E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 23 de janeiro de 2016

O príncipe no espelho - "The Prince and the Pauper" (Mark Twain)


W. Hatherell

  No livro The Prince and the Pauper (Mark Twain), Tom é um rapaz pobre e Edward é o príncipe e futuro rei de Inglaterra. Encontram-se por acaso e conversam. Expressando cada um o desejo de experimentar um pouco do que é a vida do outro, trocam de roupa. É aí que se apercebem de que são bastante parecidos. Esquecendo isso, o príncipe sai do palácio ainda com as roupas de Tom e, sendo confundido com este, acaba por ser escorraçado e levado para longe. A partir daí, cada um deles é confundido com o outro pelos seus mais próximos, até ao momento da coroação, em que a troca é anulada e cada um volta ao seu lugar.

  A uma primeira leitura, parecem-nos cegas as pessoas que olham o príncipe sem ver que se trata de Tom, e as que olham Tom sem ver que se trata do príncipe. Os únicos que conhecem a verdade, com efeito, são os próprios Tom e Edward: ninguém mais se apercebe do que se passa.
  Tom e Edward só percebem que são iguais no momento em que trocam de roupa. O príncipe diz então: “Thou hast the same hair, the same eyes, the same voice and manner, the same form and stature, the same face and countenance, that I bear. Fared we forth naked, there is none could say which was you, and which the Prince of Wales.” Na verdade, a história vem confirmar precisamente o oposto: não foi a nudez de ambos que fez com que as pessoas os confundissem,  como o príncipe vaticinava, mas sim a roupa (trocada) que os vestia. E assim a trama parece trazer uma lição simples de perspicácia: a de que devemos olhar para lá da superficialidade das aparências se queremos (re)conhecer alguém.
  Pensando um pouco mais sobre a história, porém, podemos perguntar-nos se os dois rapazes não serão afinal os verdadeiros cegos, enquanto as restantes pessoas são quem verdadeiramente vê as coisas como elas são. Porque Tom e Edward são iguais: o príncipe é igual ao pobre e o pobre é igual ao príncipe. Ou seja, o que está em causa não é bem uma confusão, feita pelas pessoas, por não perceberem que o pobre (Edward) afinal era o príncipe e o príncipe (Tom) era apenas um pobre: ao invés, é precisamente por conseguirem ver que o príncipe (Edward) é verdadeiramente pobre e o pobre (Tom) é realmente príncipe que a confusão pode nascer. A cegueira, afinal, está nos dois rapazes, e não no resto das pessoas: todas as outras pessoas os confundem e não percebem que eles trocaram de lugar. Só que elas não estão afinal confundidas (i. e., enganadas). Pelo contrário, são elas quem vê perfeitamente, porque vêem o príncipe no pobre (o príncipe que realmente existe no pobre) e o pobre no príncipe (o pobre que realmente existe no príncipe). Os verdadeiros cegos são os rapazes: o príncipe não vê que é pobre e o pobre não vê que é príncipe. Não é por acaso que, na cena da coroação, o novo rei (Edward) veste o manto real por cima dos trapos de Tom, que não chega a despir: inegavelmente rei, ele não deixa de trazer o pobre em si. E assim tinha de ser, porque só depois de aceitar o pobre que há em si pode o príncipe tornar-se rei. O mesmo vale para o seu reflexo: para se tornar rei, o pobre teve de descobrir que era príncipe. 
  É precisamente pelo reflexo que o príncipe e o pobre descobrem que são iguais: o único momento em que os dois rapazes percebem que são simétricos é aquele em que trocam de roupa e se vêem ao espelho. O espelho mostra-lhes o outro que há neles. Só aí o príncipe tem um vislumbre do outro-pobre que traz em si e o pobre o mesmo em relação ao seu outro-príncipe. É essa a magia do espelho: mostrar-me o outro que eu sou. Mas a cena é apenas uma ilustração mais evidente de todo o encontro entre os dois rapazes: porque, afinal, quando estão frente a frente, cada um vê o seu inverso no outro (o príncipe vê o pobre e o pobre vê o príncipe). Toda a história se desenrola depois para lhes ensinar o que eles podiam ter aprendido instantaneamente vendo-se ao espelho: que o meu inverso também sou eu - é o meu outro que mora no meu espelho (e, portanto, em mim).
  Segundo o príncipe, se ele e Tom estivessem nus, ninguém os conseguiria distinguir. Mas, na verdade, só eles precisam da nudez para perceber que são iguais. A história que se segue mostra o oposto daquele vaticínio: é precisamente vestidos (com as roupas um do outro) que são confundidos por toda a gente, ou seja: é precisamente pela roupa (trocada) que vestem que as pessoas os vêem como iguais. O que permite finalmente chegar à lição mais curiosa do livro. As roupas que Tom e Edward trocaram permitiram às outras pessoas perceber que os dois rapazes eram iguais. A troca de roupas não enganou, portanto, as outras pessoas, mas sim a eles mesmos. O que significa, no fim de contas, que são as roupas com que nos tapamos que nos mostram verdadeiramente aos outros. Porque as roupas que vestimos escondem-nos somente de nós próprios.

sábado, 16 de janeiro de 2016

A felicidade de Sísifo - "A Game of Pool" (Buzz Kulik)


  No episódio “A game of pool”, da série The Twilight Zone, Jesse Cardiff é um jogador de pool amargurado: apesar de jogar muito bem, não consegue sair da sombra de Fats Brown, já falecido, mas ainda tido por todos como o melhor, o verdadeiro campeão. Jesse garante que daria qualquer coisa para poder jogar com Fats e ter a oportunidade de provar que o pode superar. Fats acaba mesmo por aparecer e aceita o desafio, na condição, porém, de Jesse apostar a sua vida, acabando este por aceder. Jesse ganha a partida e exulta perante a aparente tranquilidade de Fats. Termina, porém, vendo-se condenado ao destino de campeão: terá de passar a eternidade a provar ser o melhor, respondendo aos desafios de cada novo pretendente ao trono.

  O campeão é na verdade um homem derrotado. Cansado. Isto vale tanto para Fats como para Jesse. A lição moral do episódio parece simples: o campeão foi, em vida, alguém obcecado pela vitória, por ser o melhor no seu jogo. A sua paradoxal condenação, no fundo, traduz-se numa perpetuação – na morte – da sua vida. Está condenado a sujeitar-se, para sempre, aos desafios de novos aspirantes ao título de melhor.
  Nenhuma vitória é para ele definitiva: aparecerá sempre um novo adversário. Este encargo do campeão lembra o de Sísifo, condenado a empurrar eternamente uma pedra até ao topo da montanha, apenas para a ver rolar encosta abaixo e ter de recomeçar o processo. Sísifo foi castigado por, entre outras coisas, ter enganado a morte. É isso mesmo que Jesse faz ao provar ser o melhor. E isso é comprovado no final alternativo que nos apresenta o remake do episódio (na versão da mesma série dos anos 80), correspondente ao final inicialmente projectado para o episódio original: aí, é Fats quem ganha a partida, depois de Jesse ter apostado a vida. Só que Jesse não morre imediatamente; o preço é pago de outro modo: poderá continuar a viver e a jogar, mas, depois de morrer, ninguém mais se lembrará dele. Torna-se assim evidente como, na versão da primeira série, também Jesse, como Sísifo, consegue enganar a morte: o encargo de de se sujeitar eternamente a novos desafios é afinal uma oportunidade de não morrer nunca - de continuar a ser o melhor, mesmo depois de morto. Só que aqui o campeão está condenado a fazer precisamente aquilo a que quis resumir a sua vida, aquilo que sempre quis fazer. Porque nos é então apresentada esta situação como a de uma pena, uma espécie de castigo ou maldição?
  Podemos percebê-lo se notarmos que Jesse, na verdade, não queria jogar o jogo pelo jogo, mas sim pela vitória. E não por uma qualquer vitória, não por uma simples vitória neste jogo ou no próximo, nem sequer pela vitória repetida em todos os jogos, mas sim pela verdadeira vitória: a vitória definitiva. Diz Albert Camus (Le Mythe de Sisyphe) que “il n’y a qu’une victoire et elle est éternelle”. A eternidade da repetição a que o campeão é condenado, porém, mostra a efemeridade de cada triunfo. Enquanto estava vivo, nenhum jogo podia preencher o campeão, nenhum triunfo lhe poderia dar sentido. O sentido de cada jogo era o da vitória que ele poderia trazer e a vitória, por sua vez, só tinha sentido na medida em que poderia ser eterna, final. Eis então o pesadelo do seu pós-vida: nenhuma vitória é a última. Aí está a eternidade a comprová-lo, a furtar-lhe a única possibilidade de sentido que a sua busca humana poderia adquirir: a da efemeridade.
  A eternidade a que o campeão é condenado é assim a de uma repetição incessante do efémero. O campeão eterniza-se em triunfos com que parece enganar o tempo, mas ele sabe que em nenhuma ocasião conseguirá um triunfo verdadeiro, definitivo. Sabe-o porque se cada vitória é um gesto sem sentido – um gesto que nada faz, consegue ou assegura –, torna-se inevitável, para ele, encarar o absurdo.


  Também por esta outra via o destino do campeão se assemelha ao de Sísifo: nenhuma partida trará uma vitória final, como em nenhuma ocasião conseguirá Sísifo deixar a pedra no topo da montanha sem que ela caia de novo. A repetição das partidas, porque destinada a eternizar-se, realça o absurdo da tarefa, aquele absurdo que Camus via ilustrado no mito grego. Não espanta, por isto, a calma perante a derrota que percebemos em Fats: no fundo, a derrota não o afecta, porque ele sabe que nenhuma das suas efémeras vitórias foi verdadeira: cada pequeno triunfo era apenas uma nova máscara para a sua derrota profunda.
  Ainda assim, Fats não se deixa derrotar, não perde propositadamente. Não joga menos do que a sua habilidade lhe permite. Como resolver esta aparente contradição? Fats faz tudo para vencer e, no entanto, parece satisfeito quando perde. Vislumbrámos já uma explicação para o contentamento na derrota, mas fica então por perceber como se compatibiliza isso com a seriedade que demonstra tentando ganhar. E talvez isso se deva ao facto de que não compreendemos ainda totalmente aquele contentamento.
  Para Fats, como para Jesse, nenhuma vitória tem realmente qualquer utilidade: "Il n'y a qu'une action utile, celle qui referait l'homme et la terre" (Camus). Nenhuma vitória refará seja o que for para ambos, nenhuma permitirá alterar verdadeiramente nada. Cada triunfo é, por isso, tão fundamentalmente absurdo que em nada permite triunfar sobre a derrota que poderia ter ocorrido. É no momento em que temos consciência disto que o trágico surge nas nossas vidas, como explica Camus reportando-se a Sísifo: "Si ce mythe est tragique, c'est que son héros est conscient. Où serait en effet sa peine, si à chaque pas l'espoir de réussir le soutenait? L'ouvrier d'aujoud'hui travaille, tous les jours de sa vie, aux mêmes taches et ce destin n'est pas moins absurde. Mais il n'est tragique qu'aux rares moments où il devient conscient." A verdadeira pena na condenação a que o campeão é sujeito, não reside, assim, no facto em si de ele ser sempre obrigado a jogar de novo, mas sim no de que o campeão é deste modo obrigado a ter consciência do absurdo da sua tarefa. Por isso mesmo – porque cada vitória é tão absurda como a anterior e não menos do que a que se lhe segue –, como vimos, Fats não pode importar-se quando é derrotado. Tem a consciência de que esta derrota não é menos absurda do que a vitória que poderia ter ocorrido.
  A confrontação da procura humana pela vitória definitiva, por um lado, com a impossibilidade da mesma, por outro, instala uma contradição existencial. É na consciência desta contradição que o trágico aparece nas nossas vidas. Mas essa consciência é também a única oportunidade de triunfarmos sobre o absurdo: “en face de la contradiction essentielle, je soutiens mon humaine contradiction. J'installe ma lucidité au milieu de ce qui la nie. J'exalte l'homme devant ce qui l'écrase et ma liberté, ma révolte et ma passion se rejoignent alors dans cette tension, cette clairvoyance et cette répétition démesurée.” Impossibilitada de aceder a qualquer verdade escrita nas estrelas, a pessoa agarra as únicas verdades que cabem na sua mão: as efémeras. E, segurando-as, sorri enquanto as olha, porque sabe o que valem e porque consegue ser mais do que elas, desprezá-las. E é desprezando-as que lhes vai dedicar a sua vida, que lhes vai dar tudo. E a sua grandeza aparecerá precisamente na sua revolta inútil contra a fatalidade: "La grandeur a changé de camp. Elle est dans la protestation et le sacrifice sans avenir. (...) Comment ne pas comprendre que dans cet univers vulnérable, tout ce qui est humain et n'est que cela prend un sens plus brûlant?". Por isto, Fats, Jesse e qualquer outro campeão que se siga, mesmo consciente da inutilidade de cada vitória – e até precisamente porque está consciente disso mesmo –, não deixarão de lutar por ela a cada novo desafio.
  É esta aceitação revoltada, esta rebeldia que se sente condenada à partida, que ainda move o campeão que tem consciência do absurdo da sua tarefa. Ele nunca poderá verdadeiramente ganhar, mas nunca se deixará perder. É esse o único triunfo sobre o absurdo a que ele pode almejar. O campeão tenta ainda ganhar em cada novo desafio, porque cada vitória tem afinal um sentido, por muito absurdo que ele pareça: um sentido meramente (mas isso já é tanto, já é todo o sentido que pode existir num universo sem sentido) humano.
  A promessa de eternidade que é feita a Fats, Jesse e a cada novo ocupante do trono, porém, é uma armadilha que parece destruir até mesmo esta hipótese humana de vitória. Por um lado, já vimos que ela não lhes permite qualquer triunfo definitivo. Mas por outro ainda, ao instaurar uma perpetuação de vitórias inúteis, ela faz com que o campeão possa manter-se nesta repetição para sempre; ora, se o fim desaparece, se não há fronteira para esta repetição sem sentido, parece impossível abstrair dela, parece que o campeão não poderá nunca transcender a sua história. Como tomar verdadeira consciência do absurdo da nossa finitude quando esta se estende até ao infinito? Se não temos o fim diante dos olhos, se não há um horizonte onde termine o nosso olhar, não seremos capazes de ser maiores do que o mundo absurdo em que caímos. Segundo Camus, Sísifo, enquanto desce a montanha para recomeçar a sua tarefa absurda, toma consciência da sua situação e, ao mesmo tempo, triunfa sobre ela: "Sisyphe, prolétaire des dieux, impuissant et révolté, connaît toute l'étendue de sa misérable condition: c'est à elle qu'il pense pendant sa descente. La clairvoyance qui devait faire son tourment consomme du même coup sa victoire. Il n'est pas de destin qui ne se surmonte par le mépris." Mas, em boa verdade, não há fim, não há horizonte para o tormento de Sísifo. Se nos identificamos com ele e nos pomos no seu lugar, é porque o absurdo da sua tarefa é sem dúvida uma imagem daquele que rege os nossos empreendimentos. Mas só na medida em que a sua história é isso mesmo – uma história –, só na medida em que o vemos de fora e, desse modo, podemos circunscrever o relato do seu sofrimento é que conseguimos admitir a hipótese de que ele triunfa. Nunca, se víssemos o seu sofrimento a partir de dentro – com os olhos do próprio Sísifo –, seríamos capazes de transcender essa condição para a podermos desprezar, visto que ela é sem barreiras, sem termo, sem horizonte. Por isso, quando Camus avança que é preciso imaginar Sísifo feliz ("Il faut imaginer Sisyphe heureux"), na verdade, a única felicidade aí possível é a do humano que se revê na história de Sísifo, e não a de Sísifo ele mesmo.
  E, no entanto, a promessa da eternidade para Fats e Jesse não é senão uma falsa promessa. Porque por muito bons que eles sejam, acabará por chegar um novo campeão, alguém que os há-de bater. Só depende deles manterem-se no trono – e daí que, em teoria, seja possível para qualquer um deles ganhar eternamente. Mas esta é uma lógica estranha à condição humana. Precisamente porque são humanos, nem Fats nem Jesse, nem qualquer outro, poderão deter o título para sempre. E como esta verdade está inscrita a priori na condição humana, mesmo que eles não vejam o horizonte, eles sabem que ele está lá, e que acabará por chegar. Ora, é precisamente esta derrota segura – que chegará mais cedo ou mais tarde – que garante a cada novo campeão, afinal, a sua única vitória verdadeira, o único triunfo verdadeiro que ele pode almejar enquanto ser humano; porque é a oportunidade de transcender a sua própria história (terminada com a derrota às mãos do campeão que se segue) que lhe permite olhá-la e sorrir perante ela. Por isso podemos compreender a satisfação com que Fats despreza a vitória de Jesse, a vitória que também Fats lutou por conseguir.
  Mas podemos fazer ainda mais do que isso. Ao ver Fats e Jesse serem chamados por uma voz para responderem ao desafio de um novo pretendente ao trono, ao vê-los encaminharem-se para mais uma partida inútil, aí quando o absurdo daquela missão lhes aparece tão evidente, quando o trágico da sua condição é mais flagrante e o desespero seria mais fácil, podemos lembrar-nos de Sísifo naquele momento em que Camus o olhou, o momento em que ele desce a montanha e recupera forças para recomeçar a empurrar a pedra. E vendo Jesse e Fats na mesma situação tão desesperante, podemos, agora sim, responder ao pedido de Camus e imaginá-los felizes.

sábado, 2 de janeiro de 2016

"Mas tu estás sempre comigo" - "O Filho Pródigo" e "The Wonderful Wizard of Oz" (L. Frank Baum)

  Na Parábola do Filho Pródigo (Lc 15, 11-32), o filho mais velho indigna-se ao descobrir que o seu pai mandou matar o vitelo gordo e organizou uma festa em honra do seu irmão, regressado após ter esbanjado a sua parte da herança numa vida desregrada num país estrangeiro. Quando o filho mais velho censura o pai por nunca lhe ter prestado honra parecida, apesar de ele sempre ter cumprido as suas ordens, ao contrário do irmão, o pai responde-lhe: "mas tu estás sempre comigo".
  A mensagem é difícil de interiorizar, mas traz uma verdade profunda e com várias implicações. Entre elas está a de que aquilo que existe por dentro não precisa de existir por fora para ser real. O pai estava sempre com ele e, por isso, não precisava de o mostrar. Ao filho mais novo, pelo contrário – porque este se afastou e a presença do pai deixou de ser uma realidade –, foi necessária a demonstração dessa presença. Foi preciso provar. Só quem já sabe não precisa de provas. É isso, de resto, que explica o triunfo secreto – talvez o único – do crente sobre o ateu: o verdadeiro crente não precisa de milagres, nem os exibe. Ele já "sabe". Por isso Cristo repetia, vezes sem conta, que tinha vindo para resgatar os pecadores, as ovelhas tresmalhadas. Eram eles quem precisava de milagres. Aos verdadeiros crentes nada havia a provar.


W. W. Denslow

  A parábola finda sem notícia de qualquer reacção por parte do filho mais velho. Mas sabemos como reagiram outros ao ouvirem a mesma mensagem numa outra história: no livro The Wonderful Wizard of Oz (L. Frank Baum), quando o leão, o espantalho e o lenhador de lata, juntamente com Dorothy, finalmente descobrem que o grande feiticeiro é um impostor e o confrontam com as suas falsas promessas, ele explica-lhes que já têm aquilo de que necessitam, ou o que precisam para o conseguir – pelo menos o espantalho, o lenhador e o leão, no que respeita, respectivamente, a inteligência, bons sentimentos e coragem. (Mesmo Dorothy vem a descobrir que transportou sempre consigo o meio de chegar a casa: os seus sapatos).
  Nenhum deles, porém, fica satisfeito com a resposta: o falso feiticeiro explica ao espantalho que ele não precisa de cérebro, pois é mesmo assim capaz de aprender; de modo que experiência é tudo o que ele necessita para ganhar conhecimento. Mas o espantalho responde: “That may all be true, (...) but I shall be very unhappy unless you give me brains.” E os outros dão uma resposta equivalente.
  Oz acaba por satisfazê-los com objectos de faz-de-conta: enche a cabeça do espantalho de farelos, faz o leão beber um líquido verde que supostamente se tornará coragem quando estiver no seu interior e implanta no peito do lenhador um coração feito de seda e serradura. Todos ficam satisfeitos.
  Para o espantalho, o lenhador e o leão, trazer já dentro de si aquilo que procuravam não era suficiente: precisaram de o encontrar fora de si. Mas se só tem sentido a procura lá fora do que não encontramos cá dentro, a ironia do resultado das artes do feiticeiro impostor é óbvia: os objectos que receberam foram deixados em lugares que não poderiam ser ocupados por objecto nenhum, pois trata-se de coisas que não têm verdadeiramente lugar. Por isso, esses mesmos objectos que eles agora trazem dentro de si são afinal a maior prova de que estes personagens estão mais vazios que nunca – no sentido de que aqueles objectos nunca deixarão de ser coisas – provas, milagres – que eles encontraram fora de si, e permanecerão sempre lá fora, mesmo quando (ou sobretudo quando) parecem estar dentro. A única maneira, com efeito, de demonstrar que aquelas coisas – inteligência, coragem, sentimentos – estão verdadeiramente dentro – tão dentro que ninguém as poderia levar – seria abdicar dos referidos objectos – precisamente o contrário do que eles desejavam. Aquele que sabe que é corajoso não precisa de beber poções ou receber medalhas, do mesmo modo que o verdadeiro crente não precisa de ver milagres.
  Apesar de tudo, sabemos que o leão é verdadeiramente corajoso, o espantalho é verdadeiramente inteligente e o lenhador é verdadeiramente sentimental, pelo que a leitura não pode ficar por aqui.
  Debruçando-se sobre a contemporânea opção de exibir peças de lixo, ou mesmo excrementos, como obras de arte, Zizek (The Fragile Absolute – Or why is the christian legacy worth fighting for), com base numa leitura da sentença hegeliana "O espírito é um osso", defende que é precisamente a reacção negativa que temos como espectadores – "Isto é arte?!" –, ao experienciarmos a incongruência entre a coisa (fezes, lixo) e o lugar – supostamente atribuído a uma obra de arte – que ela ocupa, que nos permite apercebermo-nos da especificidade desse lugar.
  Adaptando um pouco isto, talvez seja precisamente a incongruência entre o objecto estranho (farelos, uma almofada de serradura...) – ou, mais precisamente, a sua exterioridade – e o lugar (interior) que eles ocupam que nos alerta para a especificidade desse mesmo lugar. Talvez os objectos sejam afinal essenciais para que a negatividade que permeia o quadro que os representa dentro do leão, do espantalho e do lenhador possa alertar-nos para a particularidade do lugar onde eles foram colocados. O que significa, por outras palavras, que talvez seja necessário possuirmos os objectos para sabermos que eles não nos fazem falta – confirmando-se assim que só fazem verdadeiramente falta os que não estão.
  Assim, se a uma primeira leitura da Parábola do Filho Pródigo pensamos que o filho mais velho aprendeu uma valiosa lição do seu pai, uma leitura mais atenta permite-nos perceber que este não percebeu a verdade fundamental que transpareceu na sua resposta: o pai explicou-lhe – bem – que, por estar sempre com ele, não precisava de vitelo nenhum. Mas tal como Oz teve encher de farelos a cabeça do espantalho e com uma almofada o peito do lenhador para provar que eles já tinham o que procuravam, matar o vitelo e fazer uma festa em honra do filho mais velho era precisamente o único modo que o pai tinha de lhe mostrar que ele não precisava de nada disso.