval that separates us from it, and of which it is the trembling boundary, that excites all this coil and mighty pudder in the breast". Que não tem de ser assim, todavia, prova-o a admiração de Alan Grant (um dos investigadores que visitam o Parque Jurássico) quando, no fim do filme, vê os pelicanos pela janela do helicóptero: como comenta Greydanus, este momento é uma mera demonstração de como podemos ver dinossauros todos os dias. A maravilha está aí para ser descoberta. Se julgamos que ela vive apenas onde não podemos chegar, somos cegos incapazes de nos deslumbrarmos com o que mora diante de nós. Bem nos alertou Chesterton de que são precisamente leis mágicas a ditar os acontecimentos da vida de uma galinha ou do nascer do sol: "When we are asked why eggs turn to birds or fruits fall in autumn, we must answer exactly as the fairy godmother would answer if Cinderella asked her why mice turned to horses or her clothes fell from her at twelve o'clock. We must answer that it is magic" (Orthodoxy).
  A verdadeira magia da cena do primeiro encontro com os dinossauros pode então estar escondida. Será talvez a sugestão, atrevida e sonhadora, de que os dinossauros, essas criaturas irrecuperáveis habitantes do reino do imaginário, não seriam menos fantásticos se os pudéssemos ver de perto. É fácil pensar que os agigantamos pela distância, oferecendo-lhes uma dimensão suficiente para nos encherem a imaginação. Mas com esta cena aprendemos aquilo que já deveríamos saber, mas não sabemos: que eles são (porque eram e seriam) gigantes por conta própria. E é graças a este momento que podemos olhar com o mesmo fascínio o pelicano a voar, a tartaruga a nadar ou a chita a correr. Porque agora podemos observar com mais atenção e perceber que cada uma destas pequenas criaturas — que, de tão perto, parecem banais — traz dentro de si a magia imensurável do caminho da vida.