No conto "The Story of an Hour", de Kate Chopin, Louise Mallard recebe a notícia da morte do seu marido – Brently Mallard – num acidente ferroviário. Depois de um choro inicial, retira-se para o quarto. Aos poucos, sente crescer dentro de si um sentimento que finalmente percebe ser um de libertação. Ela amou-o, pelo menos ocasionalmente, mas agora está radiante com a perspectiva de não se ver oprimida pela vontade dele, de ter todos e quaisquer caminhos de felicidade abertos diante de si. Quando sai do quarto e desce as escadas com a irmã, porém, vê o marido – que afinal não morrera, pois não estivera sequer no local do acidente. Louise, que tinha um coração frágil, morre de ataque cardíaco, com os médicos a interpretarem a sua morte como provocada por uma felicidade mortal.
“Transforma-se o amador na cousa amada”. Esta ideia antiga, aqui no verso de Camões, pode ser um ponto de partida que nos ajuda a compreender o que acontece em “The Story of an Hour”. O amor que Louise sentiu por Brently – mesmo que só ocasionalmente (“she had loved him—sometimes. Often she had not.”) – é esse amor que transforma a amadora no ser amado.
Brently impôs-lhe a sua vontade – mesmo que com ternura e afecto. Amar também é isso: fazer nossa a vontade do outro. É por aí, com efeito, que o amador se começa a transformar. É esse o primeiro grande gesto de violência no amor: pelo amor transforma-se a nossa vontade e, nesse momento em que a afirmação de nós mesmos (pela nossa vontade) é modificada no seu sentido e ganha um rumo completamente novo, algo de profundo se transforma no nosso íntimo. Esta transformação da nossa vontade resulta da imposição da vontade do outro. Mas é uma imposição que não se faz a partir de fora: a vontade do outro nasce dentro de nós. O verdadeiro milagre do amor é esse: a vontade do outro nasce em nós como se fosse nossa. E esta violência, claro, é criminosa, como é sempre criminoso o amor que nos transforma, que nos viola a partir de dentro. E é a mais violenta das violações, pois o corpo estranho (vontade) que surge no nosso corpo aparece como nosso, nasce do interior. Ou seja, não se trata apenas de impor algo, a partir de fora, contra a nossa vontade, mas, sobretudo, de impor algo como sendo a nossa vontade. A violência está nesta assimilação, a que nos vemos forçados, do querer alheio.
A morte de Brently representa para Louise uma libertação – “Free! Body and soul free!” she kept whispering.”. Mas de que se liberta ela? O outro que é simplesmente outro nunca nos ganha. O que está sempre fora de nós pode oprimir-nos, encurralar-nos e prender-nos, mas não pode nunca conquistar-nos. Mas é de uma conquista, de uma ocupação, que Louise se liberta. Porque a relação com Brently transformou-a. Ao fazer sua a vontade de Brently, ela incorporou-o, tornando-o parte de si. E, no entanto, ele continua a ser uma vontade estranha, mesmo que surgindo dentro de Louise. Pelo que só se pode concluir que Brently é o outro que Louise traz em si, é o seu outro. E é precisamente deste outro que ela se liberta. Nesse processo, ela pode desdenhar o amor, em face da afirmação de si mesma de que toma consciência ("What could love, the unsolved mystery, count for in face of this possession of self-assertion which she suddenly recognized as the strongest impulse of her being!").
O percurso de Louise é inverso ao de Narciso: este, ao descobrir o seu outro (no lago), morre quando tenta ir ao seu encontro. Louise, ao invés, quer libertar-se do seu outro e morre porque ele vem ter consigo.
Nestes percursos inversos, contudo, mora a mesma verdade. Para o percebermos, temos de atentar no seguinte. Narciso quis fundir-se com o seu outro. Amador do seu reflexo, quis transformar-se na cousa amada. Tal acto, porém, traduz-se em negar esse outro que se procura: ao querer passar a barreira que o separava do reflexo, Narciso pretendia que o outro deixasse de o ser para passar a ser apenas ele mesmo. Este gesto foi o seu suicídio. Porque querer ser tudo é ser nada. Já Louise, em sentido oposto, quis fugir do seu outro, preencher o mundo apenas de si mesma. Mas também isto é negar o outro. E este propósito de preencher todos os lugares com apenas nós mesmos e sem o nosso outro resulta afinal em ficar em lugar nenhum, pois largamos assim o outro que em nós mora e nos sustenta.
E assim chegamos à verdade idêntica nos dois relatos: negarmos o nosso outro, aquilo que, morando em nós, nos é estranho, é afinal negarmo-nos a nós mesmos.
O quadro de Dalí – pelo menos a julgar pela interpretação que o próprio pintor dele oferece – traz uma estranha terceira via, alternativa a estes caminhos de morte.
Só podemos observar no quadro a contemplação estática de Narciso diante do espelho de água. Esta imobilidade é a terceira via: a de não ir ao encontro do nosso outro, mas sem fugir dele. A imobilidade também é o ponto de partida que Dalí propõe para a hipótese de uma vida nova a partir do amor:
Como depois explica no seu belo poema sobre o quadro, a flor nasce a partir da semente largada pela própria cabeça de Narciso. A flor só pode brotar e nascer, todavia, porque sustentada pela mão do reflexo (do seu outro, portanto) que a segura. O que só faz sentido se nos lembrarmos de que o nosso outro nos é, afinal, essencial, porque nos sustenta.
É essa lição que, tarde demais, Louise e Narciso têm de aprender.
O percurso de Louise é inverso ao de Narciso: este, ao descobrir o seu outro (no lago), morre quando tenta ir ao seu encontro. Louise, ao invés, quer libertar-se do seu outro e morre porque ele vem ter consigo.
Nestes percursos inversos, contudo, mora a mesma verdade. Para o percebermos, temos de atentar no seguinte. Narciso quis fundir-se com o seu outro. Amador do seu reflexo, quis transformar-se na cousa amada. Tal acto, porém, traduz-se em negar esse outro que se procura: ao querer passar a barreira que o separava do reflexo, Narciso pretendia que o outro deixasse de o ser para passar a ser apenas ele mesmo. Este gesto foi o seu suicídio. Porque querer ser tudo é ser nada. Já Louise, em sentido oposto, quis fugir do seu outro, preencher o mundo apenas de si mesma. Mas também isto é negar o outro. E este propósito de preencher todos os lugares com apenas nós mesmos e sem o nosso outro resulta afinal em ficar em lugar nenhum, pois largamos assim o outro que em nós mora e nos sustenta.
E assim chegamos à verdade idêntica nos dois relatos: negarmos o nosso outro, aquilo que, morando em nós, nos é estranho, é afinal negarmo-nos a nós mesmos.
La Metamorfosis de Narciso (Dalí)
O quadro de Dalí – pelo menos a julgar pela interpretação que o próprio pintor dele oferece – traz uma estranha terceira via, alternativa a estes caminhos de morte.
Só podemos observar no quadro a contemplação estática de Narciso diante do espelho de água. Esta imobilidade é a terceira via: a de não ir ao encontro do nosso outro, mas sem fugir dele. A imobilidade também é o ponto de partida que Dalí propõe para a hipótese de uma vida nova a partir do amor:
"Si durante algún tiempo se mira con un ligero distanciamiento y cierta “fijeza distraída” la figura hipnóticamente inmóvil de Narciso, ésta desaparece progresivamente hasta hacerse absolutamente invisible.
La metamorfosis de Narciso se produce en ese preciso momento, porque la imagen de Narciso se transforma súbitamente en la imagen de una mano que surge de su propio reflejo. Esta mano sostiene con la punta de los dedos, un huevo, una simiente, el bulbo del que nace el nuevo Narciso-la flor. A su lado puede observarse la escultura calcárea de la mano, mano fósil del agua que sostiene la flor abierta."
Como depois explica no seu belo poema sobre o quadro, a flor nasce a partir da semente largada pela própria cabeça de Narciso. A flor só pode brotar e nascer, todavia, porque sustentada pela mão do reflexo (do seu outro, portanto) que a segura. O que só faz sentido se nos lembrarmos de que o nosso outro nos é, afinal, essencial, porque nos sustenta.
É essa lição que, tarde demais, Louise e Narciso têm de aprender.
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