E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 30 de janeiro de 2022

Perfeição distante



  Na série "Sakamoto desu ga?" (Nami Sano; Shinji Takamatsu), Sakamoto é a pessoa mais popular do liceu. Em tudo se sai bem, de tal modo que as raparigas estão atraídas por ele e os rapazes adoram-no, invejam-no, ou ambos. A frustração leva alguns a pregarem-lhe partidas, tentando que fique mal na fotografia ou seja incriminado injustamente, mas Sakamoto sai sempre por cima, inclusive recorrendo a posturas ou atitudes algo absurdas, até ridículas, mas para as quais se revela sempre um sentido último que o deixa bem visto.

  Sakamoto aparenta ser humano, mas pouco, por corresponder a um ideal de perfeição. Para ser pessoa como os demais, faltam-lhe a proximidade e o toque. De certo modo, Sakamoto é inatingível, não só porque ninguém pode chegar à sua posição, senão também por ninguém conseguir aproximar-se dele. É muito difícil que alguém chegue a tocar-lhe, tirante as (raras) ocasiões em que ele mesmo o permite ou provoca. Alguns segmentos tomam mesmo por tema a impossibilidade de o tocarem, e na mesma linha, não chegamos a saber o seu primeiro nome. Aina, uma colega, tenta descobri-lo, mas algo aparece sempre para ocultar a palavra escrita ou para abafar a resposta do próprio em voz alta, e não lhe resta senão desistir.
  Usualmente, a imagem idealizada sói projectar-se em actores, cantores, desportistas, etc., e a distância é elemento essencial para que a divinização opere com sucesso. O alvo da adoração só chega ao adorador por fotografia, autógrafo ou objecto intermédio de tipo próximo, e é ver, num concerto ou evento equivalente, o esforço desesperado por tocá-lo, por chegar a essa pessoa, torná-la real. Ora, Sakamoto está próximo em todos o sentidos: é um colega de turma, à partida fácil de atingir, e é presença segura no quotidiano, não está a morrer nem ameaça desaparecer das rotinas (ao menos não antes de o ano acabar). O que o torna tão desejado? Não tem superpoderes, não faz sequer nada de muito especial, no sentido físico do termo, n tem habilidades extraordinárias. Canta, é verdade, muito bem, mas não é cantor; é óptimo desportista, mas não é atleta; os seus desenhos encantam, mas não é artista. A final, isto vem a deixá-lo parecer ainda mais inumano, porque saindo-se bem em tudo, não se distinguindo numa actividade específica, o seu nível mediano é a excelência dos demais. A sua perfeição, demasiado uniforme e equilibrada, torna-o ainda mais etéreo e, portanto, inalcançável. Quem nunca se engana em nada está demasiado longe.
  O efeito disto é curioso. Sakamoto está ao estender da mão, mas é intocável. Trazendo o ideal para junto dos comuns alunos, distancia-se ainda mais, como se surgira para mostrar mais de perto aquilo que não pode ser agarrado. Se, na cena de despedida, lhe atiram tartes, é claro que a intenção está votada ao fracasso, porque nunca poderão acertar. Sakamoto limita-se aí, aliás, a fazer o que fez toda a série. Querem despenteá-lo, desmanchar-lhe a imagem imaculada, e ele desvia-se, escapa, esgueira-se por entre as rajadas. Esgueirou-se em todos os segmentos da história, mas em todos eles foi deixando óleo na engrenagem, para que as coisas funcionassem melhor, como se apenas pudesse viver nos interstícios, onde é preciso cuidar para que as coisas à superfície se mantenham estáveis e articuladas. Não é assim de estranhar que ele, na verdade, nunca procure activamente os holofotes da fama.
  Os colegas seguem, ainda assim, atirando-lhe as tartes, talvez não tanto por ser importante atingi-lo como por precisarem de acertar uns nos outros. Parece um resumo tão surpreendente quanto verdadeiro da humanidade: andarmos a atirar tartes à cara uns dos outros. Prosperaremos se, em vez de guardarmos as tartes para não ofender, ou de nos zangarmos, soubermos rir-nos das nossas figuras, se formos capazes de descobrir algo divertido em gesto tão gratuito e inútil. Isto mesmo buscam ensinar-nos os palhaços, e fazem-no sujeitando-se às tartes ou pedindo-as, passam pelo ritual mostrando-nos como podemos reagir. Já Sakamoto nunca sorri nem solta gargalhadas, mas mostra-nos o mesmo, assim provando que para interiorizarmos a verdade dos palhaços não precisamos de pintar a cara.
  Sakamoto não está lá para levar com a tarte, não é um palhaço, contudo, aparece para tentarmos atingi-lo mesma, porque isso devemos fazer a qualquer ideal pedindo para ser desmanchado. Não terminaremos atingindo o alvo, mas sim a nós mesmos, porque só nós, humanos, vivemos por trás dos nossos ideais. Se lançamos coisas ao palco, é a humanidade que se trata de atingir. Atirar fruta podre aos actores só é sumo insulto por assim dizermos que tal fruta é para eles, por não representarem bem, por não fazerem vezes de humanidade.
  Ao mesmo tempo que acaba frequentemente centro das atenções, Sakamoto está sempre fora, sempre à parte. Nunca procura atenções, está sempre a fugir, mesmo quando fica bem na fotografia ou sai por cima. Desvia-se e encosta-se às margens, de tal modo que nunca o descobrimos envolvido em conversa mundana e repetida sobre miudezas do quotidiano, ou diálogo profundo que possa ser continuado ou renovado mais tarde com trocas e respostas. Ninguém tem sequer uma história longa, com ele que não envolva todos demais ao mesmo tempo, nem ninguém vai certamente casar com ele. Mesmo Kubota, o amigo que mais vemos em sua companhia, é um rapaz q vive na borda da sociedade, e por isso é capaz de oferecer a única amizade que lhe é possível. Ainda assim Kubota sabe muito pouco de Sakamoto; ignora de onde vem, não lhe conhece a família... Diz a si mesmo que tem tempo para o descobrir, mas claro que não tem, nunca o vai descobrir, porque Sakamoto é tão inalcançável na sua história como no seu corpo, tem um passado tão nebuloso como o seu futuro.
  Onde mora Sakamoto? Talvez a única pista sólida esteja no pormenor simples de todos os segmentos: ele só acaba muito bem visto por opção de quem o vê. Não fossem os olhos imaginativos dos colegas e, muitas vezes, as suas intervenções passariam despercebidas, ou seriam simplesmente tidas por ridículas. Não merece menos elogio por isso, porque a sua perfeição, ainda que dependente de quem a reconhece, mantém-se verdadeira. Tudo está em percebermos que podemos seguir atirando tartes e rindo de de sermos atingidos por ela. A fotografia na parede seguirá imaculada, enquanto nós acabaremos sujos; mas se não fora assim, não teria graça.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.