E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 30 de agosto de 2020

Abdicar de um rosto

  Na série Mahou Shoujo Madoka Magica (Magica Quartet), os incubadores são uma raça que procura evitar a morte térmica do universo. Para isso, valem-se da única forma de energia independente das leis da termodinâmica: a emocional. Oferecem a raparigas adolescentes com o maior potencial a oportunidade de terem qualquer desejo realizado e receberem poderes mágicos de combate, em troca do que passarão a combater bruxas, criaturas misteriosas e destrutivas. Na verdade, as bruxas foram em tempos raparigas mágicas como elas, que cederam a sentimentos negativos. É o espectro emocional entre a esperança e entusiasmo iniciais e o desespero e descrença crescentes das adolescentes transformadas em bruxas que os incubadores aproveitam para absorverem a energia de que precisam. No final, porém, Madoka usa o seu desejo para impedir o aparecimento de quaisquer bruxas, passadas, presentes ou futuras. A História é reescrita, Madoka desaparece do mundo e é apenas lembrada pela amiga Homura. As raparigas mágicas continuam a lutar contra espectros, mas quando fraquejam e caem, não mais se tornam bruxas, antes se purificando e desaparecendo. Madoka deixa de ser uma rapariga e torna-se um princípio implantado no mundo, um mecanismo que aparece no momento em que as raparigas caem, para impedir que se transformem. O balanço energético do contributo das raparigas para o universo deixa de ser zero, e assim, Madoka honra as esperanças delas, e os seus sacrifícios. A cada vez que alguém condenar a ousadia de ter esperança, Madoka aparecerá para lhe dizer que está errado.


  Na sua análise do ep. 2, Bobduh nota como o mundo em que Madoka vive é seguro, agradável e relativamente vazio, um mundo que exige pouco, mas não oferece a Madoka grande coisa quanto a identidade. Acrescenta que Madoka é demasiado nova para saber quem é. Perante a oportunidade de se tornar uma heroína com poderes mágicos e deveres, em troca da concretização de qualquer desejo, ela hesita e parece duvidar do seu valor por completo. Conhece Mami, rapariga mágica experiente, e vê-a como ser de infinita graça e beleza, a mulher forte que a mãe de Madoka gostaria que esta fosse. Vendo Mami entregando-se a salvar os outros, pensa que se "alguém como ela [Madoka] pudesse ajudar os outros, seria bom".
  Olhando à luz do aqui sugerido, como ler o sacrifício final de Madoka? É um gesto imenso, sem dúvida, o de se prestar a dar-se por toda a eternidade, em todos os tempos, mesmo os alternativos, para evitar o aparecimento de bruxas, ao mesmo tempo apagando a sua identidade e desaparecendo dos tempos e lugares concretos, particulares, não restando da sua imagem mais do que ecos, noções vagas, difusas, de pessoas que não a recordam verdadeiramente. Mas como podemos valorar esta atitude?
  Repare-se em como vê ela Mami: Madoka não tem a sua identidade formada, como é fácil apontar. As suas preferências e gostos não têm aprovação universal pelas amigas, e ainda que tivessem, são superficiais – vive num mundo seguro, mas que, como diz Bobduh, não oferece muito em termos de identidade. A oportunidade que recebe fá-la sentir-se culpada, porque envolve uma responsabilidade para a qual não se sente à altura: se responsabilidade é responder por alguma coisa, apresentar-se 'dando a cara por', temos que Madoka sente quão deficitária é a sua presença, quão pouco e indefinido é o que tem para responder. Na imagem de Mami a lutar contra bruxas e sacrificando-se para ajudar outros, cheia de graça e beleza, Madoka vê não apenas bondade e sentido ético louváveis, mas igualmente um quadro de completude e essência. Madoka tem um primeiro vislumbre de algo que pode abraçar e dar-lhe rumo, direcção.
  O seu sacrifício final, todavia, é um extremar deste percurso, a tal ponto exagerado que leva ao seu desaparecimento, rectius, da sua identidade. No quarto episódio, Madoka não suporta a ideia de que Mami não será lembrada, ninguém terá sequer conhecimento da sua história. Ora, se Mami, a imagem idealizada da identidade que Madoka gostaria de atingir, não só desapareceu com facilidade e crueldade como nem sequer fica nada dela para recordar, que pode Madoka esperar atingir prosseguindo um caminho individual para o qual não consegue sequer eleger um rumo? Resta-lhe a solução inversa de abdicar de construir uma identidade individual propriamente dita.

  Madoka não salva apenas outras pessoas, salva-se a si mesma da sua incompletude e indefinição, das deficiências de formação da sua identidade. Madoka espalha-se por todos os tempos e lugares, abraçando em bondade e sacrifício todas as escolhas e dramas das raparigas mágicas, passadas presentes e futuras, mas deste modo, não chega verdadeiramente a formar uma identidade propriamente dita: abarcando tudo, perde os contornos que só a finitude podia proporcionar; estendendo-se para sempre no tempo, perde a completude só possível com o fim trazido pela morte.
  Madoka salva-se dos traços rascunhados insuficientes para sentir um mínimo de segurança na edificação da sua pessoa, abdicando destarte do esforço mais dramático que nos confronta pela vida fora: o de nos tornarmos quem somos, de definirmos a nossa identidade, inventando-nos todos os dias, confirmando-nos a nós mesmos nos dias seguintes, renovando-nos e remodelando-nos na superação dos erros, das desilusões, das perdas. No seu altruísmo máximo, Madoka deita fora todo o egoísmo, e assim, a coragem bondosa do seu sacrifício é a cobardia de quem prescinde de continuar criatura frágil, obrigada a lutar todos os dias não tanto para sobreviver como para escrever a história de si mesma, criando-se como protagonista da mesma. Quase deus na omnipresença, mas sem arbítrio nem escolhas para ser pessoa, Madoka foge de se tornar mulher para se tornar anjo: ganha asas para voar onde ninguém a vê, perde pernas para caminhar onde talvez pudesse alguma mão amiga agarrá-la quando caísse.
  Debruçando-se sobre a última conversa de Madoka com a sua mãe, Bobduh aventa que depois de ter estabelecido laços com Kyouko, perdido a amiga Sayaka e percebido o quanto significa para Homura, Madoka já está consciente de ter valor e de a sua existência ser importante, porque há gente que a ama, e isto, por si só, traz responsabilidade. Madoka não precisa já de abraçar um grande desígnio ou propósito para dar sentido à sua vida, ou de sentir o reconhecimento dos demais, basta-lhe ligar-se aos outros, ser importante para eles e dar-lhes importância.
  Parece seguro que Madoka, nos últimos episódios, perdeu a insegurança de sentir não ter valor, e aprendeu que ligando-nos aos outros, ganhamos significado para eles. Mas isto não lhe oferece identidade, de modo que ainda precisa de um gesto definitivo que a ligue a todos. Esse gesto redunda, inevitavelmente, em não se ligar verdadeiramente a ninguém, já que enquanto seres humanos, estamos limitados nas conexões verdadeiras que conseguimos: elas serão tanto mais ricas de conteúdo, tanto mais profundas, quanto mais próximas, íntimas, sejam. Mas é disso que ela abdica. Dispensando os limites que a poderiam situar, Madoka dispersa-se; não ficando presa a um lugar, deixa de estar em lugar algum.

  Tem razão, por outro lado, Bobduh quando afirma que a força de Madoka mora na empatia, na ligação que sente com os demais. Mas deixando de ter rosto e individualidade, passa a definir-se identificando-se com o próprio gesto de dar, de se oferecer, de desaparecer em dádiva aos outros. Não se torna com isso uma pessoa (pelo contrário), mas realiza ao máximo o potencial de um dos traços mais humanos que temos, a empatia, dissolvendo-se no gesto de se entregar.

  Percebendo o sacrifício de Madoka, Homura chora a solidão do destino da amiga, e esta responde que nunca estará sozinha, todos estarão com ela. Estão ambas certas por um lado, erradas por outro. Homura tem razão, porque Madoka não mais fará parte integrante do mundo enquanto sujeito visível pelos outros, susceptível de entrar em interacções conscientes com eles. Mas engana-se ao imaginá-la sujeito separado, como se Madoka continuasse a ser a mesma pessoa, mas fechada num quarto à parte do mundo. Na realidade, ela deixa de todo de ser sujeito. Madoka, por sua vez, porquanto não fica afastada do mundo, permanece nele, e todos estarão, de feito, com ela. Mas ela não será mais uma consciência individual propriamente dita, não é uma pessoa, não é visível, nem tem rosto. Madoka não poderá nunca verdadeiramente beneficiar de companhia, porque lhe falta a base para isso ser possível: ser capaz de solidão.

sábado, 1 de agosto de 2020

Graça na derrota

  No Livro de Jonas, Deus chama por Jonas e ordena-lhe que vá a Nínive – cujo estridor pecaminoso chegara aos ouvidos divinos – avisar as gentes do castigo por vir. Jonas começa por caminhar na direcção oposta, mas quando Deus o persegue com tempestades e o salva das ondas mantendo-o na barriga de um grande peixe, Jonas, com uma oração, parece aceitar o seu papel, é libertado e desloca-se à cidade. Aí, o seu alerta recebe a atenção devida dos habitantes, que mudam de procedimentos. Deus então arrepende-se e revoga o seu decreto, e o profeta, enfurecido, protesta contra Ele, considerando melhor morrer que seguir vivendo. Sai de Nínive e detém-se a observá-la. Alegra-se com uma planta (talvez uma aboboreira) nascida a seu lado, mas breve ela decai, corroída por um verme, e o irado Jonas quer de novo morrer. Deus confronta a sua dor pela planta com a condenação a que quer votar as pessoas e animais da cidade.

  Muito arrastar é necessário para levar este profeta relutante a cumprir o dele esperado. A primeira reacção ao comando divino é partir para Oeste em vez de Este. O voo desta pomba (Ionà) não é simplesmente transviado, mas rebelde, pois ela quer fugir, demitir-se da viagem. Mas o mais recalcitrante e contrariado dos profetas não chega a dizer não – chegam-nos apenas, mais tarde e pela sua boca, os ecos de uma recusa por ele nunca expressada.  Em apenas uma das ocasiões em que é interpelado replica com palavras, e não é para dar a negativa. A resposta predominante de Jonas é a do silêncio, e não é somente o único dos profetas silenciosos perante o chamamento das alturas, repete ainda essa mudez em diversas ocasiões.
  Escapando numa embarcação, o profeta não parece assustar-se com a procela vinda dos céus. Os marinheiros atemorizam-se com a tempestade e invocam as suas divindades, como cabe, mas Jonas responde-lhe indo dormir, parecendo não apenas querer guardar silêncio, mas nem sequer ouvir. Ou não teme os ventos abanando o barco, ou quer engolir o temporal, transformando-o em pesadelo, coisa desaparecida pela manhã: prefere deixar passar o barulho e acordar à vinda da bonança. Quando os homens o confrontam, porém, responde-lhes, mostrando-nos ser afinal capaz de entender invocações e devolver respostas, dar explicações, oferecer motivos e até soluções. Se não responde a Deus, em definitivo, não é por não poder. Por sua indicação, é atirado às águas, e ainda aqui não quer responder ao chamamento divino, entregando-se, tudo o indica, para morrer afogado. O peixe salva-o e guarda-o, porém, e o prófugo Jonas não tem mais para onde fugir, pois o fugimento levou-o à escuridão dum beco. É tempo de aceitar a sua missão.
  Nem agora, contudo, tem ele afirmativa simples para entregar. Recita um salmo, com aparência de deslocado neste texto, comunicando assim sua disposição do modo mais indirecto, e, já devidamente acorrentado ao seu papel, o peixe solta-o. Como nota Erri de Luca (“Quattro passi con Ionà/Giona”), depois de engolir Jonas, o peixe liberta-o (vomitando-o) já pronto para, por sua vez, libertar a palavra de Deus que engolira.
  Ouvindo o alerta do profeta estrangeiro, os prevaricadores comedem seus hábitos e corrigem seus comportamentos, levando Deus a arrepender-se e a revogar a condenação. E aqui, Jonas lembra as palavras ditas quando morava ainda na sua terra (as tais que nunca ouvimos), bem avisado da mudança de ideias prometida pela misericórdia divina em caso de arrependimento, e pede para morrer, pois é isso preferível a seguir vivo: segundo Luca, é o mais amargurado dos homens, pois até Job, atingido no corpo, nos afectos e nas posses, pede explicação, coisa que Jonas dispensa. Só quer morrer.
  Em vez da morte, Deus dá-lhe uma pergunta, questionando a sua irritação, mas Jonas não quer diálogo nem reconciliação, quer desvanecer. Sai da cidade e senta-se à espera dos acontecimentos.
  Não obtém a morte, recebe antes uma aboboreira e respectiva sombra, e podemos imaginar o profeta amuado sorrindo agora em sua alegria. Mas logo a aboboreira morre destruída pelo verme enviado por Deus, e o sol escaldante queima o vidente. E então o pretenso servo responde directamente ao Senhor pela primeira e única vez, quando confrontado novamente com a sua ira: está irado até à morte. Responde dirigindo-se a quem pergunta, mas a resposta, vendo bem, não é directa, é a reafirmação do seu pedido, quer ainda falecer. E assim, não admira que o texto termine, não verdadeiramente com a questão-argumento divino sobre a possível incongruência na piedade de Jonas, mas sim com o silêncio por este devolvido.
  Endurecido em seu silêncio em oposição aos céus, Jonas é inalcançável. Aceita, a contragosto, levar a palavra divina aos gentios, fazendo-a assim sua, ou, mais ainda, identificando-se com ela: o desespero de Jonas é o de quem não aceita ser desmentido, não por simples teimosia, mas por perder a cara quando o prometido não é cumprido. Destarte, a sua justiça não é sequer propriamente retributiva, pois ele não luta por responder ao pecado com o castigo, senão para ver cumprida a palavra: não tanto punir o criminoso como aplicar a lei, i. e., quer ver castigados os assírios, não simplesmente por terem pecado (pois já o faziam quando ele fugia), mas sobretudo porque a lei assim o ditou já expressamente.
  A justiça divina joga, todavia, com regras menos lineares, abarcando o arrependimento (do prevaricador e do juiz) e o perdão. No percurso de Jonas, o caminho só se faz em frente, e a sua obstinação é a de não aceitar a meia volta divina por ele adivinhada a princípio. Deus tenta convencê-lo e argumentar, mas Jonas fecha-se. É orgulhoso, como Luca salienta? É fácil concedê-lo, mas não parece Deus reagir a isso quando faz cair a aboboreira, antes soa mais convincente encontrar aqui a lição a receber pelo profeta. Não a recebe, porque não a quer. Jonas não deseja razões, nem, muito menos, está disposto a questionar a sua posição. A sua lógica é limitada, porque incapaz de abarcar desvios ou imaginar evoluções, mas absoluta, porquanto se basta a si mesma e de nada precisa para se manter de pé. Jonas acampa perto da cidade por castigar, sem casa aonde voltar, ou pátria à sua espera, pois é um desterrado: desacreditado pelo seu mandante, não tem mais palavras a levá-lo em seus passos, nem rosto para exibir aos penitentes a quem prometeu a destruição e que agora vê salvos. Resta-lhe morrer, porque não vive.
  Depois de remir os pecadores, Deus pretende resgatar o profeta contrariado, questionando-lhe a ira, os motivos e a coerência. É o único caminho, perante lógica tão fechada: Jonas não está disponível para ouvir razões de outras configurações; por isso, é mister minar internamente a sua lógica. Sem sucesso: o silêncio de Jonas é indestrutível, e a criatura pequena, sujeita a todos os caprichos das alturas, moldável tal barro e manipulável tal marioneta, é afinal capaz de barreira infrangível pelo seu Senhor: a do seu querer. Pequeno em tamanho, limitado no tempo, frágil no corpo, este bicho faz-se infinito pela vontade, e contra ela, Deus nada pode.
  Diante da vontade indomável, podia Deus mostrar graça na derrota: incapaz de convencer Jonas, restava-lhe aceitar a impossibilidade do resgate, e deixá-lo desaparecer no lugar que o vidente obstinado não quer abandonar. Em vez disso, persiste a divindade em perguntar e argumentar, não aceitando desistir do servo. Como finda o texto afinal? Com o silêncio de Jonas, sem dúvida, mas também com a espera dos céus, a aguardar a resposta do mudo teimoso. Não virá, provavelmente nunca, mas é na derrota e no não saber admiti-la que afinal Deus mais se revela, aceitando esperar pela resposta de Jonas, mesmo prometendo durar a espera a eternidade. Tem tempo para isso.