James Gillray
Durante a sua estadia em Lilliput, Gulliver toma conhecimento de uma guerra travada desde há muito entre este país e Blefuscu. A origem da discórdia é uma disputa ridícula: porque o seu filho se cortou quando partia um ovo pela parte maior (como era tradição), o imperador decretou que a partir daí os ovos fossem sempre partidos pela parte menor. Aqueles que se opunham encontraram refúgio em Blefuscu e desde então, até à chegada de Gulliver, a guerra entre as duas nações já provocou milhares de mortos (Jonathan Swift, Gulliver's Travels).
Os lilliputianos parecem sofrer do mal de que fala William Hazlitt ("On great and little things"): muitas vezes usamos o mesmo padrão de medida para tratar coisas grandes e pequenas, não atendendo a que a respectiva dimensão poderá requerer uma adaptação do lado de quem mede: “The great and the little have, no doubt, a real existence in the nature of things; but they both find pretty much the same level in the mind of man. It is a common measure, which does not always accommodate itself to the size and importance of the objects it represents.”
Para demonstrar isto, Hazlitt destaca como nos deixamos muitas vezes levar em fúrias e reacções despropositadas face a meros inconvenientes que, no cômputo geral da nossa vida, não assumem uma importância significativa. É isso que parece acontecer com os lilliputianos: uma questão aparentemente tão mesquinha – o lado "correcto" pelo qual se deve partir um ovo – é motivo para despoletar batalhas sangrentas. E também a outros níveis se parece revelar o mesmo problema: o concurso para obtenção de lugares na corte, por exemplo, passa pela realização de jogos de habilidade que envolvem dançar numa corda ou conseguir passar agilmente por um bastão segurado pelo imperador sem lhe tocar. É notório como consequências muito importantes estão dependentes de factores mesquinhos ou irrisórios.
Para um estóico, esteja quase à superfície ou no fundo do mar, o peixe, no fim de contas, está sempre debaixo de água. Não é esta a lógica, porém, que move as nossas emoções: não nos é igual falharmos a combinação premiada na lotaria por uma grande distância ou por apenas um número. Como explica Hazlitt, a proximidade do sucesso parece evidenciar a facilidade com que o poderíamos ter obtido. E essa facilidade dá cor à ausência de razão para termos falhado – escondendo, por outro lado, a igual ausência de razão para o sucesso. Na falta de um motivo que confira sentido ao fracasso – quando o sucesso estava tão perto e era tão fácil – supomos mesmo que combatemos contra forças desonestas: “We believe that there is a fatality about our affairs. It is evidently done on purpose to plague us. A demon is at our elbow to torment and defeat us in everything, even in the smallest things. We see him sitting and mocking us, and we rave and gnash our teeth at him in return”.
Hazlitt destaca, em contraposição, a calma e serenidade com que muitas vezes encaramos as verdadeiras tragédias. A tragédia atinge-nos com uma aura de fatalidade que nos ultrapassa, que nos envolve no plano superior dos acontecimentos, no qual surgimos como peões impotentes. A lógica da necessidade – a realidade de que fomos atingidos sem que pudéssemos tê-lo evitado –, ao ditar que tudo acontecerá independentemente dos nossos esforços, deixa-nos um ponto de vista a partir do qual podemos observar o que nos acontece com serenidade: “The magnitude of the events in which we may happen to be concerned fills the mind, and carries it out of itself, as it were, into the page of history. Our thoughts are expanded with the scene on which we have to act, and lend us strength to disregard our own personal share in it. Some men are indifferent to the stroke of fate, as before and after earthquakes there is a calm in the air. From the commanding situation whence they have been accustomed to view things, they look down at themselves as only a part of the whole, and can abstract their minds from the pressure of misfortune, by the aid of its very violence. They are projected, in the explosion of events, into a different sphere, far from their former thoughts, purposes, and passions. The greatness of the change anticipates the slow effects of time and reflection:—they at once contemplate themselves from an immense distance, and look up with speculative wonder at the height on which they stood.”
Se, pelo contrário, a cruel Fortuna não nos atinge com o toque da tragédia, se não mostra o rosto da verdadeira fatalidade e se nos parece que poderíamos ter agido de outro modo e assim evitado a situação, aquela elevação não é possível: ficamos agarrados ao chão, prisioneiros das nossas frustrações.
Isto pode ajudar-nos a perceber por que motivo os lilliputianos hostilizam Gulliver, mesmo depois de este lhes ganhar definitivamente a guerra contra Blefuscu. Com efeito, Gulliver nega-se, logo de seguida, a ser o instrumento de conquista deste país, por entender que, vencido o inimigo, não há motivo para o escravizar. Esta recusa provoca, porém, a fúria do imperador de Lilliput e dos seus ministros: “This open bold declaration of mine was so opposite to the schemes and politics of his Imperial Majesty, that he could never forgive me”.
O que sucede aqui começa por ser precisamente a transformação de uma fatalidade numa inconveniência. O combate com Blefuscu tinha os contornos épicos da tragédia. Os milhares de mortes e a destruição dos navios transportavam o imperador e os seus participantes a um ponto em que eram obrigados a perceber a pequenez da sua posição no contexto geral do conflito. Gulliver, no entanto, resolveu o conflito sozinho, sem sequer ser ferido. Com isso, transformou uma guerra sangrenta numa brincadeira, num problema cuja resolução requer apenas um pouco de engenho e esforço. E é precisamente assim que os lilliputianos passam a ver a situação. Por isso, a frustração do imperador aparece-nos agora mais natural: a sua cólera é a de quem percebe que lhe é negado um capricho tão evidentemente fácil de atingir, sem uma razão convincente para essa negação. Como se a facilidade de um acto fosse argumento para o realizar, como se a ausência de razão para satisfazer o capricho não fosse aqui ainda mais evidente do que a ausência de razão para o ver negado.
Aparece também assim eivada de ironia a sugestão dos ministros para resolver o problema do insubordinado Gulliver: a de o cegarem. Com efeito, caso tal plano fosse concretizado, Gulliver passaria a ser o instrumento cego da corte de Lillliput. Ora, é só da perspectiva de Gulliver que o combate entre aquelas nações pode parecer uma brincadeira, visto que só ele pôde terminá-lo como o fez. E, no entanto, ele não a trata como uma questão pequena; pelo contrário, é precisamente a consciência da dimensão significativa do conflito que o leva a contrariar o imperador. Já os lilliputianos, diferentemente, não têm essa consciência, e tratam a questão como se tudo aquilo fosse uma brincadeira do seu ponto de vista. Por outras palavras: o conflito é uma questão pequena (fácil de resolver) para o gigante Gulliver, mas enorme (épica) para os pequenos lilliputianos. São estes, no entanto, que usam olhos de gigante, pois são eles quem quer tratar o assunto com a leveza de quem brinca com soldados de chumbo. E é Gulliver quem vê a questão com os olhos minúsculos da humildade de se saber mais pequeno que a morte, a liberdade e a tolerância. Pelo que a sentença dos lilliputianos apenas visava, no fundo, adequar a realidade ao modo (des)figurado como já a viviam: queriam ser eles mesmos os olhos do gigante, porque era já desse modo que viam o mundo.
O caso dos lilliputianos sugere assim uma curiosa inversão do diagnóstico de Hazlitt: o seu problema não é tanto o de não conseguirem adaptar o padrão das coisas grandes para as coisas pequenas; é antes o de não conseguirem adaptar o padrão das coisas pequenas de modo a adequá-lo às coisas grandes.
Um outro momento da obra sugere-nos, todavia, que o próprio Gulliver pode sofrer do mesmo mal. Comentando a visão dos lilliputianos, Gulliver nota que eles vêem muito bem, mas só de perto (“they see with great exactness, but at no great distance”). É claro que Gulliver só se admira com a moça lilliputiana que cose "seda invisível" com uma "agulha invisível", por exemplo, porque falha em adaptar o seu padrão de medida às coisas do mundo de Lilliput: a agulha só é invisível porque ele a procura com olhos de gigante. E isto sugere-nos uma questão intrigante: o problema do lado pelo qual se deve partir o ovo parece-nos um aspecto de somenos, que nunca poderia desencadear as consequências bélicas que assumiu entre os lilliputianos e os blefuscudianos. Mas não se deverá isso a que estamos a olhar a questão colocando olhos de gigante? Porque se a agulha da moça é invisível aos olhos de Gulliver, a jovem, por seu lado, certamente vê-a muito bem e tira dela proveito. Uma coisa tão pequena como a questão do ovo pode afinal ter outra relevância, que só poderíamos perceber olhando-a pelos olhos de alguém daqueles povos.
Mais tarde, é definitivamente Gulliver quem falha em adaptar o seu padrão de medida quando, entre os gigantes de Brobdingnag, julga poder colocar as leis e costumes do seu país ao nível da realeza local, sucedendo apenas em provocar o riso e o escárnio desta. Só que isto é uma mera confirmação do que vimos já sugerido na primeira das suas viagens. Assim, embora seja em Brobdingnag que Gulliver é um ser minúsculo entre gigantes, é afinal em Lilliput que ele primeiro se revela verdadeiramente lilliputiano.
Poderíamos pensar, enfim, que o próprio Swift poderá sofrer do mal que vimos referindo. A discussão ridícula sobre o ovo, como é sabido, é uma imagem da cisão entre católicos e protestantes no seu país natal. Ou seja, parece que Swift não percebe a seriedade da disputa que satiriza, tratando-a como coisa pequena. Mas por aí poderemos talvez encontrar a lição final que o Gulliver de Swift nos ensina: independentemente das consequências, qualquer disputa, aos olhos de um gigante, será sempre ridícula. Mesmo aquilo – ou sobretudo aquilo – que queremos tornar maior que nós. Por outras palavras, a lição simples a que chegamos é a de que nunca pessoas minúsculas poderão verdadeiramente erguer torres gigantes.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.