Matthias Stom
Segundo conta Tito Lívio (Ab Urbe Condita, Livro II, 12), Gaio Múcio foi um romano que se voluntariou para se infiltrar num acampamento etrusco inimigo e matar o rei Porsena. Era dia de pagamento e, por isso, muitos soldados se dirigiam ao secretário do rei, que usava um vestuário parecido ao do soberano e estava muito próximo dele. Sem possibilidade de perguntar qual deles era o rei (pois assim revelar-se-ia um estranho), Múcio arriscou, mas errou: matou o secretário e Porsena ficou vivo. Múcio foi detido e Porsena ameaçou que o lançaria às chamas, se ele não revelasse os planos dos romanos para o assassinar. Mas Múcio demonstrou ao rei que a ameaça nunca poderia ser eficaz contra ele: pôs ele mesmo a sua mão direita no fogo e aí a deixou até que o próprio Porsena, admirado, ordenou que o levassem. Por ter perdido a mão direita, passou ser conhecido por Cévola (canhoto).
No filme Maria's Lovers (Andrei Konchalovsky), Ivan é um soldado americano regressado da II Guerra Mundial com traumas resultantes do tempo passado num campo de concentração japonês. Ivan consegue aproximar-se de Maria, uma antiga paixão, e casam-se. Mas ele é incapaz de consumar a relação, o que impede a felicidade do casal. Ivan acaba por dizer a Al, outro pretendente de Maria, que tem caminho livre para lhe ficar com a mulher, se esta o aceitar. Admirado, Al acusa-o de não a amar; Ivan olha-o e, para lhe mostrar o quanto gosta dela, põe a mão no fogão aceso e deixa-a aí a queimar até finalmente o braço lhe ser puxado à força.
Há alguma proximidade no significado dos gestos de Múcio e Ivan? Ambos queimam uma mão, mas parecem querer mostrar coisas totalmente distintas com isso.
Partindo de um aforismo de Nietzsche sobre a incapacidade de verdadeiramente sentirmos o outro como ele se sente a si próprio, diz Barthes que a compaixão que nutrimos pelo ser amado quando este sofre nunca será suficiente para uma identificação completa com ele – nunca será uma identificação tal que nos permita experienciar esse mesmo sofrimento como ele o experiencia. Esta identificação imperfeita, que fica aquém desse sentir o outro como ele se sente a si mesmo, deixa-me seco, estanque ("je reste sec, étanche"). E nesta separação, a leitura que faço da infelicidade do outro é afinal a de que ela existe sem mim, independentemente de mim; não sendo eu, de resto, a causa desse sofrimento, é como se eu não existisse: o sofrimento do outro anula-me (Roland Barthes, Fragments d'un Discours Amoreux).
Esta leitura da compaixão amorosa oferece-nos uma luz com que podemos olhar o gesto de Ivan. Começamos por perguntar que causa há para esse acto, o que o provocou. A pergunta surge, porém, trazida pela resposta, que já conhecemos e queríamos ver negada: o gesto de Ivan é puramente gratuito. Nada foi sua causa, Ivan oferece a sua mão a ninguém. Todavia, ao fazê-lo, ele propõe-se demonstrar o seu afecto por Maria ("I'll show you how much I love her", diz ele antes de queimar a mão). Que significa então isso? Que Maria é afinal a causa desse gesto. Mas é uma causa pura, não inserida numa ligação entre precedente e consequente, numa qualquer conexão meramente circunstancial. Em vez disso, ela é causa numa relação que não é causal, não tem história ou sentido, e, por isso mesmo, é indestrutível. Não há nenhum caminho, nenhum percurso que conduza logicamente ao gesto de Ivan: ele é gratuito porque é um gesto sem passado, sem nenhum antecedente que o torne evidente ou expectável. Por outro lado, também nada vai ser conseguido com esta acção e, por isso, o gesto é também gratuito por não ter futuro. Mas é este desprendimento que dá o próprio sentido ao gesto: ele é sem um 'porquê' imediato porque, na verdade, há só um 'porquê' que o pode explicar, e que o explica de uma maneira que esgota o espaço para qualquer explicação causal possível: esse porquê único é Maria.
Maria é então o objecto-causa do sofrimento de Ivan: só ela pode explicar o seu acto; mas trata-se de Maria em si, não de um qualquer gesto, palavra ou atitude da sua parte. Diz Barthes, colocando-se na posição de quem ama: "Se ele sofre sem que eu seja a causa, é porque eu não significo nada para ele: o seu sofrimento anula-me" ("s'il souffre sans que j'en sois la cause, c'est que je ne compte pas pour lui: sa souffrance m'anule"). O sofrimento de Ivan tem Maria como causa esgotante.
O sofrimento do objecto amoroso de Barthes anula-o, porque não o tem como causa. O de Ivan, ao invés, precisamente porque nasce para Maria ser a sua causa, dá vida a esta. Assim, se o apaixonado de Barthes quer que a dor do outro nasça em si, Ivan, ao invés, faz nascer o outro a partir da sua dor.
Múcio pôs ele mesmo a sua mão no fogo perante a ameaça de ser queimado. Avisado de que morreria se não obedecesse, respondeu com a demonstração de que não tinha problemas em abdicar do corpo.
Séneca invoca por diversas vezes o exemplo de Gaio Múcio Cévola, como invoca noutras o de Sócrates (Cartas a Lucílio). E justifica-se de facto a parificação. Sócrates deixou-se morrer porque era livre, e era-o porque, nas palavras de Popper, "sabia que não lhe podiam fazer mal" (weil er wußte, daß man ihm nichts anhaben konnte: Karl Popper, "Kant und Sokrates"). Sócrates pôde deixar que o matassem porque sabia que não lhe podiam tocar. É isso mesmo que Múcio demonstra a Porsena: Podes queimar-me, mas não me podes tocar. Podes matar-me, mas não me podes fazer mal. Porque é capaz de abdicar de tudo o que tem, Múcio nunca poderá perder-se a si mesmo.
O sofrimento de Ivan só tem sentido porque lhe dói. É precisamente a dor que ele sente que lhe permite mostrar o quanto gosta de Maria. É só por essa dor que ele pode mostrar que Maria é causa de algo nele. O sofrimento de Múcio também só tem sentido porque lhe dói – e, no entanto, este sentido é o inverso do primeiro. Porque aqui a dor não é verdadeiramente sofrimento para ele. É quase como se dissesse: "eu sou aquele que não sente a dor no meu corpo".
A dor de Múcio não tem causa e assim ele diz a Porsena que este nunca poderá causar-lhe sofrimento. Só o próprio Cévola pode ser causa do que sofre.
Maria nada fez que levasse Ivan a queimar a sua mão, e, por isso mesmo, podemos dizer que Ivan queima a mão por causa de Maria (porque a ama). Porsena ameaçou queimar Múcio Cévola e este, como resposta à ameaça, queimou a mão. Assim, Múcio queimou a mão por causa de Porsena – mas porque ninguém lhe poderia causar sofrimento senão ele mesmo.
Ou, dito de outro modo, Múcio é como o sábio estóico: na sua dor, ele basta-se a si mesmo. O que Ivan nos ensina, porém, é que isso é a prova maior de que Múcio não pode amar. Porque, afinal, no amor, é também (ou sobretudo) para sofrer que precisamos do outro.
Partindo de um aforismo de Nietzsche sobre a incapacidade de verdadeiramente sentirmos o outro como ele se sente a si próprio, diz Barthes que a compaixão que nutrimos pelo ser amado quando este sofre nunca será suficiente para uma identificação completa com ele – nunca será uma identificação tal que nos permita experienciar esse mesmo sofrimento como ele o experiencia. Esta identificação imperfeita, que fica aquém desse sentir o outro como ele se sente a si mesmo, deixa-me seco, estanque ("je reste sec, étanche"). E nesta separação, a leitura que faço da infelicidade do outro é afinal a de que ela existe sem mim, independentemente de mim; não sendo eu, de resto, a causa desse sofrimento, é como se eu não existisse: o sofrimento do outro anula-me (Roland Barthes, Fragments d'un Discours Amoreux).
Esta leitura da compaixão amorosa oferece-nos uma luz com que podemos olhar o gesto de Ivan. Começamos por perguntar que causa há para esse acto, o que o provocou. A pergunta surge, porém, trazida pela resposta, que já conhecemos e queríamos ver negada: o gesto de Ivan é puramente gratuito. Nada foi sua causa, Ivan oferece a sua mão a ninguém. Todavia, ao fazê-lo, ele propõe-se demonstrar o seu afecto por Maria ("I'll show you how much I love her", diz ele antes de queimar a mão). Que significa então isso? Que Maria é afinal a causa desse gesto. Mas é uma causa pura, não inserida numa ligação entre precedente e consequente, numa qualquer conexão meramente circunstancial. Em vez disso, ela é causa numa relação que não é causal, não tem história ou sentido, e, por isso mesmo, é indestrutível. Não há nenhum caminho, nenhum percurso que conduza logicamente ao gesto de Ivan: ele é gratuito porque é um gesto sem passado, sem nenhum antecedente que o torne evidente ou expectável. Por outro lado, também nada vai ser conseguido com esta acção e, por isso, o gesto é também gratuito por não ter futuro. Mas é este desprendimento que dá o próprio sentido ao gesto: ele é sem um 'porquê' imediato porque, na verdade, há só um 'porquê' que o pode explicar, e que o explica de uma maneira que esgota o espaço para qualquer explicação causal possível: esse porquê único é Maria.
Maria é então o objecto-causa do sofrimento de Ivan: só ela pode explicar o seu acto; mas trata-se de Maria em si, não de um qualquer gesto, palavra ou atitude da sua parte. Diz Barthes, colocando-se na posição de quem ama: "Se ele sofre sem que eu seja a causa, é porque eu não significo nada para ele: o seu sofrimento anula-me" ("s'il souffre sans que j'en sois la cause, c'est que je ne compte pas pour lui: sa souffrance m'anule"). O sofrimento de Ivan tem Maria como causa esgotante.
O sofrimento do objecto amoroso de Barthes anula-o, porque não o tem como causa. O de Ivan, ao invés, precisamente porque nasce para Maria ser a sua causa, dá vida a esta. Assim, se o apaixonado de Barthes quer que a dor do outro nasça em si, Ivan, ao invés, faz nascer o outro a partir da sua dor.
Múcio pôs ele mesmo a sua mão no fogo perante a ameaça de ser queimado. Avisado de que morreria se não obedecesse, respondeu com a demonstração de que não tinha problemas em abdicar do corpo.
Séneca invoca por diversas vezes o exemplo de Gaio Múcio Cévola, como invoca noutras o de Sócrates (Cartas a Lucílio). E justifica-se de facto a parificação. Sócrates deixou-se morrer porque era livre, e era-o porque, nas palavras de Popper, "sabia que não lhe podiam fazer mal" (weil er wußte, daß man ihm nichts anhaben konnte: Karl Popper, "Kant und Sokrates"). Sócrates pôde deixar que o matassem porque sabia que não lhe podiam tocar. É isso mesmo que Múcio demonstra a Porsena: Podes queimar-me, mas não me podes tocar. Podes matar-me, mas não me podes fazer mal. Porque é capaz de abdicar de tudo o que tem, Múcio nunca poderá perder-se a si mesmo.
O sofrimento de Ivan só tem sentido porque lhe dói. É precisamente a dor que ele sente que lhe permite mostrar o quanto gosta de Maria. É só por essa dor que ele pode mostrar que Maria é causa de algo nele. O sofrimento de Múcio também só tem sentido porque lhe dói – e, no entanto, este sentido é o inverso do primeiro. Porque aqui a dor não é verdadeiramente sofrimento para ele. É quase como se dissesse: "eu sou aquele que não sente a dor no meu corpo".
A dor de Múcio não tem causa e assim ele diz a Porsena que este nunca poderá causar-lhe sofrimento. Só o próprio Cévola pode ser causa do que sofre.
Maria nada fez que levasse Ivan a queimar a sua mão, e, por isso mesmo, podemos dizer que Ivan queima a mão por causa de Maria (porque a ama). Porsena ameaçou queimar Múcio Cévola e este, como resposta à ameaça, queimou a mão. Assim, Múcio queimou a mão por causa de Porsena – mas porque ninguém lhe poderia causar sofrimento senão ele mesmo.
Ou, dito de outro modo, Múcio é como o sábio estóico: na sua dor, ele basta-se a si mesmo. O que Ivan nos ensina, porém, é que isso é a prova maior de que Múcio não pode amar. Porque, afinal, no amor, é também (ou sobretudo) para sofrer que precisamos do outro.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.