E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 8 de dezembro de 2019

Herói a sério


  Darkwing Duck será um verdadeiro super-herói? O epíteto faz-nos pensar em figuras de banda desenhada como o Super-Homem, o Batman ou o Homem-Aranha. Aquele que agora consideramos parece situar-se em universo à parte, mas paralelo, actuando em jeito de imitação e sátira do habitado pelas figuras modelares. As coisas não soam a sério no universo do pato de capa, os vilões parecem bonecos e os perigos quase brincadeiras. As peripécias são demasiado fantasiosas e até ridículas para perturbarem, e os dramas nunca apoquentam para lá da emoção leve do momento.
  Tudo isto entra em contradição, todavia, com o discurso do protagonista. É difícil imaginar alguém levar-se mais a sério, adoptar atitude mais profissional ou encarar os desafios pela frente com atenção mais cuidada. A postura começa por destacar-se em contraposição com a perspectiva de muitos dos demais, incluindo os inimigos, que muitas vezes o buscam ridicularizar. Mas o juízo vale à luz de qualquer padrão, e a atitude do pato tanto é de ferro em intensidade como em constância: pode acontecer que duvide da sua aptidão, habilidades ou autosuficiência; mas nunca da dignidade das tarefas que lhe cabem.
  É justamente a seriedade com que encara o seu trabalho que melhor explica o heroísmo desta personagem. Apesar de desprovido de super-poderes, a sua valentia nunca fraqueja; não recua perante nenhuma ameaça, mesmo quando superado fisicamente ou depois de vencido em combate. É incorruptível, honesto como o azeite e íntegro como as estátuas. Não decide pelo tamanho da ameaça ou do suborno, porque só mede com a régua da equidade. Mas os seus ideais de justiça só se compreendem atendendo à adoração que sente pela teatralidade: age, sobretudo, para desempenhar o papel de super-herói, no qual quer que o vejam e reconheçam, mesmo se não tanto como nele se quer ver e reconhecer a si mesmo. Toda a encenação que desenvolve é pretensão de corresponder ao papel que tanto preza: entra anunciando-se com imagens descritivas rebuscadas, recorre a frases-chavão, usa disfarce, realiza gestos dramáticos com a capa, abusa de falas empolgadas e arrebatadoras, enfim, vale-se de todos os maneirismos e implicações cénicas de que se lembra e é capaz. Providencia até a narração em tons épicos dos seus feitos – nos quais podem estar incluídas as acções mais banais e as situações mais quotidianas.
  Não é estranho apontar-lhe, assim, certo desejo de encontrar ameaças de grande dimensão, na pressuposição de que elas lhe proporcionarão a oportunidade de crescer até às dimensões do papel que idealiza. Como Batman, Darkwing precisa dos seus inimigos, porque são eles que lhe justificam a máscara. E é a máscara que o mantém desperto, já que Drake Mallard, o seu alter ego, no fim de contas, só existe porque super-herói que se preze precisa de identidade secreta. Os dois heróis parecem partilhar o manto: Darkwing adopta a seriedade de Batman para encarar ameaças ridículas, quase infantis. Incapaz de brincar, Batman adoptaria a mesma atitude séria perante o que poderia ser mera palhaçada. No limite, o que os torna o inverso um do outro é o inimigo: diante de Darkwing, não há Joker nenhum a impossibilitar qualquer riso, a conferir um definitivo rosto trágico aos acontecimentos. Os inimigos do pato de capa são palhaços no sentido cómico do termo, nunca no trágico, nem muito menos no terrível, e por isso a atitude séria, se em Batman é resposta adequada, em Darkwing não podia surgir mais deslocada. Actua muito por aí o humor vertido nas suas aventuras. Mas se o humor funciona pela inversão da ordem, por situar em posição deslocada ou fora de lugar os elementos sujeitos a ridículo, é Batman, não Darkwing, quem, em última análise, se oferece a – e até provoca – o mais terrível sentido de humor: Joker não surge somente em resposta à seriedade de Batman, ele não ri simplesmente porque este não o faz, mas sim porque essa seriedade não parece cómica a ninguém. Joker não responde simplesmente a Batman não achar piada a nada, mas a que ninguém ache piada à falta de sentido de humor do homem-morcego. Se Darkwing não encontra o seu Joker, não é então culpa sua: porque embora lhe falte sentido de humor (ou justamente por isso), nunca é difícil rir dele. Em última análise, o seu heroísmo também é o de nunca rir, porque aquele que apenas ri suscita a pergunta terrível de quem não acha graça: "qual é a piada?" Por outras palavras, um Joker terrível, que nunca riria, surgiria no mundo dos patos se este herói compreendesse a graça.
  Dizer que este pato não sabe brincar não é falso, mas fornece só uma das dimensões que a questão suscita. Um brincalhão diverte-se no meio de coisas sérias, trata-as como leves, enquanto Darkwing Duck, invertendo esse espírito, encara seriamente aquilo que, à partida, seria leve e engraçado. Mas não o faz como adulto envelhecido e empedernido que muda o cariz às coisas. Ele não transforma as coisas, já que estas nunca perdem o seu tom cómico; limita-se a vê-las de outro modo. O seu olhar visita o mundo sempre munido de gravidade, mas nunca o torna grave. Inverte o brincalhão em espírito, mas não em acções: se aquele joga com coisas sérias, este não torna sério jogo nenhum, pois já o encontra assim mesmo; se algo muda no mundo por acção do olhar deste pato, não são as coisas, mas o olhar dos outros sobre elas, porque ele limita-se a revelar o peso que elas têm escondido nas cores berrantes. Assim, é como se o pato mascarado fosse o único que, neste universo, consegue adivinhar a gravidade dos acontecimentos e personagens que o rodeiam, escondida por máscaras de patetice. Nada para ele é anódino nem inofensivo, porque o perigo é real está sempre à espreita. O ridículo existe e ele experiencia-o com frequência; mas nunca é leve nem o faz rir.
  Isto suposto, Darkwing Duck parece igualmente o inverso do homem-aranha: constantemente perseguido por vilões que o atormentam e por responsabilidades que sente sobrecarregarem-no, Peter Parker acha-se em luta permanente com a sua máscara, sofrendo crises existenciais que recorrentemente o fazem desejar e mesmo decidir deixar o trabalho de herói. Anseia por uma vida normal, liberta de tragédia e culpa, e podemos supor que se ao menos não houvesse crime, o homem-aranha poderia brincar: seria livre. Usa frequentemente humor enquanto combate vilões, mas em muitas ocasiões, tal parece tentativa, por vezes desesperada, de aliviar o ambiente, demasiado sério e carregado, dados os perigos em questão. Pelo contrário, Darkwing Duck não se vale de pilhérias para seja o que for, porque o seu intento nunca é o de aliviar o ambiente, senão o de o carregar.
  Drake Mallard sofre igualmente aqui e ali crises e dúvidas existenciais, quando derrotas mais espalhafatosas lhe produzem rombos maiores no orgulho. Também ele volta sempre para combater o crime novamente, não importa quão baixo o desânimo o tenha levado. Darkwing Duck tem, no fundo, vocação para super-herói a sério em todas as dimensões; só lhe falta o contexto. Está pronto a ser impiedoso no combate ao crime; só lhe faltam criminosos mais perigosos. Está preparado para ser modelo de comportamento e admiração para todos os jovens; só lhe falta ser levado a sério.
  Preso num mundo onde é impossível ser super-herói, porque a seriedade é o maior motivo para riso, Darkwing Duck nunca se descompõe, nem deixa de respeitar o papel que tanto admira e cultiva. Talvez não haja público para o seu teatro, ou talvez a sala esteja cheia de pessoas que riem dele. Mas no fim de contas, na tenacidade com que combate malfeitores e na fidelidade com que ama o teatro da justiça, ele exibe em cada pena um dos sinais distintivos do heroísmo: o da inapagável e impoluta dignidade.

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