No filme Peeping Tom (Michael Powell), Mark é um jovem que filma e mata mulheres. Os seus motivos não são explicados de forma clara, mas talvez os percebamos melhor se compararmos a sua história com a de dois personagens do livro La Lenteur (Milan Kundera): Immaculata e o seu cameraman. Immaculata é uma mulher que viaja sempre acompanhada de um homem. Este homem é o seu cameraman e esta é a única designação que ele recebe ao longo do livro.
A dada altura, Immaculata despe-se diante do cameraman. Mas, aparentemente, não se despe para ele, pois fá-lo como se ele ali não estivesse: "Ce déshabillage veut dire: ta présence ici, devant moi, n'a aucune, mais aucune importance; ta présence égalle celle d'un chien ou d'une souris. Tes regards ne mettront en mouvement aucune parcelle de mon corps. Je pourrais faire n'importe quoi devant toi, les actes les plus inconvenants, je pourrais vomir devant toi, me laver les oreilles ou le sexe, me masturber, pisser. Tu es un non-oeil, une non-oreille, une non-tête. Mon indifférence orgulleise est un manteau qui me permet de me mouvoir devant toi en toute liberté et en toute impudeur".
Este cameraman é isso mesmo: um homem-câmara; ele é o olho da câmara e não alguém por detrás desta. Por isso não tem nome: não há ninguém para ver, porque é atrás da câmara que nós vemos. É neste sentido que ele é "um não-olho, um não ouvido": ele desaparece como sujeito que vê, como alguém que espreita com os seus olhos. Por outras palavras, ele é um "não-olho" precisamente na medida em que ele é apenas um olho (e não alguém que olha). Por isso, ele pode ver tudo com total impunidade: ele não está presente. Tal como o espectador na sala de cinema não tem de fechar os olhos diante do écran. O espectador não está presente no mundo dos acontecimentos do filme. Por estar ausente, é-lhe permitido ver tudo. Do mesmo modo, a actriz do écran não está presente no mundo do espectador e, por isso, pode exibir-se diante dele. Por não haver ninguém atrás da câmara para a olhar, ela pode mostrar-se a todos os que a espreitam no écran.
Podemos assim corrigir aquela aparência de que Immaculata não se despe para o cameraman, visto que o faz como se ele ali não estivesse: ao invés, é precisamente porque o faz como se ele ali não estivesse que nós sabemos que é para ele que ela se despe. Ele é o seu espectador. O espectador de cinema esconde-se normalmente atrás da câmara para, desaparecendo, poder ver impunemente a actriz no écran. No caso de Immaculata, é ela própria que instaura um écran que esconde o seu espectador, de modo a poder despir-se impunemente diante dele.
É precisamente este espectador, este olho-que-não-vê (e que, por isso, tudo vê com impunidade) que Mark quer ser. Quer ser apenas a câmara, não o homem por detrás dela. Quer-se apagar como sujeito que espreita por detrás da câmara, desaparecer nos seus próprios olhos: ver apenas, não ser quem vê.
Em La Lenteur, o cameraman revolta-se contra a indiferença de Immaculata. Porque a ama, não aguenta a invisibilidade a que ela o quer condenar, e ataca-a para ser notado ("Elle sait qu'il l'injurie parce qu'il veut être écouté, vu, pris en considération"). Os seus ataques têm de limitar-se a insultos, porque não é capaz de se lhe impor fisicamente. E já sabemos a razão: não se deve isto simplesmente ao facto de estar apaixonado; deve-se, sobretudo, à sua posição de espectador diante de Immaculata: ele está ausente nesta relação e, por isso, a única coisa que pode projectar sobre ela é o seu olhar, o modo como a vê. Daí que apenas possa injuriá-la. Neste sentido, porque não pode ser tocada pelo espectador, a sua vítima permanece realmente "imaculada". Mas a ironia é óbvia: o olhar que espreita pode ser o mais penetrante dos ataques, aquele que vai mais fundo. E é um golpe "irreparável" o que o cameraman quer infligir com as suas injúrias: "Il ne trouve pas le courage de la gifler, de la battre, de la jeter sur le lit et de la violer, mais il ressent d'autant plus le besoin de faire quelque chose d'irréparable".
É precisamente o mais irreparável de todos os ataques aquele que Mark inflige às suas vítimas: o da morte. Só que a sua motivação é a inversa: se o cameraman ataca Immaculata porque quer ser visto, quer ser notado, Mark ataca-as porque quer desaparecer, quer que elas não o vejam. Para o cameraman, matar Immaculata não teria qualquer sentido: perderia então qualquer esperança de vir a ser notado. Já a Mark, pelo contrário, essa é mesmo a única solução que resta: eliminar o olho que o descobriu. Deste modo, cada um ocupa o lugar desejado pelo outro: Mark, no fundo, desejaria poder filmar Immaculata, desejaria desaparecer como espectador ausente diante dela, enquanto o cameraman de Immaculata desejaria amar as mulheres que Mark filma, aquelas que notam e interpelam o sujeito por detrás da câmara.
Todos ocupamos, todos os dias – mesmo que apenas por breves momentos –, esta posição de espectadores ausentes. Não apenas no cinema, mas em todas as situações em que desaparecemos (de) atrás dos nossos olhos e ninguém vê que nós vemos. É esta nossa posição, tão preciosa quanto ilícita, que Mark queria ocupar. É esse o seu pecado.
A dada altura, Immaculata despe-se diante do cameraman. Mas, aparentemente, não se despe para ele, pois fá-lo como se ele ali não estivesse: "Ce déshabillage veut dire: ta présence ici, devant moi, n'a aucune, mais aucune importance; ta présence égalle celle d'un chien ou d'une souris. Tes regards ne mettront en mouvement aucune parcelle de mon corps. Je pourrais faire n'importe quoi devant toi, les actes les plus inconvenants, je pourrais vomir devant toi, me laver les oreilles ou le sexe, me masturber, pisser. Tu es un non-oeil, une non-oreille, une non-tête. Mon indifférence orgulleise est un manteau qui me permet de me mouvoir devant toi en toute liberté et en toute impudeur".
Este cameraman é isso mesmo: um homem-câmara; ele é o olho da câmara e não alguém por detrás desta. Por isso não tem nome: não há ninguém para ver, porque é atrás da câmara que nós vemos. É neste sentido que ele é "um não-olho, um não ouvido": ele desaparece como sujeito que vê, como alguém que espreita com os seus olhos. Por outras palavras, ele é um "não-olho" precisamente na medida em que ele é apenas um olho (e não alguém que olha). Por isso, ele pode ver tudo com total impunidade: ele não está presente. Tal como o espectador na sala de cinema não tem de fechar os olhos diante do écran. O espectador não está presente no mundo dos acontecimentos do filme. Por estar ausente, é-lhe permitido ver tudo. Do mesmo modo, a actriz do écran não está presente no mundo do espectador e, por isso, pode exibir-se diante dele. Por não haver ninguém atrás da câmara para a olhar, ela pode mostrar-se a todos os que a espreitam no écran.
Podemos assim corrigir aquela aparência de que Immaculata não se despe para o cameraman, visto que o faz como se ele ali não estivesse: ao invés, é precisamente porque o faz como se ele ali não estivesse que nós sabemos que é para ele que ela se despe. Ele é o seu espectador. O espectador de cinema esconde-se normalmente atrás da câmara para, desaparecendo, poder ver impunemente a actriz no écran. No caso de Immaculata, é ela própria que instaura um écran que esconde o seu espectador, de modo a poder despir-se impunemente diante dele.
É precisamente este espectador, este olho-que-não-vê (e que, por isso, tudo vê com impunidade) que Mark quer ser. Quer ser apenas a câmara, não o homem por detrás dela. Quer-se apagar como sujeito que espreita por detrás da câmara, desaparecer nos seus próprios olhos: ver apenas, não ser quem vê.
Em La Lenteur, o cameraman revolta-se contra a indiferença de Immaculata. Porque a ama, não aguenta a invisibilidade a que ela o quer condenar, e ataca-a para ser notado ("Elle sait qu'il l'injurie parce qu'il veut être écouté, vu, pris en considération"). Os seus ataques têm de limitar-se a insultos, porque não é capaz de se lhe impor fisicamente. E já sabemos a razão: não se deve isto simplesmente ao facto de estar apaixonado; deve-se, sobretudo, à sua posição de espectador diante de Immaculata: ele está ausente nesta relação e, por isso, a única coisa que pode projectar sobre ela é o seu olhar, o modo como a vê. Daí que apenas possa injuriá-la. Neste sentido, porque não pode ser tocada pelo espectador, a sua vítima permanece realmente "imaculada". Mas a ironia é óbvia: o olhar que espreita pode ser o mais penetrante dos ataques, aquele que vai mais fundo. E é um golpe "irreparável" o que o cameraman quer infligir com as suas injúrias: "Il ne trouve pas le courage de la gifler, de la battre, de la jeter sur le lit et de la violer, mais il ressent d'autant plus le besoin de faire quelque chose d'irréparable".
É precisamente o mais irreparável de todos os ataques aquele que Mark inflige às suas vítimas: o da morte. Só que a sua motivação é a inversa: se o cameraman ataca Immaculata porque quer ser visto, quer ser notado, Mark ataca-as porque quer desaparecer, quer que elas não o vejam. Para o cameraman, matar Immaculata não teria qualquer sentido: perderia então qualquer esperança de vir a ser notado. Já a Mark, pelo contrário, essa é mesmo a única solução que resta: eliminar o olho que o descobriu. Deste modo, cada um ocupa o lugar desejado pelo outro: Mark, no fundo, desejaria poder filmar Immaculata, desejaria desaparecer como espectador ausente diante dela, enquanto o cameraman de Immaculata desejaria amar as mulheres que Mark filma, aquelas que notam e interpelam o sujeito por detrás da câmara.
Todos ocupamos, todos os dias – mesmo que apenas por breves momentos –, esta posição de espectadores ausentes. Não apenas no cinema, mas em todas as situações em que desaparecemos (de) atrás dos nossos olhos e ninguém vê que nós vemos. É esta nossa posição, tão preciosa quanto ilícita, que Mark queria ocupar. É esse o seu pecado.