E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 25 de abril de 2016

O espectador ausente


  No filme Peeping Tom (Michael Powell), Mark é um jovem que filma e mata mulheres. Os seus motivos não são explicados de forma clara, mas talvez os percebamos melhor se compararmos a sua história com a de dois personagens do livro La Lenteur (Milan Kundera): Immaculata e o seu cameraman. Immaculata é uma mulher que viaja sempre acompanhada de um homem. Este homem é o seu cameraman e esta é a única designação que ele recebe ao longo do livro.
  A dada altura, Immaculata despe-se diante do cameraman. Mas, aparentemente, não se despe para ele, pois fá-lo como se ele ali não estivesse: "Ce déshabillage veut dire: ta présence ici, devant moi, n'a aucune, mais aucune importance; ta présence égalle celle d'un chien ou d'une souris. Tes regards ne mettront en mouvement aucune parcelle de mon corps. Je pourrais faire n'importe quoi devant toi, les actes les plus inconvenants, je pourrais vomir devant toi, me laver les oreilles ou le sexe, me masturber, pisser. Tu es un non-oeil, une non-oreille, une non-tête. Mon indifférence orgulleise est un manteau qui me permet de me mouvoir devant toi en toute liberté et en toute impudeur".
  Este cameraman é isso mesmo: um homem-câmara; ele é o olho da câmara e não alguém por detrás desta. Por isso não tem nome: não há ninguém para ver, porque é atrás da câmara que nós vemos. É neste sentido que ele é "um não-olho, um não ouvido": ele desaparece como sujeito que vê, como alguém que espreita com os seus olhos. Por outras palavras, ele é um "não-olho" precisamente na medida em que ele é apenas um olho (e não alguém que olha). Por isso, ele pode ver tudo com total impunidade: ele não está presente. Tal como o espectador na sala de cinema não tem de fechar os olhos diante do écran. O espectador não está presente no mundo dos acontecimentos do filme. Por estar ausente, é-lhe permitido ver tudo. Do mesmo modo, a actriz do écran não está presente no mundo do espectador e, por isso, pode exibir-se diante dele. Por não haver ninguém atrás da câmara para a olhar, ela pode mostrar-se a todos os que a espreitam no écran.
  Podemos assim corrigir aquela aparência de que Immaculata não se despe para o cameraman, visto que o faz como se ele ali não estivesse: ao invés, é precisamente porque o faz como se ele ali não estivesse que nós sabemos que é para ele que ela se despe. Ele é o seu espectador. O espectador de cinema esconde-se normalmente atrás da câmara para, desaparecendo, poder ver impunemente a actriz no écran. No caso de Immaculata, é ela própria que instaura um écran que esconde o seu espectador, de modo a poder despir-se impunemente diante dele.
  É precisamente este espectador, este olho-que-não-vê (e que, por isso, tudo vê com impunidade) que Mark quer ser. Quer ser apenas a câmara, não o homem por detrás dela. Quer-se apagar como sujeito que espreita por detrás da câmara, desaparecer nos seus próprios olhos: ver apenas, não ser quem vê.
  Em La Lenteur, o cameraman revolta-se contra a indiferença de Immaculata.  Porque a ama, não aguenta a invisibilidade a que ela o quer condenar, e ataca-a para ser notado ("Elle sait qu'il l'injurie parce qu'il veut être écouté, vu, pris en considération"). Os seus ataques têm de limitar-se a insultos, porque não é capaz de se lhe impor fisicamente. E já sabemos a razão: não se deve isto simplesmente ao facto de estar apaixonado; deve-se, sobretudo, à sua posição de espectador diante de Immaculata: ele está ausente nesta relação e, por isso, a única coisa que pode projectar sobre ela é o seu olhar, o modo como a vê. Daí que apenas possa injuriá-la. Neste sentido, porque não pode ser tocada pelo espectador, a sua vítima permanece realmente "imaculada". Mas a ironia é óbvia: o olhar que espreita pode ser o mais penetrante dos ataques, aquele que vai mais fundo. E é um golpe "irreparável" o que o cameraman quer infligir com as suas injúrias: "Il ne trouve pas le courage de la gifler, de la battre, de la jeter sur le lit et de la violer, mais il ressent d'autant plus le besoin de faire quelque chose d'irréparable".
  É precisamente o mais irreparável de todos os ataques aquele que Mark inflige às suas vítimas: o da morte. Só que a sua motivação é a inversa: se o cameraman ataca Immaculata porque quer ser visto, quer ser notado, Mark ataca-as porque quer desaparecer, quer que elas não o vejam. Para o cameraman, matar Immaculata não teria qualquer sentido: perderia então qualquer esperança de vir a ser notado. Já a Mark, pelo contrário, essa é mesmo a única solução que resta: eliminar o olho que o descobriu. Deste modo, cada um ocupa o lugar desejado pelo outro: Mark, no fundo, desejaria poder filmar Immaculata, desejaria desaparecer como espectador ausente diante dela, enquanto o cameraman de Immaculata desejaria amar as mulheres que Mark filma, aquelas que notam e interpelam o sujeito por detrás da câmara.
  Todos ocupamos, todos os dias – mesmo que apenas por breves momentos –, esta posição de espectadores ausentes. Não apenas no cinema, mas em todas as situações em que desaparecemos (de) atrás dos nossos olhos e ninguém vê que nós vemos. É esta nossa posição, tão preciosa quanto ilícita, que Mark queria ocupar. É esse o seu pecado.

terça-feira, 19 de abril de 2016

Aos olhos de gigantes – A medida de Gulliver


James Gillray

  Durante a sua estadia em Lilliput, Gulliver toma conhecimento de uma guerra travada desde há muito entre este país e Blefuscu. A origem da discórdia é uma disputa ridícula: porque o seu filho se cortou quando partia um ovo pela parte maior (como era tradição), o imperador decretou que a partir daí os ovos fossem sempre partidos pela parte menor. Aqueles que se opunham encontraram refúgio em Blefuscu e desde então, até à chegada de Gulliver, a guerra entre as duas nações já provocou milhares de mortos (Jonathan Swift, Gulliver's Travels).

  Os lilliputianos parecem sofrer do mal de que fala William Hazlitt ("On great and little things"): muitas vezes usamos o mesmo padrão de medida para tratar coisas grandes e pequenas, não atendendo a que a respectiva dimensão poderá requerer uma adaptação do lado de quem mede: “The great and the little have, no doubt, a real existence in the nature of things; but they both find pretty much the same level in the mind of man. It is a common measure, which does not always accommodate itself to the size and importance of the objects it represents.”
  Para demonstrar isto, Hazlitt destaca como nos deixamos muitas vezes levar em fúrias e reacções despropositadas face a meros inconvenientes que, no cômputo geral da nossa vida, não assumem uma importância significativa. É isso que parece acontecer com os lilliputianos: uma questão aparentemente tão mesquinha – o lado "correcto" pelo qual se deve partir um ovo – é motivo para despoletar batalhas sangrentas. E também a outros níveis se parece revelar o mesmo problema: o concurso para obtenção de lugares na corte, por exemplo, passa pela realização de jogos de habilidade que envolvem dançar numa corda ou conseguir passar agilmente por um bastão segurado pelo imperador sem lhe tocar. É notório como consequências muito importantes estão dependentes de factores mesquinhos ou irrisórios.

  Para um estóico, esteja quase à superfície ou no fundo do mar, o peixe, no fim de contas, está sempre debaixo de água. Não é esta a lógica, porém, que move as nossas emoções: não nos é igual falharmos a combinação premiada na lotaria por uma grande distância ou por apenas um número. Como explica Hazlitt, a proximidade do sucesso parece evidenciar a facilidade com que o poderíamos ter obtido. E essa facilidade dá cor à ausência de razão para termos falhado – escondendo, por outro lado, a igual ausência de razão para o sucesso. Na falta de um motivo que confira sentido ao fracasso – quando o sucesso estava tão perto e era tão fácil – supomos mesmo que combatemos contra forças desonestas: “We believe that there is a fatality about our affairs. It is evidently done on purpose to plague us. A demon is at our elbow to torment and defeat us in everything, even in the smallest things. We see him sitting and mocking us, and we rave and gnash our teeth at him in return”.
  Hazlitt destaca, em contraposição, a calma e serenidade com que muitas vezes encaramos as verdadeiras tragédias. A tragédia atinge-nos com uma aura de fatalidade que nos ultrapassa, que nos envolve no plano superior dos acontecimentos, no qual surgimos como peões impotentes. A lógica da necessidade – a realidade de que fomos atingidos sem que pudéssemos tê-lo evitado –, ao ditar que tudo acontecerá independentemente dos nossos esforços, deixa-nos um ponto de vista a partir do qual podemos observar o que nos acontece com serenidade: “The magnitude of the events in which we may happen to be concerned fills the mind, and carries it out of itself, as it were, into the page of history. Our thoughts are expanded with the scene on which we have to act, and lend us strength to disregard our own personal share in it. Some men are indifferent to the stroke of fate, as before and after earthquakes there is a calm in the air. From the commanding situation whence they have been accustomed to view things, they look down at themselves as only a part of the whole, and can abstract their minds from the pressure of misfortune, by the aid of its very violence. They are projected, in the explosion of events, into a different sphere, far from their former thoughts, purposes, and passions. The greatness of the change anticipates the slow effects of time and reflection:—they at once contemplate themselves from an immense distance, and look up with speculative wonder at the height on which they stood.
  Se, pelo contrário, a cruel Fortuna não nos atinge com o toque da tragédia, se não mostra o rosto da verdadeira fatalidade e se nos parece que poderíamos ter agido de outro modo e assim evitado a situação, aquela elevação não é possível: ficamos agarrados ao chão, prisioneiros das nossas frustrações.

  Isto pode ajudar-nos a perceber por que motivo os lilliputianos hostilizam Gulliver, mesmo depois de este lhes ganhar definitivamente a guerra contra Blefuscu. Com efeito, Gulliver nega-se, logo de seguida, a ser o instrumento de conquista deste país, por entender que, vencido o inimigo, não há motivo para o escravizar. Esta recusa provoca, porém, a fúria do imperador de Lilliput e dos seus ministros: “This open bold declaration of mine was so opposite to the schemes and politics of his Imperial Majesty, that he could never forgive me”.
  O que sucede aqui começa por ser precisamente a transformação de uma fatalidade numa inconveniência. O combate com Blefuscu tinha os contornos épicos da tragédia. Os milhares de mortes e a destruição dos navios transportavam o imperador e os seus participantes a um ponto em que eram obrigados a perceber a pequenez da sua posição no contexto geral do conflito. Gulliver, no entanto, resolveu o conflito sozinho, sem sequer ser ferido. Com isso, transformou uma guerra sangrenta numa brincadeira, num problema cuja resolução requer apenas um pouco de engenho e esforço. E é precisamente assim que os lilliputianos passam a ver a situação. Por isso, a frustração do imperador aparece-nos agora mais natural: a sua cólera é a de quem percebe que lhe é negado um capricho tão evidentemente fácil de atingir, sem uma razão convincente para essa negação. Como se a facilidade de um acto fosse argumento para o realizar, como se a ausência de razão para satisfazer o capricho não fosse aqui ainda mais evidente do que a ausência de razão para o ver negado.
  Aparece também assim eivada de ironia a sugestão dos ministros para resolver o problema do insubordinado Gulliver: a de o cegarem. Com efeito, caso tal plano fosse concretizado, Gulliver passaria a ser o instrumento cego da corte de Lillliput. Ora, é só da perspectiva de Gulliver que o combate entre aquelas nações pode parecer uma brincadeira, visto que só ele pôde terminá-lo como o fez. E, no entanto, ele não a trata como uma questão pequena; pelo contrário, é precisamente a consciência da dimensão significativa do conflito que o leva a contrariar o imperador. Já os lilliputianos, diferentemente, não têm essa consciência, e tratam a questão como se tudo aquilo fosse uma brincadeira do seu ponto de vista. Por outras palavras: o conflito é uma questão pequena (fácil de resolver) para o gigante Gulliver, mas enorme (épica) para os pequenos lilliputianos. São estes, no entanto, que usam olhos de gigante, pois são eles quem quer tratar o assunto com a leveza de quem brinca com soldados de chumbo. E é Gulliver quem vê a questão com os olhos minúsculos da humildade de se saber mais pequeno que a morte, a liberdade e a tolerância. Pelo que a sentença dos lilliputianos apenas visava, no fundo, adequar a realidade ao modo (des)figurado como já a viviam: queriam ser eles mesmos os olhos do gigante, porque era já desse modo que viam o mundo.
  O caso dos lilliputianos sugere assim uma curiosa inversão do diagnóstico de Hazlitt: o seu problema não é tanto o de não conseguirem adaptar o padrão das coisas grandes para as coisas pequenas; é antes o de não conseguirem adaptar o padrão das coisas pequenas de modo a adequá-lo às coisas grandes.

  Um outro momento da obra sugere-nos, todavia, que o próprio Gulliver pode sofrer do mesmo mal. Comentando a visão dos lilliputianos, Gulliver nota que eles vêem muito bem, mas só de perto (“they see with great exactness, but at no great distance”). É claro que Gulliver só se admira com a moça lilliputiana que cose "seda invisível" com uma "agulha invisível", por exemplo, porque falha em adaptar o seu padrão de medida às coisas do mundo de Lilliput: a agulha só é invisível porque ele a procura com olhos de gigante. E isto sugere-nos uma questão intrigante: o problema do lado pelo qual se deve partir o ovo parece-nos um aspecto de somenos, que nunca poderia desencadear as consequências bélicas que assumiu entre os lilliputianos e os blefuscudianos. Mas não se deverá isso a que estamos a olhar a questão colocando olhos de gigante? Porque se a agulha da moça é invisível aos olhos de Gulliver, a jovem, por seu lado, certamente vê-a muito bem e tira dela proveito. Uma coisa tão pequena como a questão do ovo pode afinal ter outra relevância, que só poderíamos perceber olhando-a pelos olhos de alguém daqueles povos.
  Mais tarde, é definitivamente Gulliver quem falha em adaptar o seu padrão de medida quando, entre os gigantes de Brobdingnag, julga poder colocar as leis e costumes do seu país ao nível da realeza local, sucedendo apenas em provocar o riso e o escárnio desta. Só que isto é uma mera confirmação do que vimos já sugerido na primeira das suas viagens. Assim, embora seja em Brobdingnag que Gulliver é um ser minúsculo entre gigantes, é afinal em Lilliput que ele primeiro se revela verdadeiramente lilliputiano.

  Poderíamos pensar, enfim, que o próprio Swift poderá sofrer do mal que vimos referindo. A discussão ridícula sobre o ovo, como é sabido, é uma imagem da cisão entre católicos e protestantes no seu país natal. Ou seja, parece que Swift não percebe a seriedade da disputa que satiriza, tratando-a como coisa pequena. Mas por aí poderemos talvez encontrar a lição final que o Gulliver de Swift nos ensina: independentemente das consequências, qualquer disputa, aos olhos de um gigante, será sempre ridícula. Mesmo aquilo – ou sobretudo aquilo – que queremos tornar maior que nós. Por outras palavras, a lição simples a que chegamos é a de que nunca pessoas minúsculas poderão verdadeiramente erguer torres gigantes.

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A solidão das estátuas

  Popper disse de Sócrates que ele "era livre porque o seu espírito não podia ser subjugado; era livre porque sabia que não lhe podiam fazer mal algum" (Sokrates war frei, weil sein Geist nicht unterjocht werden konnte; er war frei, weil er wußte, daß man ihm nichts anhaben konnte: "Kant und Sokrates", in Auf der Suche einer besseren Welt).
  Apesar de condenado, apesar de morrer envenenado, Sócrates é indestrutível, porque é livre. Ele próprio deixa-se matar e recusa fugir, porque sabe que não o poderão destruir. Mas a sua liberdade está precisamente em sabê-lo. Se não lhe podiam fazer mal algum, é porque ele sabia isso mesmo. Sócrates não se resumia ao seu corpo, aos seus desejos ou às suas dores. Tudo isso era algo que lhe acontecia, mas não algo que o definisse. Por isso os estóicos o tomaram como modelo (muito embora não tenham sido os únicos).

  É o despertar de uma consciência próxima desta que tem lugar no livro The Awakening, de Kate Chopin. Edna Pontellier, a protagonista, acorda lentamente, depois de muito tempo adormecida nas personagens de mãe e mulher casada. Por contraposição, a sua amiga Adèle Ratignolle, por exemplo, é uma mulher que se resume aos papéis que desempenha. Não é senão a mulher do seu marido, não é senão a mãe dos seus filhos. Da devoção que dirige à sua família não sobra nada que seja só ela, sem relação com qualquer outra pessoa. Pelo contrário, mesmo no trato com amigos e conhecidos ela limita-se a projectar os seus papéis. Por isto, ela não pode compreender Edna quando esta lhe diz que poderia sacrificar tudo o que tem pelos filhos – incluindo a vida –, mas nunca poderia sacrificar-se a si mesma:

  “'I would give up the unessential; I would give my money, I would give my life for my children; but I wouldn’t give myself.' (...)
  “'I don’t know what you would call the essential, or what you mean by the unessential,” said Madame Ratignolle, cheerfully; “but a woman who would give her life for her children could do no more than that—your Bible tells you so. I’m sure I couldn’t do more than that.'
  “'Oh, yes you could!' laughed Edna."

  Edna poderia perfeitamente morrer pelos seus filhos sem se sacrificar a si mesma. Adèle não o poderia fazer, por uma razão: por não saber que poderia, de facto, fazê-lo. Tal como Sócrates pôde deixar-se matar porque sabia que nunca lhe poderiam fazer mal. E só o facto de o saber torna isso verdade.
  No caso de Sócrates (tal como no de Kant, aceitando o paralelismo que Popper estabelece entre ambos), esta consciência que me torna mais forte que o meu corpo e a minha vida é uma consciência ética. É precisamente pela minha assunção de um sentido de valor que eu me ligo a algo que vale sem condições ou limites. É na consciência de que estou certo que me torno infinito e, portanto, imortal.
  O caso de Edna apresenta, por assim dizer, uma outra pureza. A consciência pela qual ela deixa de estar sujeita a limitações não é ética, mas uma pura consciência de liberdade. É por essa consciência que ela se liberta das suas personagens de casada e de mãe. Quando se observa a si mesma nesses papéis, Edna reconhece-se, mas não se identifica. São isso mesmo: papéis que ela assume, mas que não a resumem, não são o que ela é. E assim Edna liberta-se.
  Mesmo o seu amor por Robert é, de certo modo, coerente com este modo de estar. Quando a senhora Reisz lhe pergunta porque ama Robert, ela responde: 

  “Why? Because his hair is brown and grows away from his temples; because he opens and shuts his eyes, and his nose is a little out of drawing; because he has two lips and a square chin, and a little finger which he can’t straighten from having played baseball too energetically in his youth. Because...”
  “Because you do, in short,” laughed Mademoiselle.

  Todas as razões que Edna dá para amar Robert são muito obviamente não-razões. São razões que existem apenas para dar corpo à verdadeira razão que nelas mora. Edna ama Robert pelo que ele é; não porque ele seja concretamente de um certo modo, mas porque o é, por sê-lo. Ama, portanto, não o que ele é, mas sim o que ele é. Ama-o porque o ama, um amor sem razões, um amor que só se justifica com razões que não são razões, porque todas elas só podem referir coisas que existem em Robert sem o resumirem, sem o definirem, sem que delas possamos dizer "Robert é isto e nada mais".

  A liberdade, por vezes, dá a Edna tonturas e surge uma ou outra hesitação pelo caminho. Mas a sua vitória é a de aceitar a sua liberdade. É isso a autonomia. É isso a independência. Ambas só se ganham com a coragem de aceitarmos a liberdade de não sermos aquilo que os outros vêem em nós.
  O caminho de Edna é o de rebeldia. Mas é um caminho cujo sentido é aparente apenas ao início: tem o sentido de comprovar, de algum modo, a liberdade que Edna acaba de descobrir. Inevitavelmente, porém, acaba por se tornar evidente que esse é um caminho tão absurdo como o de se manter junto da sua família. De facto, ela poderia ter permanecido junto do marido e continuar em liberdade, apenas por se saber livre. E mesmo o seu amor por Robert é algo que um dia vai esvanecer e desaparecer, deixando-a intacta: “There was no human being whom she wanted near her except Robert; and she even realized that the day would come when he, too, and the thought of him would melt out of her existence, leaving her alone.” A sua solidão é a de uma estátua: não precisa de companhia nem apoio para se manter de pé.

  A morte de Edna – abandonando-se nua no oceano, até perder as forças – é a aceitação final da sua liberdade. A tranquilidade com que se perde no mar é a de quem sabe que aquilo que tanto a assustava – quando ainda não sabia nadar – não lhe pode, na verdade, fazer mal algum. Edna já é imortal e por isso pode finalmente morrer em paz – a única paz que lhe é possível atingir: a que encontrou dentro de si mesma.