Como os antigos aristocratas em relação ao povo rude, Zidane
destacava-se dos demais jogadores – brutos na abordagem e rudimentares nas
possibilidades – pelo toque. Tornava divino o gesto banal: um passe ou domínio
de bola, que nos efeitos e importância prática passariam despercebidos quando
realizados por outrem, pareciam iluminar-se nos pés do argelino, porque feitos
com graça e delicadeza. O segredo de Zidane era a elegância.
Messi trabalha com o processo inverso: em vez de divinizar o gesto
banal, banaliza o gesto divino. Um passe, domínio ou jogo de cintura, que, pela
dificuldade ou improbabilidade de sucesso, seriam extraordinários quando feitos
por outrem, surgem nele normais, corriqueiros, até fáceis, porque levados a
cabo com naturalidade. O que actua no argentino é a distância, porque mesmo no
meio do campo entre tantos transeuntes, parece jogar noutro sítio, a tal ponto
que quase sentimos que os demais nada têm que fazer por ali: o campeonato de
Messi é outro, e, quando festeja um golo a apontar para o céu, é como se o
víssemos dizer "foi ali, não aqui, que isto aconteceu".
Com as suas maravilhas, Messi traz para a discussão o extraordinário, o
que parece desafiar as leis da natureza. É isso que, para Hume (Enquiry
Concerning Human Understanding), define o milagre: a violação das leis
naturais por vontade dum agente divino ou invisível. Algo de comum se esconde
entre esta posição e a de quem, como Espinosa (Tratado Teológico-Político),
defende que a violação das leis naturais não pode explicar-se pela vontade
divina, já que esta, por dar origem às próprias leis violadas, entraria então
em contradição. Assim, os milagres não contrariam aquelas leis, mas sim o
limitado entendimento que delas fazemos: revelam os limites do nosso
conhecimento sobre o seu funcionamento. Nesta linha, podemos rematar com a
ideia de que a maravilha milagrosa não é a da impossibilidade, mas a do
segredo: por mais familiar e rotineira que a natureza nos surja, ainda há
coisas nela por descobrir, grutas escuras por explorar.
A
olhos relaxados, o milagre é extraordinário porque parece excepção, por não
admitir explicação à luz das leis a que escapa. Mas com as suas maravilhas,
Messi parece inverter esta lógica: repetindo o improvável, dá impressão de
criar as suas próprias leis, se não como agente invisível, pois o desenho
realiza-se à vista de todos, ao menos com divinas mãos (ou pés). Insistindo em
trazer uma e outra vez o extraordinário, torna expectável o irrepetível, ou
mesmo devido, fá-lo regra (retomando a transformação do ritual em direito). O
cariz milagroso desaparece pela habituação, e aceitamos finalmente que as coisas
incríveis acontecem nos seus pés porque devem acontecer – a ponto de o
julgarmos e condenarmos por falhar quando elas não surgem.
Nunca deixamos, ainda assim, de nos admirar. Talvez não seja já notícia
o gesto incrível, mas ainda abrimos a boca quando assistimos. Porque
continuamos presos às leis com que estamos familiarizados. Se já sabemos da existência dessas
outras que o argentino exibe, não as conhecemos verdadeiramente, porque, ao
contrário dele, não as sabemos pôr em prática. Por aí se mantém o segredo
dessas regras. Messi exibe e repete o extraordinário para dar razão à teoria
epistémica dos milagres, garantindo que na natureza nada se viola, mas algumas
coisas se escondem. Continuamos, porém, sem ver tudo, porque quando olhamos,
não compreendemos. O argentino faz à nossa frente e acreditamos, mas não
sabemos repetir, nem esperamos que se repita. E por isso ainda é milagre,
porque acontece e se vê, mas não se compreende nem se explica.
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