E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

quinta-feira, 30 de junho de 2016

Amar com as mãos – Múcio Cévola e Ivan


Matthias Stom

  Segundo conta Tito Lívio (Ab Urbe Condita, Livro II, 12), Gaio Múcio foi um romano que se voluntariou para se infiltrar num acampamento etrusco inimigo e matar o rei Porsena. Era dia de pagamento e, por isso, muitos soldados se dirigiam ao secretário do rei, que usava um vestuário parecido ao do soberano e estava muito próximo dele. Sem possibilidade de perguntar qual deles era o rei (pois assim revelar-se-ia um estranho), Múcio arriscou, mas errou: matou o secretário e Porsena ficou vivo. Múcio foi detido e Porsena ameaçou que o lançaria às chamas, se ele não revelasse os planos dos romanos para o assassinar. Mas Múcio demonstrou ao rei que a ameaça nunca poderia ser eficaz contra ele: pôs ele mesmo a sua mão direita no fogo e aí a deixou até que o próprio Porsena, admirado, ordenou que o levassem. Por ter perdido a mão direita, passou ser conhecido por Cévola (canhoto).


  No filme Maria's Lovers (Andrei Konchalovsky), Ivan é um soldado americano regressado da II Guerra Mundial com traumas resultantes do tempo passado num campo de concentração japonês. Ivan consegue aproximar-se de Maria, uma antiga paixão, e casam-se. Mas ele é incapaz de consumar a relação, o que impede a felicidade do casal. Ivan acaba por dizer a Al, outro pretendente de Maria, que tem caminho livre para lhe ficar com a mulher, se esta o aceitar. Admirado, Al acusa-o de não a amar; Ivan olha-o e, para lhe mostrar o quanto gosta dela, põe a mão no fogão aceso e deixa-a aí a queimar até finalmente o braço lhe ser puxado à força.

  Há alguma proximidade no significado dos gestos de Múcio e Ivan? Ambos queimam uma mão, mas parecem querer mostrar coisas totalmente distintas com isso.

  Partindo de um aforismo de Nietzsche sobre a incapacidade de verdadeiramente sentirmos o outro como ele se sente a si próprio, diz Barthes que a compaixão que nutrimos pelo ser amado quando este sofre nunca será suficiente para uma identificação completa com ele – nunca será uma identificação tal que nos permita experienciar esse mesmo sofrimento como ele o experiencia. Esta identificação imperfeita, que fica aquém desse sentir o outro como ele se sente a si mesmo, deixa-me seco, estanque ("je reste sec, étanche"). E nesta separação, a leitura que faço da infelicidade do outro é afinal a de que ela existe sem mim, independentemente de mim; não sendo eu, de resto, a causa desse sofrimento, é como se eu não existisse: o sofrimento do outro anula-me (Roland Barthes, Fragments d'un Discours Amoreux).
  Esta leitura da compaixão amorosa oferece-nos uma luz com que podemos olhar o gesto de Ivan. Começamos por perguntar que causa há para esse acto, o que o provocou. A pergunta surge, porém, trazida pela resposta, que já conhecemos e queríamos ver negada: o gesto de Ivan é puramente gratuito. Nada foi sua causa, Ivan oferece a sua mão a ninguém. Todavia, ao fazê-lo, ele propõe-se demonstrar o seu afecto por Maria ("I'll show you how much I love her", diz ele antes de queimar a mão). Que significa então isso? Que Maria é afinal a causa desse gesto. Mas é uma causa pura, não inserida numa ligação entre precedente e consequente, numa qualquer conexão meramente circunstancial. Em vez disso, ela é causa numa relação que não é causal, não tem história ou sentido, e, por isso mesmo, é indestrutível. Não há nenhum caminho, nenhum percurso que conduza logicamente ao gesto de Ivan: ele é gratuito porque é um gesto sem passado, sem nenhum antecedente que o torne evidente ou expectável. Por outro lado, também nada vai ser conseguido com esta acção e, por isso, o gesto é também gratuito por não ter futuro. Mas é este desprendimento que dá o próprio sentido ao gesto: ele é sem um 'porquê' imediato porque, na verdade, há só um 'porquê' que o pode explicar, e que o explica de uma maneira que esgota o espaço para qualquer explicação causal possível: esse porquê único é Maria.
  Maria é então o objecto-causa do sofrimento de Ivan: só ela pode explicar o seu acto; mas trata-se de Maria em si, não de um qualquer gesto, palavra ou atitude da sua parte. Diz Barthes, colocando-se na posição de quem ama: "Se ele sofre sem que eu seja a causa, é porque eu não significo nada para ele: o seu sofrimento anula-me" ("s'il souffre sans que j'en sois la cause, c'est que je ne compte pas pour lui: sa souffrance m'anule"). O sofrimento de Ivan tem Maria como causa esgotante.
  O sofrimento do objecto amoroso de Barthes anula-o, porque não o tem como causa. O de Ivan, ao invés, precisamente porque nasce para Maria ser a sua causa, dá vida a esta. Assim, se o apaixonado de Barthes quer que a dor do outro nasça em si, Ivan, ao invés, faz nascer o outro a partir da sua dor.

  Múcio pôs ele mesmo a sua mão no fogo perante a ameaça de ser queimado. Avisado de que morreria se não obedecesse, respondeu com a demonstração de que não tinha problemas em abdicar do corpo.
  Séneca invoca por diversas vezes o exemplo de Gaio Múcio Cévola, como invoca noutras o de Sócrates (Cartas a Lucílio). E justifica-se de facto a parificação. Sócrates deixou-se morrer porque era livre, e era-o porque, nas palavras de Popper, "sabia que não lhe podiam fazer mal" (weil er wußte, daß man ihm nichts anhaben konnte: Karl Popper, "Kant und Sokrates"). Sócrates pôde deixar que o matassem porque sabia que não lhe podiam tocar. É isso mesmo que Múcio demonstra a Porsena: Podes queimar-me, mas não me podes tocar. Podes matar-me, mas não me podes fazer mal. Porque é capaz de abdicar de tudo o que tem, Múcio nunca poderá perder-se a si mesmo.
  O sofrimento de Ivan só tem sentido porque lhe dói. É precisamente a dor que ele sente que lhe permite mostrar o quanto gosta de Maria. É só por essa dor que ele pode mostrar que Maria é causa de algo nele. O sofrimento de Múcio também só tem sentido porque lhe dói – e, no entanto, este sentido é o inverso do primeiro. Porque aqui a dor não é verdadeiramente sofrimento para ele. É quase como se dissesse: "eu sou aquele que não sente a dor no meu corpo".
  A dor de Múcio não tem causa e assim ele diz a Porsena que este nunca poderá causar-lhe sofrimento. Só o próprio Cévola pode ser causa do que sofre.

  Maria nada fez que levasse Ivan a queimar a sua mão, e, por isso mesmo, podemos dizer que Ivan queima a mão por causa de Maria (porque a ama). Porsena ameaçou queimar Múcio Cévola e este, como resposta à ameaça, queimou a mão. Assim, Múcio queimou a mão por causa de Porsena – mas porque ninguém lhe poderia causar sofrimento senão ele mesmo.
  Ou, dito de outro modo, Múcio é como o sábio estóico: na sua dor, ele basta-se a si mesmo. O que Ivan nos ensina, porém, é que isso é a prova maior de que Múcio não pode amar. Porque, afinal, no amor, é também (ou sobretudo) para sofrer que precisamos do outro.

domingo, 12 de junho de 2016

O reflexo mentiroso - Narciso e o segredo da beleza


Gerard vanKuijl

  Diz Simone Weil em "La Pesanteur et la Grâce": "Deux prisonniers, dans des cachots voisins, qui communiquent par des coups frappés contre le mur. Le mur est ce qui les sépare, mais aussi ce qui leur permet de communiquer."
  Podemos usar esta imagem para ler a história do mito de Narciso. Narciso descobre o seu reflexo e apaixona-se. Não consegue, porém, chegar ao ser amado e a paixão fá-lo sofrer. Mas é precisamente essa separação que mantém viva a sua imagem. Porque assim que Narciso toca a água que o reflecte, a imagem fica turva e o seu amado desaparece. A destruição da linha que os divide impossibilita a sua ligação. É a barreira entre Narciso e si mesmo que permite viver a única comunicação que entre eles é possível.
  O espelho que separa Narciso do seu reflexo é que faz que este apareça. Narciso está assim ligado ao seu reflexo através daquilo que os distancia. O que os separa é o que os une, concretizando-se deste modo a sentença de Weil: "toute séparation est un lien".
  "Je voudrais que celui que j'aime m'aime. Mais s'il m'est totalement dévoué, il n'existe plus, et je cesse de l'aimer. Et tant qu'il ne m'est pas totalement dévoué, il ne m'aime pas assez." No momento em que Narciso consiga consumar o seu amor, o reflexo deixará de existir. É precisamente a impossibilidade de concretização desse amor que o mantém vivo. É porque Narciso nunca conseguirá que o seu reflexo se lhe entregue como ele mesmo se quer entregar a ele que Narciso continuará a amar o seu reflexo.
  Narciso apaixona-se pelo seu reflexo e, portanto, pela sua imagem. O que ele conhece da água da fonte é somente a superfície, porque é tudo o que pode ver. Assim, o que o atrai é a beleza. Mas a beleza exige uma dedicação amorosa de uma espécie particular:
  "Le beau est un attrait charnel qui tient à distance et implique une renonciation. Y compris la renonciation la plus intime, celle de l'imagination. On veut manger tous les autres objets de désir. Le beau est ce qu'on désire sans vouloir le manger. Nous désirons que cela soit.
  Rester immobile et s'unir à ce qu'on désire et dont on n'approche pas.
  On s'unit à Dieu ainsi: on ne peut pas s'en approcher. La distance est l'âme du beau.
  Le regard et l'attente, c'est l'attitude qui correspond au beau."
  Assim, Narciso ama o belo sem saber como fazê-lo. Aí nasce a sua tragédia. Porque ele quer conhecer a profundidade do ribeiro sem perceber que aquilo que deseja vive apenas à superfície. Narciso é belo, mas nunca foi, até aqui, um amante, e por isso não conhece o segredo profundo da beleza: o da distância.
  Como nos relata Ovídio (Metamorfoses), quando Narciso nasceu, perguntaram a Tirésias se ele teria uma vida longa. Respondeu o adivinho: "se não se conhecer a si próprio". E diz-se depois que a profecia foi confirmada. Mas de que modo?
  Conheceu Narciso a si mesmo? Aos dezasseis anos, encontrou o seu reflexo na nascente. Estendeu os braços para se abraçar e os lábios para se beijar, mas a cada tentativa a imagem esvanecia-se.
  Conhecer é para Narciso um apoderar-se da coisa. Mas ele está atraído por uma imagem, apaixonado pelo belo. E não nos apoderamos de uma imagem com as mãos, mas com os olhos. Narciso vive o drama de Eco: a ninfa da voz apaixonou-se igualmente pelo belo jovem. Respondendo aos chamamentos deste, lançou-se para o abraçar, mas Narciso repudiou-a, como repudiou todos e todas que o desejaram. Porque afinal Narciso é apenas aquilo que o espelho na água lhe mostra: uma bela imagem. Nenhum reflexo é tão verdadeiro como o de Narciso – e, por isso, tão mentiroso. Porque a verdade de um reflexo é a de um outro eu, esse outro eu que é nosso. No caso de Narciso, ao invés, o reflexo devolve não um outro nesse sentido, mas sim um totalmente similar ao seu. Ao mostrar a verdade de Narciso ao próprio, ele mente enquanto reflexo.
  Narciso é apenas uma bela imagem. Foi isso que a ninfa Eco aprendeu com dor. De tal modo que quando esta, depois de rejeitada, se afasta e esconde, mostra talvez vergonha e desilusão, mas também uma inteligência peculiar – porque ela aprendeu a guardar distância e assim mostra ter compreendido o fundamental segredo da beleza.
  Narciso, por seu lado, apaixona-se de igual modo pela bela imagem que é a sua. E a verdade mentirosa do espelho na água permite-nos concluir pela veracidade da profecia de Tirésias: mesmo sem mergulhar no ribeiro, sem conseguir abraçar-se ou apoderar-se de si mesmo, ele conhece-se a si próprio, porque, no fim de contas, nada mais havia para conhecer.
  Conhecedor de si mesmo, a verdadeira tragédia de Narciso é afinal uma de ignorância: diferentemente de Eco, que tão bem aprendeu a sua lição, Narciso nunca percebeu a distância, o segredo tão bem guardado da sua beleza.