W. Hatherell
No livro The Prince and the Pauper (Mark Twain), Tom é um rapaz pobre e Edward é o príncipe e futuro rei de Inglaterra. Encontram-se por acaso e conversam. Expressando cada um o desejo de experimentar um pouco do que é a vida do outro, trocam de roupa. É aí que se apercebem de que são bastante parecidos. Esquecendo isso, o príncipe sai do palácio ainda com as roupas de Tom e, sendo confundido com este, acaba por ser escorraçado e levado para longe. A partir daí, cada um deles é confundido com o outro pelos seus mais próximos, até ao momento da coroação, em que a troca é anulada e cada um volta ao seu lugar.
A uma primeira leitura, parecem-nos cegas as pessoas que olham o príncipe sem ver que se trata de Tom, e as que olham Tom sem ver que se trata do príncipe. Os únicos que conhecem a verdade, com efeito, são os próprios Tom e Edward: ninguém mais se apercebe do que se passa.
Tom e Edward só percebem que são iguais no momento em que trocam de roupa. O príncipe diz então: “Thou hast the same hair, the same eyes, the same voice and manner, the same form and stature, the same face and countenance, that I bear. Fared we forth naked, there is none could say which was you, and which the Prince of Wales.” Na verdade, a história vem confirmar precisamente o oposto: não foi a nudez de ambos que fez com que as pessoas os confundissem, como o príncipe vaticinava, mas sim a roupa (trocada) que os vestia. E assim a trama parece trazer uma lição simples de perspicácia: a de que devemos olhar para lá da superficialidade das aparências se queremos (re)conhecer alguém.
Pensando um pouco mais sobre a história, porém, podemos perguntar-nos se os dois rapazes não serão afinal os verdadeiros cegos, enquanto as restantes pessoas são quem verdadeiramente vê as coisas como elas são. Porque Tom e Edward são iguais: o príncipe é igual ao pobre e o pobre é igual ao príncipe. Ou seja, o que está em causa não é bem uma confusão, feita pelas pessoas, por não perceberem que o pobre (Edward) afinal era o príncipe e o príncipe (Tom) era apenas um pobre: ao invés, é precisamente por conseguirem ver que o príncipe (Edward) é verdadeiramente pobre e o pobre (Tom) é realmente príncipe que a confusão pode nascer. A cegueira, afinal, está nos dois rapazes, e não no resto das pessoas: todas as outras pessoas os confundem e não percebem que eles trocaram de lugar. Só que elas não estão afinal confundidas (i. e., enganadas). Pelo contrário, são elas quem vê perfeitamente, porque vêem o príncipe no pobre (o príncipe que realmente existe no pobre) e o pobre no príncipe (o pobre que realmente existe no príncipe). Os verdadeiros cegos são os rapazes: o príncipe não vê que é pobre e o pobre não vê que é príncipe. Não é por acaso que, na cena da coroação, o novo rei (Edward) veste o manto real por cima dos trapos de Tom, que não chega a despir: inegavelmente rei, ele não deixa de trazer o pobre em si. E assim tinha de ser, porque só depois de aceitar o pobre que há em si pode o príncipe tornar-se rei. O mesmo vale para o seu reflexo: para se tornar rei, o pobre teve de descobrir que era príncipe.
É precisamente pelo reflexo que o príncipe e o pobre descobrem que são iguais: o único momento em que os dois rapazes percebem que são simétricos é aquele em que trocam de roupa e se vêem ao espelho. O espelho mostra-lhes o outro que há neles. Só aí o príncipe tem um vislumbre do outro-pobre que traz em si e o pobre o mesmo em relação ao seu outro-príncipe. É essa a magia do espelho: mostrar-me o outro que eu sou. Mas a cena é apenas uma ilustração mais evidente de todo o encontro entre os dois rapazes: porque, afinal, quando estão frente a frente, cada um vê o seu inverso no outro (o príncipe vê o pobre e o pobre vê o príncipe). Toda a história se desenrola depois para lhes ensinar o que eles podiam ter aprendido instantaneamente vendo-se ao espelho: que o meu inverso também sou eu - é o meu outro que mora no meu espelho (e, portanto, em mim).
Segundo o príncipe, se ele e Tom estivessem nus, ninguém os conseguiria distinguir. Mas, na verdade, só eles precisam da nudez para perceber que são iguais. A história que se segue mostra o oposto daquele vaticínio: é precisamente vestidos (com as roupas um do outro) que são confundidos por toda a gente, ou seja: é precisamente pela roupa (trocada) que vestem que as pessoas os vêem como iguais. O que permite finalmente chegar à lição mais curiosa do livro. As roupas que Tom e Edward trocaram permitiram às outras pessoas perceber que os dois rapazes eram iguais. A troca de roupas não enganou, portanto, as outras pessoas, mas sim a eles mesmos. O que significa, no fim de contas, que são as roupas com que nos tapamos que nos mostram verdadeiramente aos outros. Porque as roupas que vestimos escondem-nos somente de nós próprios.
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