E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Estilhaços


  Na série The Leftovers (criada por Damon Lindelof e Tom Perrotta), após o desaparecimento súbito e inexplicável de milhões de pessoas (2% da população mundial), seguimos as vidas dos que ficaram, os restantes.

  Cada um encara o acontecimento (a "partida" – the departure) de modo diverso, porque não há propriamente fórmula correcta para lidar com o mesmo. O desaparecimento dos familiares e amigos obriga ao confronto com todas as questões que a morte levanta. Para os que ficam, evidencia a fragilidade, precariedade e transitoriedade; recusa motivos, sentidos ou explicações, e nega a perenidade. Os que se vão somem sem adiamentos, razões ou objectivos, nem é possível negociar o desaparecimento. Mas a partida dos 2% parece acrescentar a isto a imprevisibilidade. A morte dos que nos deixam leva-nos a embater no absurdo e obriga-nos a aceitar a arbitrariedade como regra do jogo. Mas é como se com a "partida" as regras não tivessem sido respeitadas. Se a vida humana se faz do permanente diálogo com a certeza da morte, da reinvenção permanente do sentido ou sentidos que permitam continuar apesar do fim que se aproxima, a "partida" tem um efeito destrutivo arrasador: habituámo-nos a integrar a morte no quotidiano, seja por meio de rituais como o funeral ou o velório, seja por meio da recordação dos falecidos e do relato da sua história, seja por recurso a narrativas que lhes dêem pretensa lógica (o "descanso eterno", a "condenação no inferno", a reencarnação, etc.). Em The Leftovers, porém, não é possível garantir que os sumidos não estão vivos. O evento põe a nu o que de mais cru tem a morte: estavam aqui, mas já não estão; não sabemos para onde foram, porque foram ou por que foram. Não sabemos sequer se morreram, mas, no fim de contas, que sabemos sobre morrer? Por debaixo de todas as narrativas, rituais e relatos, morrer é desaparecer, deixar de estar, partir. A "partida" não é mais que a morte despida, arrancada a todos os enfeites que usamos para a aceitarmos e continuarmos como pudermos.
  Esse é o maior desafio para os que ficaram: continuar. A "partida" aparece como evento tão dilacerante, tão destruidor, que ameaça tornar impossível prosseguir. Se recuperarmos da morte (enquanto acontecimento com que temos de lidar) tudo o que tentámos afogar em explicações, relatos e rituais, ficamos com uma ocorrência tão perturbadora que não conseguiremos reconstruir seja o que for. É como se a "partida" rasgasse a linha temporal, o fio que une os dias, desfazendo a ideia de que as coisas continuam, apesar dos que vão desaparecendo; não há explicações para o que ocorreu, e sem reintegrar o acontecido no quotidiano não é possível prosseguir.
  É este dilema que as personagens buscam resolver de modos diversos.
  Alguns tentam arranjar explicações, motivos: Matt, antigo padre, procura convencer as gentes de que a partida terá sido castigo para os pecados do que sumiram. Outros orientam essas explicações, não para o passado, mas para o futuro: o pai de Kevin, nomeadamente, vê a "partida" como prenúncio da grande catástrofe que ocorrerá no aniversário dos sete anos após o dia fatídico. A tenacidade com que se dedica a evitar o fim do mundo que tanto teme só se explica pela necessidade que tem de que esse fim realmente esteja próximo – se o apocalipse não estiver iminente, então a "partida" volta a perder sentido e o pai de Kevin tem de encarar novamente a perspectiva de seguir em frente, mais assustadora que qualquer parúsia.
  Nenhuma explicação cola em definitivo, e muitas pessoas tentam simplesmente deixar a ocorrência para trás, recuperar o quotidiano, recomeçar famílias, amizades, rotinas. Mas isto só é possível por meio de representação e fingimento. Um evento tão destrutivo – que exibe o absurdo da morte e é ainda mais inapagável que esta, porque retém dela o que ela tem de inexplicável sem deixar hipótese de ocultação ou normalização (não se pode fazer funerais para os desaparecidos, não se pode contar histórias sobre o que lhes aconteceu) – não é passível de ser ignorado, esquecido ou desconsiderado. Não é possível deixá-lo para trás, porque ele puxa-nos; não podemos esquecê-lo, porque a ausência dos que partiram não desaparece de tudo o que ficou; não cabe recomeçar, porque tudo o que vem depois vem sempre referido ao que aconteceu. Quem tenta seguir em frente só o consegue fingindo que o está a fazer, e portanto falha. É esta hipocrisia que buscam denunciar os "guilty remainers" (GR). Recusam falar e fazer seja o que for, porque a comunicação e os actos perderam significado. Já não servem para construirmos histórias de vida, erguermos construções, prosseguirmos – porque prosseguir já não é possível, porque as premissas básicas para seja o que for poder ter sentido desapareceram, porque não somos humanos em vez de animais por ficarmos contentes por estarmos vivos, e sim por não percebermos porque o estamos; e se um evento como este afunda todas as possibilidades de sentido com que gostaríamos de enganar esse absurdo, só nos resta aceitar o vazio do que ficou.
  Jarden representa um milagre para os que ficaram porque é uma desejada ilha de salvação. Os que procuram a terra não o fazem para estar a salvo do que possa vir aí, mas do que ficou para trás. É esse o erro inicial de Nora e Kevin: estão a fugir do futuro, desesperados por assegurar que não se repita o que aconteceu, mas é precisamente o que aconteceu o que ainda têm por resolver. Para todos os desesperados, Jarden é o lugar onde as coisas seguem como sempre, onde ninguém desapareceu e não houve perturbação. Não devemos estranhar, por isso, a intransigência de John e companheiros na negação de qualquer mistério ou cariz sobrenatural: o verdadeiro milagre é o da normalidade. Está tudo como deve estar. Nada de estranho ocorreu em Jarden, apesar de ser o único lugar a escapar à "partida"; a anormalidade verificou-se somente no resto do mundo. Não há tesouro mais valioso que esse. Ou não haveria, se fosse verdadeiro. Na realidade, a ilha desejada é uma bolha feita de especulação, fé e misticismo. Os GR destroem um paraíso que nunca foi real: a "partida" não estilhaçou todos os lugares menos aquele, como se aquele estivesse arrumado num universo à parte. Ela estilhaçou todos os lugares, inclusive aquele onde não se verificou, porque mesmo para os habitantes de Jarden foi posto a nu o absurdo que destruiu tudo no resto do mundo. Ninguém na família de John desapareceu, mas com a "partida" deixou de haver família (para usar as palavras de Evie, a filha rebelde), não há sentido em continuar. É isso que lhe tenta dizer a filha pelos seus actos de violência.
  Nem sequer o suicídio oferece resposta. O suicida escolhe assumir o fim da sua vida, como que dizendo que se não pode tomar conta dela, enchendo-a de sentido, pode ao menos ditar-lhe a conclusão, escolher como e onde acaba. Mas é só isso que consegue, escolher o seu fim. Não há universalidade no seu gesto, não há sentido que possa emprestar a outros. É só a acção de escrever o capítulo final de um livro cuja história se mantém vazia de porquês. Os suicídios tentados ou simulados a que Nora ou Kevin se entregam não podem, por isso, resolver o que quer que seja. Talvez ofereçam a satisfação transitória de estarem vivos e presentes, de não terem desaparecido. Mas o maior drama é afinal esse mesmo.
  Há esperança para Nora e Kevin no fim da terceira temporada? Provavelmente sim, porque Nora conseguiu finalmente deixar para trás a família. Ao vê-los e descobrindo o que lhes aconteceu, a "partida" ganhou para ela um sentido, uma história que pode reintegrar na sua vida. Ver que os filhos e o marido continuaram sem ela é doloroso, mas permite-lhe deixá-los em definitivo, arrumá-los no passado e recomeçar. O que faça daí em diante já não tem por que estar a referido à "partida". A própria "partida" deixa de ser desaparecimento. Ela encontra o mesmo que Laurie e John ofereciam aos desesperados por consolo: não trazer-lhes os seus entes queridos de volta, nem sequer explicar onde estão, mas garantir que estão em algum lugar, que nenhum buraco negro os engoliu. Estão longe e não os podemos alcançar; mas onde quer que estejam, é aí que estão, não se desvaneceram. Talvez isso baste.

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