E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Milagres





  Como os antigos aristocratas em relação ao povo rude, Zidane destacava-se dos demais jogadores – brutos na abordagem e rudimentares nas possibilidades – pelo toque. Tornava divino o gesto banal: um passe ou domínio de bola, que nos efeitos e importância prática passariam despercebidos quando realizados por outrem, pareciam iluminar-se nos pés do argelino, porque feitos com graça e delicadeza. O segredo de Zidane era a elegância.
  Messi trabalha com o processo inverso: em vez de divinizar o gesto banal, banaliza o gesto divino. Um passe, domínio ou jogo de cintura, que, pela dificuldade ou improbabilidade de sucesso, seriam extraordinários quando feitos por outrem, surgem nele normais, corriqueiros, até fáceis, porque levados a cabo com naturalidade. O que actua no argentino é a distância, porque mesmo no meio do campo entre tantos transeuntes, parece jogar noutro sítio, a tal ponto que quase sentimos que os demais nada têm que fazer por ali: o campeonato de Messi é outro, e, quando festeja um golo a apontar para o céu, é como se o víssemos dizer "foi ali, não aqui, que isto aconteceu".
  Com as suas maravilhas, Messi traz para a discussão o extraordinário, o que parece desafiar as leis da natureza. É isso que, para Hume (Enquiry Concerning Human Understanding), define o milagre: a violação das leis naturais por vontade dum agente divino ou invisível. Algo de comum se esconde entre esta posição e a de quem, como Espinosa (Tratado Teológico-Político), defende que a violação das leis naturais não pode explicar-se pela vontade divina, já que esta, por dar origem às próprias leis violadas, entraria então em contradição. Assim, os milagres não contrariam aquelas leis, mas sim o limitado entendimento que delas fazemos: revelam os limites do nosso conhecimento sobre o seu funcionamento. Nesta linha, podemos rematar com a ideia de que a maravilha milagrosa não é a da impossibilidade, mas a do segredo: por mais familiar e rotineira que a natureza nos surja, ainda há coisas nela por descobrir, grutas escuras por explorar.
  A olhos relaxados, o milagre é extraordinário porque parece excepção, por não admitir explicação à luz das leis a que escapa. Mas com as suas maravilhas, Messi parece inverter esta lógica: repetindo o improvável, dá impressão de criar as suas próprias leis, se não como agente invisível, pois o desenho realiza-se à vista de todos, ao menos com divinas mãos (ou pés). Insistindo em trazer uma e outra vez o extraordinário, torna expectável o irrepetível, ou mesmo devido, fá-lo regra (retomando a transformação do ritual em direito). O cariz milagroso desaparece pela habituação, e aceitamos finalmente que as coisas incríveis acontecem nos seus pés porque devem acontecer – a ponto de o julgarmos e condenarmos por falhar quando elas não surgem.
  Nunca deixamos, ainda assim, de nos admirar. Talvez não seja já notícia o gesto incrível, mas ainda abrimos a boca quando assistimos. Porque continuamos presos às leis com que estamos familiarizados. Se já sabemos da existência dessas outras que o argentino exibe, não as conhecemos verdadeiramente, porque, ao contrário dele, não as sabemos pôr em prática. Por aí se mantém o segredo dessas regras. Messi exibe e repete o extraordinário para dar razão à teoria epistémica dos milagres, garantindo que na natureza nada se viola, mas algumas coisas se escondem. Continuamos, porém, sem ver tudo, porque quando olhamos, não compreendemos. O argentino faz à nossa frente e acreditamos, mas não sabemos repetir, nem esperamos que se repita. E por isso ainda é milagre, porque acontece e se vê, mas não se compreende nem se explica.

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