E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 18 de agosto de 2019

A enfermeira ausente


  No conto “The trouble with mrs. Blynn, the trouble with the world”, de Patricia Highsmith, a sra. Palmer, moribunda, recebe, numa casa de campo arrendada por recomendação médica, os cuidados da enfermeira Blynn e da empregada Elsie. No dia da morte, recebe também a visita do filho.

  A sra. Palmer sente-se um fardo. Sente-o a ponto de precisar de encontrar compensações para os incómodos que acredita impor aos outros: o pagamento acima da média à empregada e à enfermeira, o arrendamento da casa que naquele período do ano normalmente ficava vazia, etc. Sente-o a ponto de aceitar a ordem que lhe impõem, não como quem se resigna, mas como quem reconhece que os outros decidem melhor, mesmo quando decidem por ela. Mais que tudo, o que a leva a ver-se como encargo para os demais é a perspectiva da morte próxima: consciente de que vai morrer em breve, fica tomada pela certeza de que está a mais no mundo. Só lhe resta morrer, e por isso tudo e todos estarão certamente à espera desse desfecho; qualquer demora em fazê-lo será atraso. Mas se o desencanto da sra. Palmer pode trair a ilusão em que ela vivera até então, não mora aí mais que uma condição de validade universal: se ela tiver razão e os outros realmente a virem como encargo e pouco (ou nada) mais, então não apenas nos escondemos da nossa morte como só procuramos quem nos prometa durar para sempre. O mal da sra. Palmer é o de neste mundo só haver lugar para imortais. Aquele que já não nega nem esconde que vai morrer é demasiado inconveniente, até obsceno, para lhe sorrirmos. É justamente a efemeridade o que a sra. Palmer ainda quer ocultar quando se maquilha para as visitas que recebe. A morte é tão feia como evidente; ela já não a pode esconder, mas ainda pode escolher não a trazer no rosto.
  De que vale ligarmo-nos ao efémero? A sra. Palmer continua a procurar ligações, mas as tentativas frustram-se, porque embora nos liguemos apenas ao que não pode durar, não conseguimos fazê-lo quando a efemeridade é demasiado evidente. Parece estranho, mas a sra. Palmer dirige os seus intentos ao alvo mais improvável: a fria sra. Blynn. A distância é justamente o que mais marca a enfermeira. Parada na sala da paciente, a sra. Blynn tem um sorriso “ausente” (“Mrs. Blynn was standing with an absent smile in the center of the room”) porque o dirige ao que está longe: o que a faz sorrir são as memórias do marido e do tempo que passaram naquela casa. Quando torna ao presente, a sra. Blynn desaparece, esfuma-se em gestos eficazes, indiferentes e impessoais. A sua frieza é a mesma que só os médicos conseguem mostrar, porque só eles podem ser profissionais tratando da intimidade alheia. A sra. Palmer deseja que a enfermeira mostre ao menos o desejo interesseiro de lhe prolongar a vida para estender o pagamento, mas o profissionalismo da sra. Blynn é demasiado inumano para isso. Está demasiado distante da moribunda para a conseguir encontrar com o seu olhar vítreo (“her bulging green-gray eyes were glassy, as if she saw nothing and did not need to see anything”). A sra. Palmer não é para ela uma pessoa a ser compreendida ou ouvida, mas uma tarefa. As conversas com ela não servem para construir ligações, são mero trabalho. No fim de contas, a enfermeira não vê a sra. Palmer, mas a verdadeira ausência não é a da paciente: se espreitarmos pelo vidro dos olhos da sra. Blynn, veremos que lá não mora ninguém.
  A enfermeira ausente não pode corresponder ao desespero da paciente por construir qualquer simulacro de ligação por meio de conversas, perguntas, observações. Mas onde mora verdadeiramente a sra. Blynn? Mais do que nos sítios que pisa, mora nos lugares onde se projecta. A altivez que exibe, as indicações dadas em jeito de comando, até os saltos muito altos, sugerem que ela acredita merecer outro lugar no mundo, mais elevado que o que lhe coube, e trata os outros como se ocupasse de facto esse lugar, olhando-os de cima. Mas essa altura a que se assoma impede-a de descer ao nível da sra. Palmer para lhe pedir o alfinete que tanto cobiça. Do seu pedestal, não consegue mais que sugerir à enferma o interesse no objecto e esperar que esta lho ofereça, para o poder aceitar como quem faz um favor. Fracassa, não por causa da sra. Palmer, mas apesar dela.
  A moribunda oferece o alfinete à empregada, talvez, para de algum modo derrotar a sra Blynn ou vingar-se dela. Ou busca porventura provar, pela consequência (o prémio), a suposta bondade de Elsie. Esta bondade, no entanto, se não é fingida, pode resumir-se à decência devida a seres humanos em geral, ao respeito de mostrar que reparamos neles e os tratamos como reconhecendo-lhes o direito ao lugar que ainda ocupam. Por isto, a sra Palmer tenta, mais que tudo, inventar uma ligação, uma última antes de partir, um último contacto humano significativo, que não apenas respeito e educação, mas verdadeiro interesse, afecto, troca.
  É após todas as tentativas, depois de morrerem as possibilidades de ainda se agarrar a qualquer mão ao seu alcance, que a sra. Palmer tenta oferecer o alfinete à sra. Blynn. Este já não é um gesto de quem se quer agarrar, mas de desprendimento. É uma tentativa última de bondade pura, talvez para redimir as falhas da sua vida (“she could wish her own character had been better, purer, that she had never shown temper or selfishness, for instance”); praticada onde o gesto é mais inútil e, por isso, mais significativo: dirige-se à sra. Blynn, personificação da frieza e da indiferença, da mecanização dos gestos e palavras. Não pode ter sequer a pretensão de redimir a enfermeira ou de lhe revelar a humanidade, porque a sra. Blynn, se dissesse obrigado, não o faria por se sentir agradecida, mas por educação. A inutilidade do gesto que a sra. Palmer não chegou a concretizar é, por tudo isto, a da bondade. No fim de contas, ambas as mulheres querem representar papéis. A enfermeira desaparece na eficiência automatizada dos seus gestos, enquanto a paciente tenta desesperadamente aparecer na enfermidade do seu declínio. A sra. Palmer tenta convencer-se de que a ordem do mundo é a melhor possível, mas não consegue apagar-se na máscara silenciosa da moribunda a quem só resta partir. Depois de tentar que a vejam por todos os modos de pedir que lhe eram possíveis, resta-lhe tentar um último papel: o da criatura bondosa que dá sem esperar em troca. A oferta a Elsie foi a de quem tenta inventar uma ligação. A oferta à sra. Blynn seria a de quem dispensa ligações por se bastar a si mesma com a satisfação de fazer o bem. Veio tarde a ousadia e o gesto não chegou a nascer. Tivera nascido e cairia no vazio onde era suposto morar a enfermeira ausente.

domingo, 11 de agosto de 2019

Agarrar sem tocar


Professeur Tournesol


  As figuras de colecção são objectos de pequena ou média estatura, representando diversas personagens de cinema, banda desenhada, animação, televisão, etc.

  São demasiado pequenas. Atraem-nos, mas nunca caberemos no seu mundo. A sua imobilidade, como a pequenez, dá-nos a ilusão de as dominarmos, de nos pertencerem. Mas permanecem inalcançáveis. São a melhor demonstração de que a propriedade é sempre promessa por cumprir. Só chegamos a ser donos do que está morto, do que habita apenas as nossas mãos, ou do que só existe no momento de o destruirmos ou consumirmos: instrumentos ou ferramentas, e brinquedos. Mas estas figuras querem existir fora da brincadeira. Escapam-nos entre os dedos e, assim, adquirem vida longe de nós, independente das nossas decisões. Pertencem-nos, porque moram nas nossas prateleiras. Mas limitam-se a exibir aí um mundo que fatalmente nos escapa, ao qual nunca pertenceremos.
  No fim de contas, os bonecos ajudam-nos a tomar consciência de quão pequenos são os nossos braços: por mais firme o aperto quando os temos nas mãos, nunca os conseguiremos tocar. Por mais perto que os tenhamos, morarão sempre longe. Por mais que os abracemos, nunca nos pertencerão. Não precisam de fugir, já nos escaparam há muito.
  Oferecem também deste modo a segurança do regresso. Prometem vislumbres e deixam espreitar, mas não podemos perder-nos onde não é possível cair. A figura traz paisagens, mas não permite aventuras. Por isso, o regresso só opera em simulacro: quando tornamos, descobrimos que não chegámos a partir. Podemos arrumar o mundo do boneco na prateleira, mas não poderemos visitá-lo. Vendo bem, o que queremos arrumar é essa distância insuperável, esse lugar impossível que levamos para casa, mas aonde nunca chegaremos.


Majin Buu

  O mundo trazido pela figura vem com a personagem representada. Esta aparece, porém, imóvel: a figura é a fixação de quem só conhecíamos agindo. Surge agora presa em limites, e já não mexe, não fala nem envelhece. Tal morte é a prova maior da vida que existia até a fixarmos. Resignação inevitável, já que se o objecto não pode agir por si, i. e., por sua vontade, decidindo pela própria cabeça o que fazer, também não pode viver como brinquedo, entregando o destino nas nossas mãos. Nenhum movimento é possível para ele. As figuras oferecem assim a ideia de que podemos verdadeiramente conter a liberdade e cristalizar o poder de decisão. Mas a possibilidade vive somente na perspectiva de se concretizar. A tragédia da figura provém de que a liberdade só existe onde o movimento pode surgir, onde podemos mudar coisas de lugar e tomar decisões. Ninguém é livre sem envelhecer. O nosso boneco não se deteriora, cansa ou fere, não desfalece nem se gasta; mas não porque resista, e sim porque nele não mora ninguém. Imobilizámo-lo e salvámo-lo da morte, mas para isso tirámos-lhe a vida.
  O que fixámos então na figura de acção que já não age? Não qualquer vida que ele pudesse ter, mas só os nossos sonhos, o imaginário com que o animamos. E, vendo bem, não encontraremos melhor gaveta para as nossas fantasias. Porque o seu lugar é esse que as deixa ainda connosco, à distância de um esticar de braço, mas sempre demasiado longe, na ausência do que verdadeiramente nunca aqui esteve.