No conto "O passageiro eterno", de Stefan Grabiński, Agapit Kluczka é um escrivão de tribunal que passa as tardes na estação de Snowie, realizando "viagens simbólicas": espera na fila para comprar bilhete, instala-se no comboio com a bagagem, troca informações de viagens com outros passageiros, impacienta-se com os atrasos do transporte... mas nunca chega a viajar: abandona a fila no instante antes de comprar o bilhete, sai da carruagem assim que o apito avisa da partida, e espera na estação pelo comboio seguinte, para repetir o ritual. Já lhe conhecendo os hábitos, os trabalhadores da estação chamam-lhe "passageiro eterno".
O senhor Kluczka não é, vendo bem, passageiro nenhum, visto que nunca chega a partir, senão em imaginação. Lamentando não poder ser revisor por razões de saúde (não esclarecidas) e que o destino o tenha feito prisioneiro de trabalho de secretária, sonha com as viagens que nunca fará e simula todos os procedimentos necessários para a partida que nunca terá lugar.
Agapit não deseja propriamente chegar a um sítio em concreto, porque o apaixona a viagem, não o destino; inveja nos funcionários ferroviários a "neurose constante" da viagem sem fim.
O que pretende o senhor Kluczka? Está claro que não sonha com qualquer destino paradisíaco, não tem propriamente um lugar idealizado a aguardar os passos que não pode dar. Sob certa perspectiva, parece ser livre: nada o puxa nem o prende. Encontra-se materialmente dependente do que o sustenta, mas nos planos anímico e espiritual, não tem raízes em casa – pelo contrário, lamenta a impossibilidade de a deixar. Do estrangeiro também não o chama ninguém nem nenhum local específico, de modo que Agapit é pessoa sem correntes, porque sem ligações. Não foram razões monetárias e de saúde, poderia viajar por onde quisesse, sem incómodos de maior. Não pousando o centro da sua personalidade – o núcleo impulsionador das decisões que toma – em nenhum lugar fora de si mesmo, nem se amarrando a qualquer interesse fixo prevalecente, material e geograficamente situado (como poderia ser uma mulher amada, uma promoção na carreira, etc.), o senhor Kluczka é dono de si mesmo e do seu destino, preso por nada e livre de grilhões. Não se pode verdadeiramente contradizer isto com a sua paixão por viajar, porque é a viagem, não a chegada, o que o fascina: arrebata-o tanto a ida como o regresso, porque, vendo bem, nenhum é ida ou regresso, são ambos deslocação: sem casa nem destino, toda a locomoção é para ele passeio sem turismo, nada interessando na paisagem, antes relevando somente os mecanismos e rituais do viajar. A viagem não é, assim, ponto fixo que o limite e restrinja, capturando-o para longe de si mesmo, mas sim a concretização possível do idealizado processo de libertação de todos os pontos fixos que não lhe importam. Interessa-lhe viajar, em suma, porque não quer pousar em lugar nenhum.
Algumas dúvidas, porém, se levantam quando o vemos tão liberto: quer Agapit de facto viajar? As suas dificuldades de saúde não são esclarecidas, ficando no plano do mero pretexto; quanto às monetárias, podemos perguntar se o seu desejo, apresentado como tão intenso, não o devia levar a procurar outro emprego, uma promoção, ou simplesmente a juntar dinheiro, de modo que pudesse comprar viagens de quando em vez. Se o senhor Kluczka concretizasse os seus sonhos e levasse a vida a deslocar-se de um lado para o outro sem estacionar em nenhum, gozaria a liberdade duma existência inversa à dos fantasmas: estes espíritos vagueiam movidos pelo drama de não poderem voltar à vida de onde partiram, estando ao mesmo tempo impedidos de aterrar onde os mortos descansam; já no caso de Agapit, a mesma condição não seria drama, mas alegria: tivera a disponibilidade para isso e seria feliz vagueando sem pousar onde quer quer fosse.
O senhor Kuczka, contudo, nunca chega a partir, e é legítimo suspeitar que algo para lá dos pretextos materiais o prende à estação. Esta poderia ser para ele o que a rotunda é para Aaronson, personagem de Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares): um lugar com múltiplas hipóteses de caminho onde se pode ficar mantendo em aberto todas as possibilidades, sem chegar a arriscar nenhuma. Para Aaronson, é confortável correr à volta da rotunda sem tomar uma via, porque não optando, não há hipótese de engano, de ser obrigado a voltar atrás. Por aqui já notamos, todavia, diferença em relação a Agapit: não é por medo de errar que abandona o comboio antes da hora, pois a opção por um destino nem se lhe apresenta. Em rigor, visto que não tem em mente qualquer meta, a própria perspectiva de erro perde sentido: todas as opções são válidas, porque nenhuma é a correcta; e nenhuma é a correcta, porque nenhuma está errada. O senhor Kluczka não quer chegar a lado nenhum, quer apenas fazer o caminho. Não voltaria atrás por se ter enganado, mas por ser essa a direcção tomada pelo comboio. Podemos ir ao ponto de dizer que nem sequer estaria verdadeiramente a voltar atrás: os caminhos com que sonha não têm linhas de chegada e partida, pelo que a indiferença entre os lugares de chegar e partir é a conclusão mais lógica: os seus percursos não têm origem nem destino.
O senhor Kluczka, no entanto, nunca parte. Vive na prisão avessa à dos fantasmas: sofre, não por falta de lugar para pousar, mas por não poder partir. Se ao menos tivera noutro lugar algo que o puxasse, teria ocasião para se arrancar de onde mora. Mas não tem centro, nem no estrangeiro nem em casa, e por isso não chega a estacionar verdadeiramente em lugar nenhum. Homem sem ligações, não há correntes nem algemas que o limitem ou condicionem. Mas, no fim de contas, nem isso lhe dá liberdade. Sem direcção nem objectivo, nenhum comboio o pode levar para onde quer que seja, porque os comboios orientam-se pelas estações para que apontam e são elas que os obrigam aos caminhos. Para Agapit, as outras estações são pretextos que ele dispensa, sem perceber que assim é o próprio percurso que acaba condenado. Nem na estação onde passa tantas horas dos seus dias assenta realmente, porque só lá permanece na perspectiva (ainda que irreal) de partir brevemente. Não partirá, e por isso a estação, no fim de contas, é a sua prisão.
A liberdade é possível para o senhor Kluczka? Sonha existir como os fantasmas, mas estes só vagueiam no pesadelo de não poderem chegar a lado nenhum, nem regressar. Agapit não tem meta, e por isso nunca comprará bilhete. Pudera ele viajar sem destino e seria feliz, mas para isso precisaria de uma linha ferroviária circular, que o encurralasse num percurso infinito sem chegada. Poderia então sorrir finalmente, contente no limbo de não estar em nenhum lado, de estar só viajando, satisfeito como Aaronson, porque, como para este, "a vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda".
Algumas dúvidas, porém, se levantam quando o vemos tão liberto: quer Agapit de facto viajar? As suas dificuldades de saúde não são esclarecidas, ficando no plano do mero pretexto; quanto às monetárias, podemos perguntar se o seu desejo, apresentado como tão intenso, não o devia levar a procurar outro emprego, uma promoção, ou simplesmente a juntar dinheiro, de modo que pudesse comprar viagens de quando em vez. Se o senhor Kluczka concretizasse os seus sonhos e levasse a vida a deslocar-se de um lado para o outro sem estacionar em nenhum, gozaria a liberdade duma existência inversa à dos fantasmas: estes espíritos vagueiam movidos pelo drama de não poderem voltar à vida de onde partiram, estando ao mesmo tempo impedidos de aterrar onde os mortos descansam; já no caso de Agapit, a mesma condição não seria drama, mas alegria: tivera a disponibilidade para isso e seria feliz vagueando sem pousar onde quer quer fosse.
O senhor Kuczka, contudo, nunca chega a partir, e é legítimo suspeitar que algo para lá dos pretextos materiais o prende à estação. Esta poderia ser para ele o que a rotunda é para Aaronson, personagem de Matteo perdeu o emprego (Gonçalo M. Tavares): um lugar com múltiplas hipóteses de caminho onde se pode ficar mantendo em aberto todas as possibilidades, sem chegar a arriscar nenhuma. Para Aaronson, é confortável correr à volta da rotunda sem tomar uma via, porque não optando, não há hipótese de engano, de ser obrigado a voltar atrás. Por aqui já notamos, todavia, diferença em relação a Agapit: não é por medo de errar que abandona o comboio antes da hora, pois a opção por um destino nem se lhe apresenta. Em rigor, visto que não tem em mente qualquer meta, a própria perspectiva de erro perde sentido: todas as opções são válidas, porque nenhuma é a correcta; e nenhuma é a correcta, porque nenhuma está errada. O senhor Kluczka não quer chegar a lado nenhum, quer apenas fazer o caminho. Não voltaria atrás por se ter enganado, mas por ser essa a direcção tomada pelo comboio. Podemos ir ao ponto de dizer que nem sequer estaria verdadeiramente a voltar atrás: os caminhos com que sonha não têm linhas de chegada e partida, pelo que a indiferença entre os lugares de chegar e partir é a conclusão mais lógica: os seus percursos não têm origem nem destino.
O senhor Kluczka, no entanto, nunca parte. Vive na prisão avessa à dos fantasmas: sofre, não por falta de lugar para pousar, mas por não poder partir. Se ao menos tivera noutro lugar algo que o puxasse, teria ocasião para se arrancar de onde mora. Mas não tem centro, nem no estrangeiro nem em casa, e por isso não chega a estacionar verdadeiramente em lugar nenhum. Homem sem ligações, não há correntes nem algemas que o limitem ou condicionem. Mas, no fim de contas, nem isso lhe dá liberdade. Sem direcção nem objectivo, nenhum comboio o pode levar para onde quer que seja, porque os comboios orientam-se pelas estações para que apontam e são elas que os obrigam aos caminhos. Para Agapit, as outras estações são pretextos que ele dispensa, sem perceber que assim é o próprio percurso que acaba condenado. Nem na estação onde passa tantas horas dos seus dias assenta realmente, porque só lá permanece na perspectiva (ainda que irreal) de partir brevemente. Não partirá, e por isso a estação, no fim de contas, é a sua prisão.
A liberdade é possível para o senhor Kluczka? Sonha existir como os fantasmas, mas estes só vagueiam no pesadelo de não poderem chegar a lado nenhum, nem regressar. Agapit não tem meta, e por isso nunca comprará bilhete. Pudera ele viajar sem destino e seria feliz, mas para isso precisaria de uma linha ferroviária circular, que o encurralasse num percurso infinito sem chegada. Poderia então sorrir finalmente, contente no limbo de não estar em nenhum lado, de estar só viajando, satisfeito como Aaronson, porque, como para este, "a vida, apesar de tudo, é fácil. Numa rotunda".