No conto "La autopista del sur", de Julio Cortázar, forma-se um engarrafamento monstruoso no trajecto entre Fontainebleau e Paris, que dura largos meses. Ao longo desse tempo, detidas no mesmo lugar, as pessoas interagem com diversos propósitos: distraírem-se, perceberem a causa do trânsito (várias hipóteses são avançadas, mas sempre provadas falsas), arranjarem comida e água, etc. Formam-se grupos com representantes, realizam-se trocas, cuida-se dos mais débeis, algumas pessoas morrem (chegando a haver suicídios). Finalmente começa a fluir o trânsito e o engenheiro (o personagem mais próximo de ser protagonista) perde gradualmente de vista as pessoas (e os seus carros) com que interagira durante o engarrafamento, inclusive a moça com quem iniciara um envolvimento afectivo e sexual.
Uma descrição gráfica que recorra a linhas e pontos poderia apresentar o quotidiano dos nossos encontros com os estranhos com que nos cruzamos do seguinte modo: os nossos trajectos desenham-se com linhas que ligam os pontos de que partimos àqueles aonde nos dirigimos. Aqueles encontros, normalmente fortuitos e sempre destinados a acabar (provavelmente muito rápido) são pontos que surgem na intersecção dessas linhas: a interacção entre as linhas é sempre fugaz e daí só nasce um ponto: o do breve momento que as linhas demoram a retomar o seu percurso.
O que acontece quando se gera o engarrafamento desta história? Trocam-se os pontos de referência da nossa descrição gráfica. Aquilo que eram linhas tornam-se pontos: o percurso de cada um dos personagens já não inclui movimento, pois agora são todos obrigados a ficar no mesmo sítio. Mesmo os poucos metros que, por vezes, se avança servem apenas a comprovação de que não há verdadeiramente deslocação, não há passagem de um ponto a outro. Por alusão à jornada entre pontos que dava sentido ao percurso, o ridículo progresso de uns míseros metros surge meramente para retirar todo o sentido ao movimento, que deixa assim de ser uma viagem. Já aquilo que eram pontos tornam-se linhas: os cruzamentos fortuitos e ocasionais com os estranhos que encontramos nos nossos percursos perpetuam-se, perdendo a fugacidade. O abeiramento do estranho deixa de ser mera aproximação e torna-se companhia. Sem perspectiva de um fim – que é constantemente adiado à medida que o tempo passa –, os encontros podem tornar-se relações e desenrolam-se as histórias.
Esta ilustração gráfica traduz modificações substanciais evidentes. Naquele troço de estrada onde só se previa que os automóveis passassem brevemente, cria-se um pequeno universo, passa a funcionar uma sociedade simples, organiza-se mesmo uma comunidade. Ali onde nada era suposto ter lugar – a não ser transições entre pontos onde as coisas realmente aconteceriam – passam a acontecer as coisas. Desenvolvem-se relações, as pessoas conhecem-se, criam e trocam experiências. Nascem histórias. É como se se abrisse um novo espaço ou se descobrisse que naquele afinal cabem mais coisas do que aquelas que lhe estavam destinadas. E são os outros lugares e as restantes pessoas que, por contraposição, desaparecem. Já não há destino (desfez-se a viagem) e o ponto de onde se partiu perde o papel de referência. Não é somente um universo novo que nasce; mesmo pequeno e limitado nas suas potencialidades, ele apaga os outros tornando-os impossíveis ou, ao menos, irrecuperavelmente distantes.
Surpreendente é, por tudo isto, descobrir como tudo se desfaz quando o tráfego começa a descongestionar. Os carros e as pessoas afastam-se e o ritmo das intersecções fugazes e desprovidas de significado é retomado. Os pontos voltam a ser linhas, e vice-versa. Os lugares de partida e de destino recuperam a sua realidade e aquele universo gerado com e no engarrafamento desaparece. Voltam a ser estranhos esses que durante os meses de paragem se haviam tornado próximos – é mesmo provável que o engenheiro não torne sequer a falar com a moça com quem dormiu. Que lição cruel há a aprender aqui?
Em primeiro lugar, há universos escondidos ou soterrados pelo ritmo que nos impomos na vida pré-programada de tarefas e programas que projectamos para nós mesmos. Nos trajectos que nos levam aos únicos locais que aceitamos terem existência para nós escondem-se lugares à espera de uma oportunidade de existirem, com fome de histórias e acontecimentos marcantes. Só nos pedem que paremos, que nos demoremos neles os instantes que nunca nos lembramos de lhes oferecer.
Quando um conjunto de pessoas é retido num espaço limitado que as aproxima, porém, não ocorre uma mera troca de lugares significantes. Há uma inversão na própria estrutura dos elementos: os encontros destinavam-se a ser meros pontos de intersecção, mas tornam-se linhas de relações; e o percurso deveria traduzir-se na linha de uma viagem, mas agora é só o ponto de uma estadia. É a própria realidade que resulta transfigurada.
De onde vem a mágoa ao ler o fim desta história? É com alguma desilusão que assistimos à deslocação rápida entre realidades. A transição do engarrafamento para a circulação é também a de um universo para o outro. A facilidade e simplicidade com que se opera esta passagem, todavia, contrasta nitidamente com a alternatividade dos mundos em contraponto: eles não comunicam e, por isto, partir para um é sempre deixar o outro. Retomar o percurso, mais do que abandonar o lugar de estadia, é fazê-lo desaparecer – juntamente com os seus problemas, as suas pessoas, as suas histórias. Nada disso existe mais e nada senão a memória nos diz que existiu um dia.
Há uma pulsão que nos obriga sempre a retomar o percurso. Quando o trânsito volta a fluir, optamos por seguir o trajecto, recusamos parar – a única paragem que nos admitimos é a da saudade. Pomos assim um fim aos episódios: de repente já só somos viagem. Mas é na distância proporcionada pela viagem que podemos narrar o que aconteceu. A história ficou para trás, mas a narrativa nasce agora.
É quando paramos – mesmo obrigados – que nos vemos uns aos outros e nos falamos. Que trocamos companhia. Precisamos de parar para podermos conversar, fazer amor, negociar ou morrer. É quando paramos que vivemos as histórias. E é depois de retomarmos o percurso que as podemos contar.
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