E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 7 de abril de 2016

A solidão das estátuas

  Popper disse de Sócrates que ele "era livre porque o seu espírito não podia ser subjugado; era livre porque sabia que não lhe podiam fazer mal algum" (Sokrates war frei, weil sein Geist nicht unterjocht werden konnte; er war frei, weil er wußte, daß man ihm nichts anhaben konnte: "Kant und Sokrates", in Auf der Suche einer besseren Welt).
  Apesar de condenado, apesar de morrer envenenado, Sócrates é indestrutível, porque é livre. Ele próprio deixa-se matar e recusa fugir, porque sabe que não o poderão destruir. Mas a sua liberdade está precisamente em sabê-lo. Se não lhe podiam fazer mal algum, é porque ele sabia isso mesmo. Sócrates não se resumia ao seu corpo, aos seus desejos ou às suas dores. Tudo isso era algo que lhe acontecia, mas não algo que o definisse. Por isso os estóicos o tomaram como modelo (muito embora não tenham sido os únicos).

  É o despertar de uma consciência próxima desta que tem lugar no livro The Awakening, de Kate Chopin. Edna Pontellier, a protagonista, acorda lentamente, depois de muito tempo adormecida nas personagens de mãe e mulher casada. Por contraposição, a sua amiga Adèle Ratignolle, por exemplo, é uma mulher que se resume aos papéis que desempenha. Não é senão a mulher do seu marido, não é senão a mãe dos seus filhos. Da devoção que dirige à sua família não sobra nada que seja só ela, sem relação com qualquer outra pessoa. Pelo contrário, mesmo no trato com amigos e conhecidos ela limita-se a projectar os seus papéis. Por isto, ela não pode compreender Edna quando esta lhe diz que poderia sacrificar tudo o que tem pelos filhos – incluindo a vida –, mas nunca poderia sacrificar-se a si mesma:

  “'I would give up the unessential; I would give my money, I would give my life for my children; but I wouldn’t give myself.' (...)
  “'I don’t know what you would call the essential, or what you mean by the unessential,” said Madame Ratignolle, cheerfully; “but a woman who would give her life for her children could do no more than that—your Bible tells you so. I’m sure I couldn’t do more than that.'
  “'Oh, yes you could!' laughed Edna."

  Edna poderia perfeitamente morrer pelos seus filhos sem se sacrificar a si mesma. Adèle não o poderia fazer, por uma razão: por não saber que poderia, de facto, fazê-lo. Tal como Sócrates pôde deixar-se matar porque sabia que nunca lhe poderiam fazer mal. E só o facto de o saber torna isso verdade.
  No caso de Sócrates (tal como no de Kant, aceitando o paralelismo que Popper estabelece entre ambos), esta consciência que me torna mais forte que o meu corpo e a minha vida é uma consciência ética. É precisamente pela minha assunção de um sentido de valor que eu me ligo a algo que vale sem condições ou limites. É na consciência de que estou certo que me torno infinito e, portanto, imortal.
  O caso de Edna apresenta, por assim dizer, uma outra pureza. A consciência pela qual ela deixa de estar sujeita a limitações não é ética, mas uma pura consciência de liberdade. É por essa consciência que ela se liberta das suas personagens de casada e de mãe. Quando se observa a si mesma nesses papéis, Edna reconhece-se, mas não se identifica. São isso mesmo: papéis que ela assume, mas que não a resumem, não são o que ela é. E assim Edna liberta-se.
  Mesmo o seu amor por Robert é, de certo modo, coerente com este modo de estar. Quando a senhora Reisz lhe pergunta porque ama Robert, ela responde: 

  “Why? Because his hair is brown and grows away from his temples; because he opens and shuts his eyes, and his nose is a little out of drawing; because he has two lips and a square chin, and a little finger which he can’t straighten from having played baseball too energetically in his youth. Because...”
  “Because you do, in short,” laughed Mademoiselle.

  Todas as razões que Edna dá para amar Robert são muito obviamente não-razões. São razões que existem apenas para dar corpo à verdadeira razão que nelas mora. Edna ama Robert pelo que ele é; não porque ele seja concretamente de um certo modo, mas porque o é, por sê-lo. Ama, portanto, não o que ele é, mas sim o que ele é. Ama-o porque o ama, um amor sem razões, um amor que só se justifica com razões que não são razões, porque todas elas só podem referir coisas que existem em Robert sem o resumirem, sem o definirem, sem que delas possamos dizer "Robert é isto e nada mais".

  A liberdade, por vezes, dá a Edna tonturas e surge uma ou outra hesitação pelo caminho. Mas a sua vitória é a de aceitar a sua liberdade. É isso a autonomia. É isso a independência. Ambas só se ganham com a coragem de aceitarmos a liberdade de não sermos aquilo que os outros vêem em nós.
  O caminho de Edna é o de rebeldia. Mas é um caminho cujo sentido é aparente apenas ao início: tem o sentido de comprovar, de algum modo, a liberdade que Edna acaba de descobrir. Inevitavelmente, porém, acaba por se tornar evidente que esse é um caminho tão absurdo como o de se manter junto da sua família. De facto, ela poderia ter permanecido junto do marido e continuar em liberdade, apenas por se saber livre. E mesmo o seu amor por Robert é algo que um dia vai esvanecer e desaparecer, deixando-a intacta: “There was no human being whom she wanted near her except Robert; and she even realized that the day would come when he, too, and the thought of him would melt out of her existence, leaving her alone.” A sua solidão é a de uma estátua: não precisa de companhia nem apoio para se manter de pé.

  A morte de Edna – abandonando-se nua no oceano, até perder as forças – é a aceitação final da sua liberdade. A tranquilidade com que se perde no mar é a de quem sabe que aquilo que tanto a assustava – quando ainda não sabia nadar – não lhe pode, na verdade, fazer mal algum. Edna já é imortal e por isso pode finalmente morrer em paz – a única paz que lhe é possível atingir: a que encontrou dentro de si mesma.

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