E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sábado, 2 de janeiro de 2016

"Mas tu estás sempre comigo" - "O Filho Pródigo" e "The Wonderful Wizard of Oz" (L. Frank Baum)

  Na Parábola do Filho Pródigo (Lc 15, 11-32), o filho mais velho indigna-se ao descobrir que o seu pai mandou matar o vitelo gordo e organizou uma festa em honra do seu irmão, regressado após ter esbanjado a sua parte da herança numa vida desregrada num país estrangeiro. Quando o filho mais velho censura o pai por nunca lhe ter prestado honra parecida, apesar de ele sempre ter cumprido as suas ordens, ao contrário do irmão, o pai responde-lhe: "mas tu estás sempre comigo".
  A mensagem é difícil de interiorizar, mas traz uma verdade profunda e com várias implicações. Entre elas está a de que aquilo que existe por dentro não precisa de existir por fora para ser real. O pai estava sempre com ele e, por isso, não precisava de o mostrar. Ao filho mais novo, pelo contrário – porque este se afastou e a presença do pai deixou de ser uma realidade –, foi necessária a demonstração dessa presença. Foi preciso provar. Só quem já sabe não precisa de provas. É isso, de resto, que explica o triunfo secreto – talvez o único – do crente sobre o ateu: o verdadeiro crente não precisa de milagres, nem os exibe. Ele já "sabe". Por isso Cristo repetia, vezes sem conta, que tinha vindo para resgatar os pecadores, as ovelhas tresmalhadas. Eram eles quem precisava de milagres. Aos verdadeiros crentes nada havia a provar.


W. W. Denslow

  A parábola finda sem notícia de qualquer reacção por parte do filho mais velho. Mas sabemos como reagiram outros ao ouvirem a mesma mensagem numa outra história: no livro The Wonderful Wizard of Oz (L. Frank Baum), quando o leão, o espantalho e o lenhador de lata, juntamente com Dorothy, finalmente descobrem que o grande feiticeiro é um impostor e o confrontam com as suas falsas promessas, ele explica-lhes que já têm aquilo de que necessitam, ou o que precisam para o conseguir – pelo menos o espantalho, o lenhador e o leão, no que respeita, respectivamente, a inteligência, bons sentimentos e coragem. (Mesmo Dorothy vem a descobrir que transportou sempre consigo o meio de chegar a casa: os seus sapatos).
  Nenhum deles, porém, fica satisfeito com a resposta: o falso feiticeiro explica ao espantalho que ele não precisa de cérebro, pois é mesmo assim capaz de aprender; de modo que experiência é tudo o que ele necessita para ganhar conhecimento. Mas o espantalho responde: “That may all be true, (...) but I shall be very unhappy unless you give me brains.” E os outros dão uma resposta equivalente.
  Oz acaba por satisfazê-los com objectos de faz-de-conta: enche a cabeça do espantalho de farelos, faz o leão beber um líquido verde que supostamente se tornará coragem quando estiver no seu interior e implanta no peito do lenhador um coração feito de seda e serradura. Todos ficam satisfeitos.
  Para o espantalho, o lenhador e o leão, trazer já dentro de si aquilo que procuravam não era suficiente: precisaram de o encontrar fora de si. Mas se só tem sentido a procura lá fora do que não encontramos cá dentro, a ironia do resultado das artes do feiticeiro impostor é óbvia: os objectos que receberam foram deixados em lugares que não poderiam ser ocupados por objecto nenhum, pois trata-se de coisas que não têm verdadeiramente lugar. Por isso, esses mesmos objectos que eles agora trazem dentro de si são afinal a maior prova de que estes personagens estão mais vazios que nunca – no sentido de que aqueles objectos nunca deixarão de ser coisas – provas, milagres – que eles encontraram fora de si, e permanecerão sempre lá fora, mesmo quando (ou sobretudo quando) parecem estar dentro. A única maneira, com efeito, de demonstrar que aquelas coisas – inteligência, coragem, sentimentos – estão verdadeiramente dentro – tão dentro que ninguém as poderia levar – seria abdicar dos referidos objectos – precisamente o contrário do que eles desejavam. Aquele que sabe que é corajoso não precisa de beber poções ou receber medalhas, do mesmo modo que o verdadeiro crente não precisa de ver milagres.
  Apesar de tudo, sabemos que o leão é verdadeiramente corajoso, o espantalho é verdadeiramente inteligente e o lenhador é verdadeiramente sentimental, pelo que a leitura não pode ficar por aqui.
  Debruçando-se sobre a contemporânea opção de exibir peças de lixo, ou mesmo excrementos, como obras de arte, Zizek (The Fragile Absolute – Or why is the christian legacy worth fighting for), com base numa leitura da sentença hegeliana "O espírito é um osso", defende que é precisamente a reacção negativa que temos como espectadores – "Isto é arte?!" –, ao experienciarmos a incongruência entre a coisa (fezes, lixo) e o lugar – supostamente atribuído a uma obra de arte – que ela ocupa, que nos permite apercebermo-nos da especificidade desse lugar.
  Adaptando um pouco isto, talvez seja precisamente a incongruência entre o objecto estranho (farelos, uma almofada de serradura...) – ou, mais precisamente, a sua exterioridade – e o lugar (interior) que eles ocupam que nos alerta para a especificidade desse mesmo lugar. Talvez os objectos sejam afinal essenciais para que a negatividade que permeia o quadro que os representa dentro do leão, do espantalho e do lenhador possa alertar-nos para a particularidade do lugar onde eles foram colocados. O que significa, por outras palavras, que talvez seja necessário possuirmos os objectos para sabermos que eles não nos fazem falta – confirmando-se assim que só fazem verdadeiramente falta os que não estão.
  Assim, se a uma primeira leitura da Parábola do Filho Pródigo pensamos que o filho mais velho aprendeu uma valiosa lição do seu pai, uma leitura mais atenta permite-nos perceber que este não percebeu a verdade fundamental que transpareceu na sua resposta: o pai explicou-lhe – bem – que, por estar sempre com ele, não precisava de vitelo nenhum. Mas tal como Oz teve encher de farelos a cabeça do espantalho e com uma almofada o peito do lenhador para provar que eles já tinham o que procuravam, matar o vitelo e fazer uma festa em honra do filho mais velho era precisamente o único modo que o pai tinha de lhe mostrar que ele não precisava de nada disso.

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