E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 7 de março de 2022

Doido pendurado

  No conto "The hanging stranger", de Philip K. Dick, Ed Loyce encontra inesperadamente um corpo pendurado, cenário que não parece perturbar ninguém senão a ele. Não conseguindo, no início, perceber o que se passa, cada vez mais se enchendo de suspeitas e alarmando-se, vem a dar conta de insectos alienígenas que chegaram e tomaram conta da cidade, dominando e, em alguns casos, substituindo as pessoas. Ed tenta fugir com a família, mas conclui que um dos seus filhos é agora um dos insectos. Chegando a outra cidade, Ed expõe tudo a um polícia, incluindo a sua incompreensão da razão para ter sido pendurado o cadáver. O polícia explica-lhe que o objectivo é ver se alguém reage, alguém que haja escapado ao domínio e que seja necessário capturar. Em conformidade, Ed torna-se o cadáver pendurado nesta outra cidade.

 

  Admitindo que os motivos de Ed Loyce são válidos – nomeadamente, porque há realmente insectos vindos do Espaço senhores da situação –, o seu comportamento é, ainda assim, o de um louco vítima de alucinações, mesmo que não o seja de facto. Indica-o, desde logo, a reacção alarmada a algo que não parece ser assunto para mais ninguém. Perante o que todos encaram como facto banal, algo em que nem reparam, Ed aponta e trata como anormal ou irregular. Salientando o que os demais tomam por indistinto, distingue-se a si mesmo, pois se apontamos como diferente o que vemos e mais ninguém vê como tal, é o nosso olhar que surge diferente.

  A conclusão extrai-se outrossim do modo de reagir ao que o perturba: não manifesta discordâncias enquadráveis na normalidade dos comportamentos destoantes, antes mostra expansividade, insistência e alarmismo próprios de um agente perturbador dos mecanismos sociais. O seu procedimento é o adoptado frequentemente por defensores de teorias da conspiração, tratados pelos demais como doidos. A prontidão com que vê inimigos na família e a abandona, ou com que se dispõe a acreditar na tese dos alienígenas – sem desconfiar da sua desconfiança, sem se questionar se outra explicação, mais razoável ou plausível, não dará conta dos factos estranhos – parece confirmar que a sua maneira de lidar com o assunto o torna um bom modelo de indivíduo alienado, alucinado, louco. Destarte, mesmo admitindo a bondade das suas razões para criticar a ordem instalada, o cariz disruptivo do seu insurgimento não é aceitável em ordem nenhuma. Nenhuma comunidade pode integrar a sua dissonância e a ameaça de destruição que traz consigo, de modo que se impõe a conclusão, terrível neste quadro, de que aquela sociedade tem certa legitimidade (adveniente do fim de autopreservação) para se defender do louco, do elemento desarrumador. Se deixasse indivíduos assim prosperarem, não sobreviveria.

  O horror do mecanismo defensivo usado é por demais impactante. A execução do inimigo e a exibição do cadáver pendurado num poste não admitem reticências na aversão moral que provocam. Sem embargo, somos levados a perguntar-nos se não estaremos diante de um modelo de realismo macabro do que as sociedades efectivamente precisam fazer para lidar com os loucos. A medida não serve, ou não apenas, fins de prevenção geral negativa, não se tratando tanto de alertar os demais para não destoarem como de descobrir outros desviantes. Mas é ainda um acto de defesa, por muito antecipada seja, e de preservação. Facilmente encontramos nas nossas comunidades mecanismos simbolicamente equivalentes cumprindo igual função: quando em grupos de redes sociais, por exemplo, uniformizamos discursos em torno de notícias ou afirmações alheias chocantes, censurando, afastando ou vilipendiando em grupo vozes dissonantes, não estamos longe daqueles insectos.

  As sociedades não afogam, porém, todas as vozes discordantes. Mantendo-se num nível subterrâneo, os comportamentos em questão não chegam a causar rachas significativas no tecido social. Os dissidentes não perturbam significativamente a comunidade, portanto, se mantiverem as suas tendências anómalas nas subculturas ou na clandestinidade; assim vemos com grupos de nicho, como os dos góticos, ou com marginais sociais, como os toxicodependentes. Não que estas pessoas passem completamente despercebidas, não estão sequer propriamente escondidas, mas o seu discurso não chega ao primeiro plano, àquele onde apenas se exibe e se diz o tácita ou expressamente aprovado pelo grupo maior. Nas discordâncias e discussões tidas neste primeiro plano, portanto, estão sempre pressupostos graus básicos de consenso, exigem-se sempre formalidades mínimas de comportamento, e tomam-se por seguros certas verdades ou dogmas. Assim, se Ed mantivesse a sua conversa aparentemente alucinada na mesa do café, podia passar por indivíduo excêntrico, quiçá um defensor de teorias da conspiração; ele faz, todavia, mais que isso, pois busca trazer o seu discurso perturbador para o primeiro plano: insiste, agita, incomoda todos os que encontra, faz barulho, denuncia à polícia, acusa. Procede, enfim, de modo que não é possível ignorá-lo simplesmente: fazer como se ele não existisse não teria mais o efeito de o esquecer, mas sim o de deixar os demais na necessidade de admitirem que estão a fingir não ouvir, o que implica certo grau de hipocrisia. Em consequência, era preciso tomar medidas para o reprimir, apagar ou eliminar.

   A história de Ed é uma tragédia? Supondo que ele alucina, vive o drama mais solitário de todos, o do louco preso num mundo que ninguém mais partilha. Se o que ele vê e adivinha é real, contudo, não é, como dissemos, menos louco por isso, ao menos não enquanto não deixe de adoptar o procedimento de um alheado, destoando dos demais de modo semelhante ao de um doido. Sendo essa a situação, o seu fado deve indignar-nos, ou ao menos fazer-nos temer aquele ambiente por tenebroso? Os métodos horroríficos dos insectos impressionam e repugnam-nos, não mostram nada de humanitário ou compassivo. Mas o que fazem eles de mal às restantes pessoas? Elas continuam a levar a sua vida normal, tanto quanto nos é dado saber. O indivíduo pendurado terá, como Ed, procurado denunciar, apontar o dedo, combater os bichos, mas se não o houvesse feito, provavelmente, teria levado uma vida normal em liberdade. Até ao apontar do dedo, portanto, nada parece limitar ou condicionar o quotidiano destes revoltosos. A haver dominação, as pessoas são dominadas para viverem normalmente. Será isto mau? Não temos conhecimento de serem vítimas de roubo, forçadas a fazer algo, nem privadas de coisa nenhuma. O problema surge apenas, em suma, quando alguma destas pessoas pára de viver e grita em alarme, procurando que os demais notem o que se está a passar para as coisas funcionarem como funcionam. Quedassem calados e tudo ficaria bem. Perturbando demasiado a fala, a comunidade precisa de abafar o grito, para se preservar. Se não nos descansa isto nem dá explicação suficiente é porque no homem pendurado não deparamos somente com o horror do tratamento que lhe deram, ou com o desprexo pela dignidade de um de nós. Encontramos também a inocência de alguém que, por muito haja ameaçado demolir a sociedade, nem por isso chegou a praticar um só crime.

domingo, 30 de janeiro de 2022

Perfeição distante



  Na série "Sakamoto desu ga?" (Nami Sano; Shinji Takamatsu), Sakamoto é a pessoa mais popular do liceu. Em tudo se sai bem, de tal modo que as raparigas estão atraídas por ele e os rapazes adoram-no, invejam-no, ou ambos. A frustração leva alguns a pregarem-lhe partidas, tentando que fique mal na fotografia ou seja incriminado injustamente, mas Sakamoto sai sempre por cima, inclusive recorrendo a posturas ou atitudes algo absurdas, até ridículas, mas para as quais se revela sempre um sentido último que o deixa bem visto.

  Sakamoto aparenta ser humano, mas pouco, por corresponder a um ideal de perfeição. Para ser pessoa como os demais, faltam-lhe a proximidade e o toque. De certo modo, Sakamoto é inatingível, não só porque ninguém pode chegar à sua posição, senão também por ninguém conseguir aproximar-se dele. É muito difícil que alguém chegue a tocar-lhe, tirante as (raras) ocasiões em que ele mesmo o permite ou provoca. Alguns segmentos tomam mesmo por tema a impossibilidade de o tocarem, e na mesma linha, não chegamos a saber o seu primeiro nome. Aina, uma colega, tenta descobri-lo, mas algo aparece sempre para ocultar a palavra escrita ou para abafar a resposta do próprio em voz alta, e não lhe resta senão desistir.
  Usualmente, a imagem idealizada sói projectar-se em actores, cantores, desportistas, etc., e a distância é elemento essencial para que a divinização opere com sucesso. O alvo da adoração só chega ao adorador por fotografia, autógrafo ou objecto intermédio de tipo próximo, e é ver, num concerto ou evento equivalente, o esforço desesperado por tocá-lo, por chegar a essa pessoa, torná-la real. Ora, Sakamoto está próximo em todos o sentidos: é um colega de turma, à partida fácil de atingir, e é presença segura no quotidiano, não está a morrer nem ameaça desaparecer das rotinas (ao menos não antes de o ano acabar). O que o torna tão desejado? Não tem superpoderes, não faz sequer nada de muito especial, no sentido físico do termo, n tem habilidades extraordinárias. Canta, é verdade, muito bem, mas não é cantor; é óptimo desportista, mas não é atleta; os seus desenhos encantam, mas não é artista. A final, isto vem a deixá-lo parecer ainda mais inumano, porque saindo-se bem em tudo, não se distinguindo numa actividade específica, o seu nível mediano é a excelência dos demais. A sua perfeição, demasiado uniforme e equilibrada, torna-o ainda mais etéreo e, portanto, inalcançável. Quem nunca se engana em nada está demasiado longe.
  O efeito disto é curioso. Sakamoto está ao estender da mão, mas é intocável. Trazendo o ideal para junto dos comuns alunos, distancia-se ainda mais, como se surgira para mostrar mais de perto aquilo que não pode ser agarrado. Se, na cena de despedida, lhe atiram tartes, é claro que a intenção está votada ao fracasso, porque nunca poderão acertar. Sakamoto limita-se aí, aliás, a fazer o que fez toda a série. Querem despenteá-lo, desmanchar-lhe a imagem imaculada, e ele desvia-se, escapa, esgueira-se por entre as rajadas. Esgueirou-se em todos os segmentos da história, mas em todos eles foi deixando óleo na engrenagem, para que as coisas funcionassem melhor, como se apenas pudesse viver nos interstícios, onde é preciso cuidar para que as coisas à superfície se mantenham estáveis e articuladas. Não é assim de estranhar que ele, na verdade, nunca procure activamente os holofotes da fama.
  Os colegas seguem, ainda assim, atirando-lhe as tartes, talvez não tanto por ser importante atingi-lo como por precisarem de acertar uns nos outros. Parece um resumo tão surpreendente quanto verdadeiro da humanidade: andarmos a atirar tartes à cara uns dos outros. Prosperaremos se, em vez de guardarmos as tartes para não ofender, ou de nos zangarmos, soubermos rir-nos das nossas figuras, se formos capazes de descobrir algo divertido em gesto tão gratuito e inútil. Isto mesmo buscam ensinar-nos os palhaços, e fazem-no sujeitando-se às tartes ou pedindo-as, passam pelo ritual mostrando-nos como podemos reagir. Já Sakamoto nunca sorri nem solta gargalhadas, mas mostra-nos o mesmo, assim provando que para interiorizarmos a verdade dos palhaços não precisamos de pintar a cara.
  Sakamoto não está lá para levar com a tarte, não é um palhaço, contudo, aparece para tentarmos atingi-lo mesma, porque isso devemos fazer a qualquer ideal pedindo para ser desmanchado. Não terminaremos atingindo o alvo, mas sim a nós mesmos, porque só nós, humanos, vivemos por trás dos nossos ideais. Se lançamos coisas ao palco, é a humanidade que se trata de atingir. Atirar fruta podre aos actores só é sumo insulto por assim dizermos que tal fruta é para eles, por não representarem bem, por não fazerem vezes de humanidade.
  Ao mesmo tempo que acaba frequentemente centro das atenções, Sakamoto está sempre fora, sempre à parte. Nunca procura atenções, está sempre a fugir, mesmo quando fica bem na fotografia ou sai por cima. Desvia-se e encosta-se às margens, de tal modo que nunca o descobrimos envolvido em conversa mundana e repetida sobre miudezas do quotidiano, ou diálogo profundo que possa ser continuado ou renovado mais tarde com trocas e respostas. Ninguém tem sequer uma história longa, com ele que não envolva todos demais ao mesmo tempo, nem ninguém vai certamente casar com ele. Mesmo Kubota, o amigo que mais vemos em sua companhia, é um rapaz q vive na borda da sociedade, e por isso é capaz de oferecer a única amizade que lhe é possível. Ainda assim Kubota sabe muito pouco de Sakamoto; ignora de onde vem, não lhe conhece a família... Diz a si mesmo que tem tempo para o descobrir, mas claro que não tem, nunca o vai descobrir, porque Sakamoto é tão inalcançável na sua história como no seu corpo, tem um passado tão nebuloso como o seu futuro.
  Onde mora Sakamoto? Talvez a única pista sólida esteja no pormenor simples de todos os segmentos: ele só acaba muito bem visto por opção de quem o vê. Não fossem os olhos imaginativos dos colegas e, muitas vezes, as suas intervenções passariam despercebidas, ou seriam simplesmente tidas por ridículas. Não merece menos elogio por isso, porque a sua perfeição, ainda que dependente de quem a reconhece, mantém-se verdadeira. Tudo está em percebermos que podemos seguir atirando tartes e rindo de de sermos atingidos por ela. A fotografia na parede seguirá imaculada, enquanto nós acabaremos sujos; mas se não fora assim, não teria graça.