E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Save my character – “The Catbird Seat” (James Thurber) e “The Case of Mr. Pelham” (Alfred Hitchcock)

  No conto "The Catbird Seat", de James Thurber, Erwin Martin trabalha no departamento de arquivo da empresa "F&S". A sua vida precisa, ordeira e moderada vê-se perturbada pelo aparecimento de Ulgine Barrows, a nova conselheira especial do patrão da empresa. Para além de o bombardear constantemente com perguntas e expressões que lhe parecem infantis e irritantes, Barrows poderá mesmo levar ao seu despedimento, como já fez com alguns colegas de Martin. Este decide, por isso, matá-la. No dia em que se prepara para executar o seu plano, compra um maço de cigarros, apesar de nunca fumar, e, já em casa de Barrows, bebe álcool, apesar de também nunca beber. Acaba por não levar a cabo o homicídio, mas tem uma ideia melhor. Informa Barrows de que costuma consumir cocaína (na verdade, nunca o fez), insulta o patrão, ameaça fazer explodir uma bomba na empresa e vai embora, deitando a língua de fora a Barrows. No dia seguinte, Martin, na empresa, adopta o seu modo pacato, sério e ordeiro de sempre. Barrows denuncia-o ao patrão, mas este não acredita nela e, perante a insistência furiosa da mulher, acaba por fazer com que ela seja levada para fora da empresa.

  "The Catbird Seat" apresenta uma curiosa oportunidade de contraposição ao que acontece em "The Case of Mr. Pelham" (resumido aqui e também discutido aqui). Aí,  Pelham, já prisioneiro do personagem que criara – através dos seus hábitos, da sua regularidade, da sua previsibilidade –, perde-se no momento em que tenta libertar-se da sua criação. Já sem qualquer possibilidade de se separar daquilo que se tornou, Pelham desaparece, restando apenas o em-si, por ele criado, e que assim lhe toma o lugar.
  Também Martin é uma criatura de hábitos. Também ele criou um personagem e também ele arrisca uma experiência de liberdade (na visita a casa de Barrows). No caso de Martin, porém, é essa experiência que o salva – exactamente o oposto, portanto, do que sucede com Pelham.
  Pelham é condenado pelo olhar dos outros – olhar representado pelo seu mordomo, o “juiz” que acaba por decidir qual dos dois Pelhams é o verdadeiro. No caso de Martin, ao invés, é precisamente o olhar dos outros que o salva. É a identificação de Martin com o seu personagem, o seu em-si, que leva o seu patrão a não acreditar no relato de Barrows. Em ambos os casos, porém, o olhar do outro procede do mesmo modo: Martin, tal como Pelham, é identificado com o seu personagem pelos outros – se se quiser, é identificado com o seu papel pelo público diante do qual este é representado; o público não acredita – nega mesmo – a existência do actor por detrás da representação.
  Se Martin se salva é porque – e só na medida em que – aceita ser apenas a sua personagem e nada mais. Ou seja, aceita a identificação, forjada pelo seu público, entre si e o seu papel (e aproveita-se mesmo dela para afastar Barrows). O olhar do público é soberano e por isso Martin pode triunfar. A vítima, numa curiosa inversão do caso de Pelham, já não é o actor que se quer separar do papel, mas sim a espectadora que se quer destacar do público. Por insistir na hipótese de que Martin não se identifica com o personagem que todos vêem nele quando o olham, Barrows é afastada e, tal como Pelham, provavelmente acabará num manicómio. Mas enquanto Pelham é afastado porque, no fundo, não aceitou, como actor, o papel que o público lhe impunha, já Barrows é-o porque, como espectadora, não quis aceitar o papel que o actor insistia em representar. O pacto entre quem representa e o seu público é assim tão forte num sentido como no outro, impondo-se tanto ao actor como ao espectador. 


  Pelham arrisca uma experiência de liberdade quando se percebe ameaçado – no seu ser-para-si – pelo seu outro, i. e., pelo seu personagem, pelo seu em-si. Os seus actos de rebeldia são uma tentativa de afastar esse outro, de fazer prevalecer a sua liberdade. Se Pelham muda os seus hábitos, é porque não quer ser prisioneiro destes.
  Com Martin, passa-se o inverso: Barrows é uma ameaça aos seus hábitos, à sua regularidade, ao seu personagem. É para repelir essa ameaça que Martin age. Ou seja, no fundo, enquanto Pelham age como ser livre para ganhar a liberdade face ao seu personagem, Martin age como ser livre para se manter prisioneiro do seu. A liberdade, no caso de Martin, é apenas o sustento da sua prisão. É o que, afinal, a torna possível.
  Não restam ilusões: Pelham quis sair da gaiola que construiu para si mesmo e descobriu que não poderia viver lá fora – os olhos dos outros (onde verdadeiramente vive a criatura por si criada) apenas admitem a existência desta. Também Martin precisou de se libertar um momento da sua gaiola – mas apenas para continuar a viver nela. A liberdade de Martin é, assim, uma falsa liberdade: uma liberdade enjaulada.

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