E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 1 de agosto de 2020

Graça na derrota

  No Livro de Jonas, Deus chama por Jonas e ordena-lhe que vá a Nínive – cujo estridor pecaminoso chegara aos ouvidos divinos – avisar as gentes do castigo por vir. Jonas começa por caminhar na direcção oposta, mas quando Deus o persegue com tempestades e o salva das ondas mantendo-o na barriga de um grande peixe, Jonas, com uma oração, parece aceitar o seu papel, é libertado e desloca-se à cidade. Aí, o seu alerta recebe a atenção devida dos habitantes, que mudam de procedimentos. Deus então arrepende-se e revoga o seu decreto, e o profeta, enfurecido, protesta contra Ele, considerando melhor morrer que seguir vivendo. Sai de Nínive e detém-se a observá-la. Alegra-se com uma planta (talvez uma aboboreira) nascida a seu lado, mas breve ela decai, corroída por um verme, e o irado Jonas quer de novo morrer. Deus confronta a sua dor pela planta com a condenação a que quer votar as pessoas e animais da cidade.

  Muito arrastar é necessário para levar este profeta relutante a cumprir o dele esperado. A primeira reacção ao comando divino é partir para Oeste em vez de Este. O voo desta pomba (Ionà) não é simplesmente transviado, mas rebelde, pois ela quer fugir, demitir-se da viagem. Mas o mais recalcitrante e contrariado dos profetas não chega a dizer não – chegam-nos apenas, mais tarde e pela sua boca, os ecos de uma recusa por ele nunca expressada.  Em apenas uma das ocasiões em que é interpelado replica com palavras, e não é para dar a negativa. A resposta predominante de Jonas é a do silêncio, e não é somente o único dos profetas silenciosos perante o chamamento das alturas, repete ainda essa mudez em diversas ocasiões.
  Escapando numa embarcação, o profeta não parece assustar-se com a procela vinda dos céus. Os marinheiros atemorizam-se com a tempestade e invocam as suas divindades, como cabe, mas Jonas responde-lhe indo dormir, parecendo não apenas querer guardar silêncio, mas nem sequer ouvir. Ou não teme os ventos abanando o barco, ou quer engolir o temporal, transformando-o em pesadelo, coisa desaparecida pela manhã: prefere deixar passar o barulho e acordar à vinda da bonança. Quando os homens o confrontam, porém, responde-lhes, mostrando-nos ser afinal capaz de entender invocações e devolver respostas, dar explicações, oferecer motivos e até soluções. Se não responde a Deus, em definitivo, não é por não poder. Por sua indicação, é atirado às águas, e ainda aqui não quer responder ao chamamento divino, entregando-se, tudo o indica, para morrer afogado. O peixe salva-o e guarda-o, porém, e o prófugo Jonas não tem mais para onde fugir, pois o fugimento levou-o à escuridão dum beco. É tempo de aceitar a sua missão.
  Nem agora, contudo, tem ele afirmativa simples para entregar. Recita um salmo, com aparência de deslocado neste texto, comunicando assim sua disposição do modo mais indirecto, e, já devidamente acorrentado ao seu papel, o peixe solta-o. Como nota Erri de Luca (“Quattro passi con Ionà/Giona”), depois de engolir Jonas, o peixe liberta-o (vomitando-o) já pronto para, por sua vez, libertar a palavra de Deus que engolira.
  Ouvindo o alerta do profeta estrangeiro, os prevaricadores comedem seus hábitos e corrigem seus comportamentos, levando Deus a arrepender-se e a revogar a condenação. E aqui, Jonas lembra as palavras ditas quando morava ainda na sua terra (as tais que nunca ouvimos), bem avisado da mudança de ideias prometida pela misericórdia divina em caso de arrependimento, e pede para morrer, pois é isso preferível a seguir vivo: segundo Luca, é o mais amargurado dos homens, pois até Job, atingido no corpo, nos afectos e nas posses, pede explicação, coisa que Jonas dispensa. Só quer morrer.
  Em vez da morte, Deus dá-lhe uma pergunta, questionando a sua irritação, mas Jonas não quer diálogo nem reconciliação, quer desvanecer. Sai da cidade e senta-se à espera dos acontecimentos.
  Não obtém a morte, recebe antes uma aboboreira e respectiva sombra, e podemos imaginar o profeta amuado sorrindo agora em sua alegria. Mas logo a aboboreira morre destruída pelo verme enviado por Deus, e o sol escaldante queima o vidente. E então o pretenso servo responde directamente ao Senhor pela primeira e única vez, quando confrontado novamente com a sua ira: está irado até à morte. Responde dirigindo-se a quem pergunta, mas a resposta, vendo bem, não é directa, é a reafirmação do seu pedido, quer ainda falecer. E assim, não admira que o texto termine, não verdadeiramente com a questão-argumento divino sobre a possível incongruência na piedade de Jonas, mas sim com o silêncio por este devolvido.
  Endurecido em seu silêncio em oposição aos céus, Jonas é inalcançável. Aceita, a contragosto, levar a palavra divina aos gentios, fazendo-a assim sua, ou, mais ainda, identificando-se com ela: o desespero de Jonas é o de quem não aceita ser desmentido, não por simples teimosia, mas por perder a cara quando o prometido não é cumprido. Destarte, a sua justiça não é sequer propriamente retributiva, pois ele não luta por responder ao pecado com o castigo, senão para ver cumprida a palavra: não tanto punir o criminoso como aplicar a lei, i. e., quer ver castigados os assírios, não simplesmente por terem pecado (pois já o faziam quando ele fugia), mas sobretudo porque a lei assim o ditou já expressamente.
  A justiça divina joga, todavia, com regras menos lineares, abarcando o arrependimento (do prevaricador e do juiz) e o perdão. No percurso de Jonas, o caminho só se faz em frente, e a sua obstinação é a de não aceitar a meia volta divina por ele adivinhada a princípio. Deus tenta convencê-lo e argumentar, mas Jonas fecha-se. É orgulhoso, como Luca salienta? É fácil concedê-lo, mas não parece Deus reagir a isso quando faz cair a aboboreira, antes soa mais convincente encontrar aqui a lição a receber pelo profeta. Não a recebe, porque não a quer. Jonas não deseja razões, nem, muito menos, está disposto a questionar a sua posição. A sua lógica é limitada, porque incapaz de abarcar desvios ou imaginar evoluções, mas absoluta, porquanto se basta a si mesma e de nada precisa para se manter de pé. Jonas acampa perto da cidade por castigar, sem casa aonde voltar, ou pátria à sua espera, pois é um desterrado: desacreditado pelo seu mandante, não tem mais palavras a levá-lo em seus passos, nem rosto para exibir aos penitentes a quem prometeu a destruição e que agora vê salvos. Resta-lhe morrer, porque não vive.
  Depois de remir os pecadores, Deus pretende resgatar o profeta contrariado, questionando-lhe a ira, os motivos e a coerência. É o único caminho, perante lógica tão fechada: Jonas não está disponível para ouvir razões de outras configurações; por isso, é mister minar internamente a sua lógica. Sem sucesso: o silêncio de Jonas é indestrutível, e a criatura pequena, sujeita a todos os caprichos das alturas, moldável tal barro e manipulável tal marioneta, é afinal capaz de barreira infrangível pelo seu Senhor: a do seu querer. Pequeno em tamanho, limitado no tempo, frágil no corpo, este bicho faz-se infinito pela vontade, e contra ela, Deus nada pode.
  Diante da vontade indomável, podia Deus mostrar graça na derrota: incapaz de convencer Jonas, restava-lhe aceitar a impossibilidade do resgate, e deixá-lo desaparecer no lugar que o vidente obstinado não quer abandonar. Em vez disso, persiste a divindade em perguntar e argumentar, não aceitando desistir do servo. Como finda o texto afinal? Com o silêncio de Jonas, sem dúvida, mas também com a espera dos céus, a aguardar a resposta do mudo teimoso. Não virá, provavelmente nunca, mas é na derrota e no não saber admiti-la que afinal Deus mais se revela, aceitando esperar pela resposta de Jonas, mesmo prometendo durar a espera a eternidade. Tem tempo para isso.

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