E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

O estranho que em mim me segura – "The Story of an Hour" (Kate Chopin) e Narciso

  No conto "The Story of an Hour", de Kate Chopin, Louise Mallard recebe a notícia da morte do seu marido – Brently Mallard – num acidente ferroviário. Depois de um choro inicial, retira-se para o quarto. Aos poucos, sente crescer dentro de si um sentimento que finalmente percebe ser um de libertação. Ela amou-o, pelo menos ocasionalmente, mas agora está radiante com a perspectiva de não se ver oprimida pela vontade dele, de ter todos e quaisquer caminhos de felicidade abertos diante de si. Quando sai do quarto e desce as escadas com a irmã, porém, vê o marido – que afinal não morrera, pois não estivera sequer no local do acidente. Louise, que tinha um coração frágil, morre de ataque cardíaco, com os médicos a interpretarem a sua morte como provocada por uma felicidade mortal.

  “Transforma-se o amador na cousa amada”. Esta ideia antiga, aqui no verso de Camões, pode ser um ponto de partida que nos ajuda a compreender o que acontece em “The Story of an Hour”. O amor que Louise sentiu por Brently – mesmo que só ocasionalmente (“she had loved him—sometimes. Often she had not.”) – é esse amor que transforma a amadora no ser amado.
  Brently impôs-lhe a sua vontade – mesmo que com ternura e afecto. Amar também é isso: fazer nossa a vontade do outro. É por aí, com efeito, que o amador se começa a transformar. É esse o primeiro grande gesto de violência no amor: pelo amor transforma-se a nossa vontade e, nesse momento em que a afirmação de nós mesmos (pela nossa vontade) é modificada no seu sentido e ganha um rumo completamente novo, algo de profundo se transforma no nosso íntimo. Esta transformação da nossa vontade resulta da imposição da vontade do outro. Mas é uma imposição que não se faz a partir de fora: a vontade do outro nasce dentro de nós. O verdadeiro milagre do amor é esse: a vontade do outro nasce em nós como se fosse nossa. E esta violência, claro, é criminosa, como é sempre criminoso o amor que nos transforma, que nos viola a partir de dentro. E é a mais violenta das violações, pois o corpo estranho (vontade) que surge no nosso corpo aparece como nosso, nasce do interior. Ou seja, não se trata apenas de impor algo, a partir de fora, contra a nossa vontade, mas, sobretudo, de impor algo como sendo a nossa vontade. A violência está nesta assimilação, a que nos vemos forçados, do querer alheio.
  A morte de Brently representa para Louise uma libertação – “Free! Body and soul free!” she kept whispering.”. Mas de que se liberta ela? O outro que é simplesmente outro nunca nos ganha. O que está sempre fora de nós pode oprimir-nos, encurralar-nos e prender-nos, mas não pode nunca conquistar-nos. Mas é de uma conquista, de uma ocupação, que Louise se liberta. Porque a relação com Brently transformou-a. Ao fazer sua a vontade de Brently, ela incorporou-o, tornando-o parte de si. E, no entanto, ele continua a ser uma vontade estranha, mesmo que surgindo dentro de Louise. Pelo que só se pode concluir que Brently é o outro que Louise traz em si, é o seu outro. E é precisamente deste outro que ela se liberta. Nesse processo, ela pode desdenhar o amor, em face da afirmação de si mesma de que toma consciência ("What could love, the unsolved mystery, count for in face of this possession of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her being!").

  O percurso de Louise é inverso ao de Narciso: este, ao descobrir o seu outro (no lago), morre quando tenta ir ao seu encontro. Louise, ao invés, quer libertar-se do seu outro e morre porque ele vem ter consigo.
  Nestes percursos inversos, contudo, mora a mesma verdade. Para o percebermos, temos de atentar no seguinte. Narciso quis fundir-se com o seu outro. Amador do seu reflexo, quis transformar-se na cousa amada. Tal acto, porém, traduz-se em negar esse outro que se procura: ao querer passar a barreira que o separava do reflexo, Narciso pretendia que o outro deixasse de o ser para passar a ser apenas ele mesmo. Este gesto foi o seu suicídio. Porque querer ser tudo é ser nada. Já Louise, em sentido oposto, quis fugir do seu outro, preencher o mundo apenas de si mesma. Mas também isto é negar o outro. E este propósito de preencher todos os lugares com apenas nós mesmos e sem o nosso outro resulta afinal em ficar em lugar nenhum, pois largamos assim o outro que em nós mora e nos sustenta.
  E assim chegamos à verdade idêntica nos dois relatos: negarmos o nosso outro, aquilo que, morando em nós, nos é estranho, é afinal negarmo-nos a nós mesmos.




La Metamorfosis de Narciso (Dalí)

  O quadro de Dalí – pelo menos a julgar pela interpretação que o próprio pintor dele oferece – traz uma estranha terceira via, alternativa a estes caminhos de morte.

  Só podemos observar no quadro a contemplação estática de Narciso diante do espelho de água. Esta imobilidade é a terceira via: a de não ir ao encontro do nosso outro, mas sem fugir dele. A imobilidade também é o ponto de partida que Dalí propõe para a hipótese de uma vida nova a partir do amor: 


  "Si durante algún tiempo se mira con un ligero distanciamiento y cierta “fijeza distraída” la figura hipnóticamente inmóvil de Narciso, ésta desaparece progresivamente hasta hacerse absolutamente invisible.
  La metamorfosis de Narciso se produce en ese preciso momento, porque la imagen de Narciso se transforma súbitamente en la imagen de una mano que surge de su propio reflejo. Esta mano sostiene con la punta de los dedos, un huevo, una simiente, el bulbo del que nace el nuevo Narciso-la flor. A su lado puede observarse la escultura calcárea de la mano, mano fósil del agua que sostiene la flor abierta."

  Como depois explica no seu belo poema sobre o quadro, a flor nasce a partir da semente largada pela própria cabeça de Narciso. A flor só pode brotar e nascer, todavia, porque sustentada pela mão do reflexo (do seu outro, portanto) que a segura. O que só faz sentido se nos lembrarmos de que o nosso outro nos é, afinal, essencial, porque nos sustenta.
  É essa lição que, tarde demais, Louise e Narciso têm de aprender.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Save my character – “The Catbird Seat” (James Thurber) e “The Case of Mr. Pelham” (Alfred Hitchcock)

  No conto "The Catbird Seat", de James Thurber, Erwin Martin trabalha no departamento de arquivo da empresa "F&S". A sua vida precisa, ordeira e moderada vê-se perturbada pelo aparecimento de Ulgine Barrows, a nova conselheira especial do patrão da empresa. Para além de o bombardear constantemente com perguntas e expressões que lhe parecem infantis e irritantes, Barrows poderá mesmo levar ao seu despedimento, como já fez com alguns colegas de Martin. Este decide, por isso, matá-la. No dia em que se prepara para executar o seu plano, compra um maço de cigarros, apesar de nunca fumar, e, já em casa de Barrows, bebe álcool, apesar de também nunca beber. Acaba por não levar a cabo o homicídio, mas tem uma ideia melhor. Informa Barrows de que costuma consumir cocaína (na verdade, nunca o fez), insulta o patrão, ameaça fazer explodir uma bomba na empresa e vai embora, deitando a língua de fora a Barrows. No dia seguinte, Martin, na empresa, adopta o seu modo pacato, sério e ordeiro de sempre. Barrows denuncia-o ao patrão, mas este não acredita nela e, perante a insistência furiosa da mulher, acaba por fazer com que ela seja levada para fora da empresa.

  "The Catbird Seat" apresenta uma curiosa oportunidade de contraposição ao que acontece em "The Case of Mr. Pelham" (resumido aqui e também discutido aqui). Aí,  Pelham, já prisioneiro do personagem que criara – através dos seus hábitos, da sua regularidade, da sua previsibilidade –, perde-se no momento em que tenta libertar-se da sua criação. Já sem qualquer possibilidade de se separar daquilo que se tornou, Pelham desaparece, restando apenas o em-si, por ele criado, e que assim lhe toma o lugar.
  Também Martin é uma criatura de hábitos. Também ele criou um personagem e também ele arrisca uma experiência de liberdade (na visita a casa de Barrows). No caso de Martin, porém, é essa experiência que o salva – exactamente o oposto, portanto, do que sucede com Pelham.
  Pelham é condenado pelo olhar dos outros – olhar representado pelo seu mordomo, o “juiz” que acaba por decidir qual dos dois Pelhams é o verdadeiro. No caso de Martin, ao invés, é precisamente o olhar dos outros que o salva. É a identificação de Martin com o seu personagem, o seu em-si, que leva o seu patrão a não acreditar no relato de Barrows. Em ambos os casos, porém, o olhar do outro procede do mesmo modo: Martin, tal como Pelham, é identificado com o seu personagem pelos outros – se se quiser, é identificado com o seu papel pelo público diante do qual este é representado; o público não acredita – nega mesmo – a existência do actor por detrás da representação.
  Se Martin se salva é porque – e só na medida em que – aceita ser apenas a sua personagem e nada mais. Ou seja, aceita a identificação, forjada pelo seu público, entre si e o seu papel (e aproveita-se mesmo dela para afastar Barrows). O olhar do público é soberano e por isso Martin pode triunfar. A vítima, numa curiosa inversão do caso de Pelham, já não é o actor que se quer separar do papel, mas sim a espectadora que se quer destacar do público. Por insistir na hipótese de que Martin não se identifica com o personagem que todos vêem nele quando o olham, Barrows é afastada e, tal como Pelham, provavelmente acabará num manicómio. Mas enquanto Pelham é afastado porque, no fundo, não aceitou, como actor, o papel que o público lhe impunha, já Barrows é-o porque, como espectadora, não quis aceitar o papel que o actor insistia em representar. O pacto entre quem representa e o seu público é assim tão forte num sentido como no outro, impondo-se tanto ao actor como ao espectador. 


  Pelham arrisca uma experiência de liberdade quando se percebe ameaçado – no seu ser-para-si – pelo seu outro, i. e., pelo seu personagem, pelo seu em-si. Os seus actos de rebeldia são uma tentativa de afastar esse outro, de fazer prevalecer a sua liberdade. Se Pelham muda os seus hábitos, é porque não quer ser prisioneiro destes.
  Com Martin, passa-se o inverso: Barrows é uma ameaça aos seus hábitos, à sua regularidade, ao seu personagem. É para repelir essa ameaça que Martin age. Ou seja, no fundo, enquanto Pelham age como ser livre para ganhar a liberdade face ao seu personagem, Martin age como ser livre para se manter prisioneiro do seu. A liberdade, no caso de Martin, é apenas o sustento da sua prisão. É o que, afinal, a torna possível.
  Não restam ilusões: Pelham quis sair da gaiola que construiu para si mesmo e descobriu que não poderia viver lá fora – os olhos dos outros (onde verdadeiramente vive a criatura por si criada) apenas admitem a existência desta. Também Martin precisou de se libertar um momento da sua gaiola – mas apenas para continuar a viver nela. A liberdade de Martin é, assim, uma falsa liberdade: uma liberdade enjaulada.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

O amor pelo dinheiro – O Tio Patinhas e o Espantalho


  Scrooge Mcduck (personagem de Carl Barks), ou o Tio Patinhas na versão portuguesa, é um pato milionário, dono de uma caixa-forte gigantesca cheia de dinheiro – moedas de ouro, notas, etc. Guarda-o numa espécie de piscina onde nada por divertimento. Custa-lhe muito separar-se do dinheiro, não havendo praticamente nada que lhe pareça valer a pena comprar. Ou seja, toda a compra é, à partida, um desperdício de dinheiro. Para o Tio Patinhas, este vale por si, não pelas coisas que permite adquirir.

  Será o Tio Patinhas verdadeiramente forreta e ganancioso? O seu amor pelo dinheiro é isso mesmo: amor, devoção, afecto pela sua riqueza. Embora as pessoas queiram, por norma, ter dinheiro, o que elas verdadeiramente querem são as coisas que ele permite comprar. Mesmo quando são forretas, isso não contraria esta regra, pois aí não se trata tanto de não querer as coisas que o dinheiro compra, como do medo de perder a oportunidade de comprar outras coisas que o montante gasto permitiria adquirir. Não no caso do Tio Patinhas: à partida, não há nada em que ele queira gastar a fortuna; de facto, o único objecto que o pode motivar a gastar é aquele que lhe permita, em perspectiva, adquirir mais dinheiro no futuro.


John R. Neill

  Para percebermos melhor a relação do Tio Patinhas com o capital, lembremos a figura do Espantalho, da série de livros de Oz. No segundo livro – The Marvelous Land of Oz (L. Frank Baum) –, a dada altura, é necessário retirar a palha do Espantalho e espalhá-la, de modo a salvar alguns dos seus companheiros. Os pássaros que então os atacavam, no entanto, levam todos os fios de palha de que o Espantalho se compunha e nada sobra dele a não ser a sua cabeça. Perante isto, o Espantalho vê-se acabado, mas os seus amigos acabam por salvá-lo enchendo as suas roupas com outro material, que por acaso ali abundava naquela altura: dinheiro. Cheio (literalmente) de dinheiro, o Espantalho fica como novo e tem outra vez um corpo.
  Há uma ironia óbvia a que podemos associar a troca da palha pelo dinheiro. "Palha" tem também o sentido de coisa inútil ou banal, sem valor – o oposto, portanto, do dinheiro. Mas ambos são coisas fungíveis: coisas susceptíveis de serem trocadas por outras semelhantes sem diminuição de valor. Uma moeda ou uma nota, tal como um fio de palha, não valem por serem objectos únicos, podendo ser trocados livremente por um exemplar similar. Todavia, o dinheiro, supostamente, é uma coisa com valor, ao contrário da palha. Esse valor é o de troca: o dinheiro é valioso porque pode ser trocado por coisas que queiramos. Assim, uma moeda pode ser livremente trocada por outra semelhante, porque ambas são igualmente valiosas. Um fardo de palha pode também ser livremente trocado por outro, mas pela razão oposta: são ambos desprovidos de valor. Por isso, a moeda pode também ser trocada por outras coisas, mas a palha não. A ironia vai então ainda mais longe: a palha – que, em teoria, não deveria poder ser trocada por outra coisa que não algo semelhante – é trocada por dinheiro – que é valioso precisamente por poder ser trocado por coisas que têm valor, i. e., é valioso precisamente por permitir adquirir coisas que não são "palha".
  
  Mas há ainda um outro modo pelo qual, aparentemente, o Espantalho inverte o uso normal do dinheiro, pervertendo o seu valor: é mantendo o dinheiro (e não trocando-o por outros objectos) que este tem valor para ele. Ou seja, ele usa o dinheiro precisamente do modo inverso àquele a que ele estava destinado: o dinheiro só vale para ele se e enquanto ele não se separar dele. Um pouco como o Tio Patinhas, disposto a guardar para si toda a sua riqueza e gastando o menos possível.
  Podemos, contudo, perguntar se haverá aqui uma verdadeira perversão do uso do dinheiro. À primeira vista, a resposta parece afirmativa: tanto o Espantalho como o Tio Patinhas parecem gostar do dinheiro, não como coisa com valor de troca (precisamente o tipo de valor que é suposto o dinheiro ter), mas sim como coisa com valor em si, como objecto (precisamente o valor que é suposto o dinheiro não ter). E estes personagens parecem ainda mais próximos se atentarmos no seguinte: o dinheiro mantém o Espantalho vivo, já que o preenche e lhe permite ter corpo, existir como espantalho. Mas a fixação pato(-)lógica do Tio Patinhas é assim mesmo: o caso do Espantalho não é mais que uma caricatura do modo como o Tio Patinhas vive através do dinheiro.
  Olhando mais atentamente, porém, percebemos que o Espantalho não é exactamente como o Tio Patinhas. De facto, ele acaba mesmo por ser o seu inverso. O amor do Tio Patinhas pelo dinheiro faz deste uma coisa infungível: para ele, o dinheiro tem, naturalmente, valor como coisa que permite comprar coisas, pode ser trocado por outras coisas. Mas este carácter de moeda de troca é apenas o pressuposto para o verdadeiro afecto que ele lhe devota: ele gosta dele como coisa valiosa e, precisamente porque nele vê valor (e para isso tem de o ver como coisa susceptível de ser trocada), trata-o como coisa infungível, não o quer trocar por nada, quer mantê-lo.
  Com o Espantalho passa-se o inverso: ele radicaliza a fungibilidade do dinheiro. Para ele, o dinheiro não é tão (ou não é de todo) valioso como coisa que permite comprar coisas, trocar, mas sim como objecto em si. Só que, por isso mesmo, para ele é igual ter palha ou dinheiro. Ou seja, enquanto para o Tio Patinhas o dinheiro pode ser trocado por coisas (o que lhe confere valor) e, por isso, ele não o quer trocar por nada, para o Espantalho, precisamente porque não lhe interessa trocar o dinheiro por outras coisas (nessa medida, o dinheiro é inútil, não tem valor) é que o dinheiro lhe interessa, tendo, portanto, valor como objecto, como coisa em si.
  Tanto o Espantalho como o Tio Patinhas, em suma, gostam do objecto-dinheiro como coisa em si. Só o Espantalho, porém, tem um afecto desinteressado por este objecto, um afecto que não está dependente de as pessoas acharem que o dinheiro é valioso. Já o amor do Tio Patinhas só existe porque – e na medida em que – as outras pessoas também gostam de dinheiro.
  Por outro lado, o desinteresse do Espantalho faz com que para ele seja indiferente ter dinheiro ou palha, enquanto o Tio Patinhas não abandonaria uma moeda por toda a palha deste mundo. Qual deles é afinal mais rico ou demonstra o amor mais verdadeiro não depende de nada a não ser o nosso ponto de vista.