E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Preso em lugar nenhum

  No conto "O passageiro eterno", de Stefan Grabiński, Agapit Kluczka é um escrivão de tribunal que passa as tardes na estação de Snowie, realizando "viagens simbólicas": espera na fila para comprar bilhete, instala-se no comboio com a bagagem, troca informações de viagens com outros passageiros, impacienta-se com os atrasos do transporte... mas nunca chega a viajar: abandona a fila no instante antes de comprar o bilhete, sai da carruagem assim que o apito avisa da partida, e espera na estação pelo comboio seguinte, para repetir o ritual. Já lhe conhecendo os hábitos, os trabalhadores da estação chamam-lhe "passageiro eterno".

  O senhor Kluczka não é, vendo bem, passageiro nenhum, visto que nunca chega a partir, senão em imaginação. Lamentando não poder ser revisor por razões de saúde (não esclarecidas) e que o destino o tenha feito prisioneiro de trabalho de secretária, sonha com as viagens que nunca fará e simula todos os procedimentos necessários para a partida que nunca terá lugar.
  Agapit não deseja propriamente chegar a um sítio em concreto, porque o apaixona a viagem, não o destino; inveja nos funcionários ferroviários a "neurose constante" da viagem sem fim. 
  O que pretende o senhor Kluczka? Está claro que não sonha com qualquer destino paradisíaco, não tem propriamente um lugar idealizado a aguardar os passos que não pode dar. Sob certa perspectiva, parece ser livre: nada o puxa nem o prende. Encontra-se materialmente dependente do que o sustenta, mas nos planos anímico e espiritual, não tem raízes em casa – pelo contrário, lamenta a impossibilidade de a deixar. Do estrangeiro também não o chama ninguém nem nenhum local específico, de modo que Agapit é pessoa sem correntes, porque sem ligações. Não foram razões monetárias e de saúde, poderia viajar por onde quisesse, sem incómodos de maior. Não pousando o centro da sua personalidade – o núcleo impulsionador das decisões que toma – em nenhum lugar fora de si mesmo, nem se amarrando a qualquer interesse fixo prevalecente, material e geograficamente situado (como poderia ser uma mulher amada, uma promoção na carreira, etc.), o senhor Kluczka é dono de si mesmo e do seu destino, preso por nada e livre de grilhões. Não se pode verdadeiramente contradizer isto com a sua paixão por viajar, porque é a viagem, não a chegada, o que o fascina: arrebata-o tanto a ida como o regresso, porque, vendo bem, nenhum é ida ou regresso, são ambos deslocação: sem casa nem destino, toda a locomoção é para ele passeio sem turismo, nada interessando na paisagem, antes relevando somente os mecanismos e rituais do viajar. A viagem não é, assim, ponto fixo que o limite e restrinja, capturando-o para longe de si mesmo, mas sim a concretização possível do idealizado processo de libertação de todos os pontos fixos que não lhe importam. Interessa-lhe viajar, em suma, porque não quer pousar em lugar nenhum.
  Algumas dúvidas, porém, se levantam quando o vemos tão liberto: quer Agapit de facto viajar? As suas dificuldades de saúde não são esclarecidas, ficando no plano do mero pretexto; quanto às monetárias, podemos perguntar se o seu desejo, apresentado como tão intenso, não o devia levar a procurar outro emprego, uma promoção, ou simplesmente a juntar dinheiro, de modo que pudesse comprar viagens de quando em vez. Se o senhor Kluczka concretizasse os seus sonhos e levasse a vida a deslocar-se de um lado para o outro sem estacionar em nenhum, gozaria a liberdade duma existência inversa à dos fantasmas: estes espíritos vagueiam movidos pelo drama de não poderem voltar à vida de onde partiram, estando ao mesmo tempo impedidos de aterrar onde os mortos descansam; já no caso de Agapit, a mesma condição não seria drama, mas alegria: tivera a disponibilidade para isso e seria feliz vagueando sem pousar onde quer quer fosse.
  O senhor Kuczka, contudo, nunca chega a partir, e é legítimo suspeitar que algo para lá dos pretextos materiais o prende à estação. Esta poderia ser para ele o que a rotunda é para Aaronson, personagem de Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares): um lugar com múltiplas hipóteses de caminho onde se pode ficar mantendo em aberto todas as possibilidades, sem chegar a arriscar nenhuma. Para Aaronson, é confortável correr à volta da rotunda sem tomar uma via, porque não optando, não há hipótese de engano, de ser obrigado a voltar atrás. Por aqui já notamos, todavia, diferença em relação a Agapit: não é por medo de errar que abandona o comboio antes da hora, pois a opção por um destino nem se lhe apresenta. Em rigor, visto que não tem em mente qualquer meta, a própria perspectiva de erro perde sentido: todas as opções são válidas, porque nenhuma é a correcta; e nenhuma é a correcta, porque nenhuma está errada. O senhor Kluczka não quer chegar a lado nenhum, quer apenas fazer o caminho. Não voltaria atrás por se ter enganado, mas por ser essa a direcção tomada pelo comboio. Podemos ir ao ponto de dizer que nem sequer estaria verdadeiramente a voltar atrás: os caminhos com que sonha não têm linhas de chegada e partida, pelo que a indiferença entre os lugares de chegar e partir é a conclusão mais lógica: os seus percursos não têm origem nem destino.
  O senhor Kluczka, no entanto, nunca parte. Vive na prisão avessa à dos fantasmas: sofre, não por falta de lugar para pousar, mas por não poder partir. Se ao menos tivera noutro lugar algo que o puxasse, teria ocasião para se arrancar de onde mora. Mas não tem centro, nem no estrangeiro nem em casa, e por isso não chega a estacionar verdadeiramente em lugar nenhum. Homem sem ligações, não há correntes nem algemas que o limitem ou condicionem. Mas, no fim de contas, nem isso lhe dá liberdade. Sem direcção nem objectivo, nenhum comboio o pode levar para onde quer que seja, porque os comboios orientam-se pelas estações para que apontam e são elas que os obrigam aos caminhos. Para Agapit, as outras estações são pretextos que ele dispensa, sem perceber que assim é o próprio percurso que acaba condenado. Nem na estação onde passa tantas horas dos seus dias assenta realmente, porque só lá permanece na perspectiva (ainda que irreal) de partir brevemente. Não partirá, e por isso a estação, no fim de contas, é a sua prisão.
  A liberdade é possível para o senhor Kluczka? Sonha existir como os fantasmas, mas estes só vagueiam no pesadelo de não poderem chegar a lado nenhum, nem regressar. Agapit não tem meta, e por isso nunca comprará bilhete. Pudera ele viajar sem destino e seria feliz, mas para isso precisaria de uma linha ferroviária circular, que o encurralasse num percurso infinito sem chegada. Poderia então sorrir finalmente, contente no limbo de não estar em nenhum lado, de estar só viajando, satisfeito como Aaronson, porque, como para este, "a vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda". 

domingo, 8 de dezembro de 2019

Herói a sério


  Darkwing Duck será um verdadeiro super-herói? O epíteto faz-nos pensar em figuras de banda desenhada como o Super-Homem, o Batman ou o Homem-Aranha. Aquele que agora consideramos parece situar-se em universo à parte, mas paralelo, actuando em jeito de imitação e sátira do habitado pelas figuras modelares. As coisas não soam a sério no universo do pato de capa, os vilões parecem bonecos e os perigos quase brincadeiras. As peripécias são demasiado fantasiosas e até ridículas para perturbarem, e os dramas nunca apoquentam para lá da emoção leve do momento.
  Tudo isto entra em contradição, todavia, com o discurso do protagonista. É difícil imaginar alguém levar-se mais a sério, adoptar atitude mais profissional ou encarar os desafios pela frente com atenção mais cuidada. A postura começa por destacar-se em contraposição com a perspectiva de muitos dos demais, incluindo os inimigos, que muitas vezes o buscam ridicularizar. Mas o juízo vale à luz de qualquer padrão, e a atitude do pato tanto é de ferro em intensidade como em constância: pode acontecer que duvide da sua aptidão, habilidades ou autosuficiência; mas nunca da dignidade das tarefas que lhe cabem.
  É justamente a seriedade com que encara o seu trabalho que melhor explica o heroísmo desta personagem. Apesar de desprovido de super-poderes, a sua valentia nunca fraqueja; não recua perante nenhuma ameaça, mesmo quando superado fisicamente ou depois de vencido em combate. É incorruptível, honesto como o azeite e íntegro como as estátuas. Não decide pelo tamanho da ameaça ou do suborno, porque só mede com a régua da equidade. Mas os seus ideais de justiça só se compreendem atendendo à adoração que sente pela teatralidade: age, sobretudo, para desempenhar o papel de super-herói, no qual quer que o vejam e reconheçam, mesmo se não tanto como nele se quer ver e reconhecer a si mesmo. Toda a encenação que desenvolve é pretensão de corresponder ao papel que tanto preza: entra anunciando-se com imagens descritivas rebuscadas, recorre a frases-chavão, usa disfarce, realiza gestos dramáticos com a capa, abusa de falas empolgadas e arrebatadoras, enfim, vale-se de todos os maneirismos e implicações cénicas de que se lembra e é capaz. Providencia até a narração em tons épicos dos seus feitos – nos quais podem estar incluídas as acções mais banais e as situações mais quotidianas.
  Não é estranho apontar-lhe, assim, certo desejo de encontrar ameaças de grande dimensão, na pressuposição de que elas lhe proporcionarão a oportunidade de crescer até às dimensões do papel que idealiza. Como Batman, Darkwing precisa dos seus inimigos, porque são eles que lhe justificam a máscara. E é a máscara que o mantém desperto, já que Drake Mallard, o seu alter ego, no fim de contas, só existe porque super-herói que se preze precisa de identidade secreta. Os dois heróis parecem partilhar o manto: Darkwing adopta a seriedade de Batman para encarar ameaças ridículas, quase infantis. Incapaz de brincar, Batman adoptaria a mesma atitude séria perante o que poderia ser mera palhaçada. No limite, o que os torna o inverso um do outro é o inimigo: diante de Darkwing, não há Joker nenhum a impossibilitar qualquer riso, a conferir um definitivo rosto trágico aos acontecimentos. Os inimigos do pato de capa são palhaços no sentido cómico do termo, nunca no trágico, nem muito menos no terrível, e por isso a atitude séria, se em Batman é resposta adequada, em Darkwing não podia surgir mais deslocada. Actua muito por aí o humor vertido nas suas aventuras. Mas se o humor funciona pela inversão da ordem, por situar em posição deslocada ou fora de lugar os elementos sujeitos a ridículo, é Batman, não Darkwing, quem, em última análise, se oferece a – e até provoca – o mais terrível sentido de humor: Joker não surge somente em resposta à seriedade de Batman, ele não ri simplesmente porque este não o faz, mas sim porque essa seriedade não parece cómica a ninguém. Joker não responde simplesmente a Batman não achar piada a nada, mas a que ninguém ache piada à falta de sentido de humor do homem-morcego. Se Darkwing não encontra o seu Joker, não é então culpa sua: porque embora lhe falte sentido de humor (ou justamente por isso), nunca é difícil rir dele. Em última análise, o seu heroísmo também é o de nunca rir, porque aquele que apenas ri suscita a pergunta terrível de quem não acha graça: "qual é a piada?" Por outras palavras, um Joker terrível, que nunca riria, surgiria no mundo dos patos se este herói compreendesse a graça.
  Dizer que este pato não sabe brincar não é falso, mas fornece só uma das dimensões que a questão suscita. Um brincalhão diverte-se no meio de coisas sérias, trata-as como leves, enquanto Darkwing Duck, invertendo esse espírito, encara seriamente aquilo que, à partida, seria leve e engraçado. Mas não o faz como adulto envelhecido e empedernido que muda o cariz às coisas. Ele não transforma as coisas, já que estas nunca perdem o seu tom cómico; limita-se a vê-las de outro modo. O seu olhar visita o mundo sempre munido de gravidade, mas nunca o torna grave. Inverte o brincalhão em espírito, mas não em acções: se aquele joga com coisas sérias, este não torna sério jogo nenhum, pois já o encontra assim mesmo; se algo muda no mundo por acção do olhar deste pato, não são as coisas, mas o olhar dos outros sobre elas, porque ele limita-se a revelar o peso que elas têm escondido nas cores berrantes. Assim, é como se o pato mascarado fosse o único que, neste universo, consegue adivinhar a gravidade dos acontecimentos e personagens que o rodeiam, escondida por máscaras de patetice. Nada para ele é anódino nem inofensivo, porque o perigo é real está sempre à espreita. O ridículo existe e ele experiencia-o com frequência; mas nunca é leve nem o faz rir.
  Isto suposto, Darkwing Duck parece igualmente o inverso do homem-aranha: constantemente perseguido por vilões que o atormentam e por responsabilidades que sente sobrecarregarem-no, Peter Parker acha-se em luta permanente com a sua máscara, sofrendo crises existenciais que recorrentemente o fazem desejar e mesmo decidir deixar o trabalho de herói. Anseia por uma vida normal, liberta de tragédia e culpa, e podemos supor que se ao menos não houvesse crime, o homem-aranha poderia brincar: seria livre. Usa frequentemente humor enquanto combate vilões, mas em muitas ocasiões, tal parece tentativa, por vezes desesperada, de aliviar o ambiente, demasiado sério e carregado, dados os perigos em questão. Pelo contrário, Darkwing Duck não se vale de pilhérias para seja o que for, porque o seu intento nunca é o de aliviar o ambiente, senão o de o carregar.
  Drake Mallard sofre igualmente aqui e ali crises e dúvidas existenciais, quando derrotas mais espalhafatosas lhe produzem rombos maiores no orgulho. Também ele volta sempre para combater o crime novamente, não importa quão baixo o desânimo o tenha levado. Darkwing Duck tem, no fundo, vocação para super-herói a sério em todas as dimensões; só lhe falta o contexto. Está pronto a ser impiedoso no combate ao crime; só lhe faltam criminosos mais perigosos. Está preparado para ser modelo de comportamento e admiração para todos os jovens; só lhe falta ser levado a sério.
  Preso num mundo onde é impossível ser super-herói, porque a seriedade é o maior motivo para riso, Darkwing Duck nunca se descompõe, nem deixa de respeitar o papel que tanto admira e cultiva. Talvez não haja público para o seu teatro, ou talvez a sala esteja cheia de pessoas que riem dele. Mas no fim de contas, na tenacidade com que combate malfeitores e na fidelidade com que ama o teatro da justiça, ele exibe em cada pena um dos sinais distintivos do heroísmo: o da inapagável e impoluta dignidade.