E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

O espelho escondido - Branca-de-Neve e o amor


  No episódio "Fruit of the poisonous tree" (Bryan Spicer), da série Once Upon a Time, o génio, apaixonado pela Rainha Má, encontra-se com a lâmpada mágica na mão e um desejo à disposição. Formula então o pedido de estar sempre com a sua amada, poder vê-la em todos os momentos ("I wish to be with you forever, to look upon your face always, to never leave your side"), e acaba por se tornar no espelho da Rainha.
  No livro La Lenteur, de Milan Kundera, há um sujeito cuja posição parece corresponder à do génio transformado em espelho. Immaculata é uma mulher que se despe sem qualquer pudor diante de um homem (sempre identificado como cameraman) e com uma total indiferença por este. Ao que parece, o homem é tão insignificante como uma cadeira: ele é "um não olho, uma não-orelha, uma não-cabeça” ("un non-oeil, une non-oreille, une non-tête"). Ela consegue tirar a roupa sem vergonha porque é como se ele não a visse, como se não estivesse ali para a ver. Porque este homem a ama e existe em perpétua adoração por ela, ela parece ser tudo o que ele vê, e parece vê-la em todos os momentos – como se fora o seu espelho.

  Sartre dizia que não conseguimos ver os olhos de alguém quando olhamos essa pessoa directamente – já que então o olhar da pessoa esconde os seus olhos (L'être et le néant). O mesmo sucede com o espelho: também aí não vemos a superfície e sim o que nela está reflectido. Também o espelho, portanto, tem um olho para nós oculto quando o olhamos. Neste caso, todavia, não é o olhar do espelho que esconde o olho, pois não existe ninguém na superfície, ou atrás dela, para nos ver; é antes aquilo que o espelho vê (nós mesmos) que esconde os olhos que nos vêem. Ou seja, é o objecto – nós – e não o sujeito – que não existe – aquilo que esconde o espelho do nosso olhar.
  Immaculata despe-se diante do cameraman como a Rainha diante do seu espelho, confirmando-se assim que o espelho "é a máquina de filmar mais antiga do mundo" (Gonçalo M. Tavares, O Dicionário do Menino Andersen). Está ali apenas um olho para ver Immaculata, não há ninguém por detrás dele. Por outro lado, esse olho apenas a vê a ela. Quando olhamos um espelho, vemos o que o espelho vê, porque o espelho é apenas um olho e nada mais. Por isso, não se pode verdadeiramente dizer que Immaculata ignora o seu cameraman, que não o conhece ou não o vê. Bem pelo contrário: ela conhece-o inteiramente. Porque se só conhecemos verdadeiramente alguém quando conseguimos ver o mundo através dos seus olhos, então esta mulher conhece inteiramente o seu cameraman, já que, no fim de contas, ela é tudo o que ele vê. Assim, o facto de se ver apenas a si própria quando está diante dele significa, afinal, que ela o conhece melhor que ninguém. Porque, em suma, o cameraman é um espelho para ela. Dizer, como diz o narrador de La Lenteur, que ele é um "não olho" vem a significar que ele é apenas um olho e nada mais. Assim, se Immaculata se despe sem preconceitos diante do seu cameraman, é porque, em certa medida, ele é realmente um "não-olho", já que o seu olho está escondido. Só que uma vez que a sua posição é a de um espelho, não é o seu olhar que lhe oculta os olhos, e sim aquilo que ele olha: a própria Immaculata. No fim de contas, se esta se despe diante dele como se não o visse, é porque ela está, na verdade, a despir-se apenas diante de si mesma, pois colocou-se a si própria diante dos olhos dele.

  O génio obteve o que queria, o seu desejo foi literalmente concretizado. Já o cameraman de La Lenteur sofre por concretizar o seu: ele quer deixar aquela posição de mero espectador, pretende que Immaculata o veja, note que ele está ali. Quer aparecer.
  Na versão dos Irmãos Grimm deste conto popular, quem é a Branca-de-Neve? Ela surge para a Rainha quando esta pergunta ao espelho quem é a mais bela em todo o reino. Uma vez que a Rainha se identifica com a mulher mais bela (e, mais obviamente, uma vez que ela se põe diante de um espelho...), ela espera que o espelho lhe responda devolvendo a sua própria imagem. Ora, sucede que o espelho lhe responde identificando a Branca-de-Neve. O que isto tem de significar, e nunca tem sido notado, é que a Branca-de-Neve, afinal, é o reflexo da Rainha. Um reflexo, sem embargo, com o qual ela não se consegue identificar e que rejeita. A Rainha odeia a Branca-de-Neve na medida em que não quer identificar-se com ela. O que, dito de outro modo, significa que a Rainha luta por se separar daquilo que encontra no espelho. Tudo isto vem a resultar, a final, numa verdade relativamente simples de extrair: é o ódio da Rainha que dá vida à Branca-de-Neve, já que sem ele esta seria apenas uma imagem daquela e nada mais. Se a Branca-de-Neve existe é apenas porque a Rainha a expulsou do seu espelho.
  O que quer o cameraman de Immaculata? Poderia querer o seu amor, mas isso afinal não lhe basta, visto que ele próprio ama-a e sabe o que isso significa: ela existe como objecto para ele, mas um objecto que preenche todo o seu mundo, esgota o seu campo de visão. Ora, ele quer também aparecer diante dela, quer que ela o veja e, portanto, quer também ser um objecto para ela. Contudo, isto parece só poder ser concretizado de uma maneira: ele quer ser para Immaculata o mesmo que a Branca-de-Neve é para a Rainha.
  Já sabemos que a posição do cameraman corresponde à de um espelho diante do qual Immaculata se olha. Ora, se assim é, enquanto ela se identificar com aquilo que encontra no olhar dele, ela vai apenas ver-se a si mesma e nada mais, já que, como referimos, aquilo que o espelho olha oculta o(s olhos do) próprio espelho. Por isso, se o cameraman quer aparecer diante de Immaculata, se se quer separar do espelho em que foi condenado a viver, e, ao mesmo tempo, ser o objecto que os olhos de Immaculata encontram quando se procura a si mesma (pois assim sabe que ela sempre acabará por vir ter ao seu encontro), então ele tem de aparecer diante dela como a Branca-de-Neve diante da Rainha: tem de ser o reflexo que ela rejeita, com o qual ela não se identifica e que, portanto, odeia.
  É por querer que Immaculata venha ao seu encontro que o cameraman precisa que ela o rejeite. É porque a ama que precisa que ela o odeie.

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

"Eu estou aqui" - "Locke" (Steven Knight) e a ipseidade


  No filme Locke (Steven Knight), Ivan Locke é um capataz que, na véspera do dia em que deveria supervisionar uma obra de grandes dimensões, descobre que Bethan, uma colega com quem teve relações extra-conjugais meses antes, vai ter um filho seu. Apesar das obrigações laborais e de ser esperado em casa pela mulher e pelos filhos para ver um jogo importante na televisão, Ivan resolve ir até Londres para estar presente no momento do nascimento do filho. Ivan foi abandonado em criança pelo pai, algo que nunca lhe perdoou, mesmo quando ele voltou. Durante as horas de viagem, Locke faz e recebe vários telefonemas da sua mulher, do seu filho, de Bethan e de pessoas relacionadas com o seu trabalho e a obra do dia seguinte. Nesse período, e após explicar a situação, é despedido, a mulher expulsa-o de casa e consegue, apesar de vários contratempos, gerir todos os preparativos necessários para a obra correr bem. Tem também várias conversas imaginárias com o seu pai, como se este estivesse sentado no banco de trás, embora tenha consciência de que ele está morto. Finalmente, quando está prestes a chegar, Locke ouve pelo telefone o choro saudável da criança já nascida.

  Locke é habitualmente uma pessoa calma, organizada, perfeitamente cumpridora das suas obrigações e conforme ao que é esperado dele. Percebemo-lo pelas reacções espantadas das diversas pessoas com quem vai falando. Todas se mostram admiradas, tanto com a revelação do adultério como com a sua intenção de não estar presente no local de trabalho no dia seguinte. Estas atitudes não parecem concordantes com o carácter da pessoa que todos eles conhecem.
  Até que ponto Ivan está a mudar o seu modo de ser, a tornar-se (ou a mostrar ser) uma outra pessoa?

  Identifica-se a pessoa com o seu carácter? Segundo Ricoeur (Soi-même comme un autre), o carácter surge como corpo da nossa identidade na medida em que é um modelo de permanência no tempo ("permanence dans le temps") do sujeito. Num sentido possível da identidade – o da mesmidade ("mêmeté") –, a continuidade ininterrompida ("continuité ininterrompue") de algo aparece como um critério decisivo para aferirmos se esse algo é ainda o mesmo, por comparação com a situação inicial; a resposta positiva permitir-nos-á afirmar a identidade com base na permanência no tempo desse algo.
  O carácter é precisamente o conjunto dos traços distintivos que permitem identificar um indivíduo humano como o mesmo ("l'ensemble des marques distinctives, que permettent de réidentifier un individu humain comme étant le même"). É o conjunto das disposições duradouras pelas quais reconhecemos alguém ("l'ensemble des dispositions durables à quoi on reconnaît une personne"). Estas disposições duradouras que formam o carácter nascem dos hábitos que constroem a história deste (e isso faz-se através de uma sedimentação que tende a fazer esquecer a inovação que a precedeu). Cada hábito tornado uma disposição duradoura passa a ser um traço distintivo que, juntamente com as restantes disposições, formam o carácter da pessoa e permitem identificá-la. Além dos hábitos, a estas disposições podemos ligar também as identificações adquiridas ("identifications acquises") com valores, normas, ideais, etc., nos quais a pessoa se reconhece e que, assim, introduzem um elemento de alteridade que faz também parte da  sua identidade (e aqui, tal como com os hábitos, há um processo de interiorização que vem a apagar aquela alteridade inicial). A estabilidade destes hábitos e identificações adquiridas asseguram a mesmidade da pessoa, garantindo-lhe a permanência no tempo e permitindo identificá-la como a mesma. O carácter é portanto o "quê" que responde à pergunta "quem é aquela pessoa?", ou seja, é o quê do quem ("Le caractère, c'est véritablement le 'quoi' du 'qui'").
  O modo como se constroem as disposições duradouras que formam o carácter (os referidos processos de sedimentação e interiorização) indiciam já, porém, que a consideração do carácter propriamente dito pode não ser suficiente para esgotar a problemática da identidade. Quando a identificação com certos heróis ou valores, por exemplo, resulta na interiorização daquilo que se vem a tornar uma nova disposição duradoura, é preciso notar que, no início deste processo, há um elemento externo ao sujeito, que aparece de fora. Este "trazer" de algo vindo de fora para dentro tem de ser obra de um "si" que não é identificável com o carácter. Este trabalho tem de ser realizado por um agente na forma de uma identidade que, escondendo-se sob a permanência do mesmo no tempo, começa a surgir a cada nova "interiorização". Por aqui, em suma, começa a ficar sugerida a distinção entre a identidade reconduzível a uma problemática de mesmidade (identidade-idem) e aquela que podemos associar à ipseidade (identidade-ipse).
  A ipseidade é um outro modelo de permanência no tempo, distinguível do carácter. No carácter, tende a ficar a oculta a ipseidade pela mesmidade. Ricoeur identifica um caso, porém, em que o afastamento entre ambas é claro: aquele em que o sujeito mantém a palavra dada. Esta situação é uma tal em que a permanência no tempo é uma do si, já não do mesmo. Por isso, à pergunta pela identidade da pessoa, responde-se aqui com o "quem" e já não com o "quê". Porque nesta situação a identidade do si separa-se da mesmidade do carácter. Manter a palavra dada implica uma constância de si ("un mantien de soi") que, ao contrário do carácter, já não se deixa inscrever na categoria das coisas em geral, mas apenas na do "quem". E por isso se distingue a fidelidade à palavra dada da perseveração do carácter, a continuação do carácter da constância na amizade, etc. Manter a promessa pode mesmo então ser visto como um desafio ao tempo ("un défi au temps"): ainda que os meus desejos ou opiniões mudem, permanecerei fiel à minha palavra.
  Segundo Ricoeur, o "propósito ético" do "si" resume-se na busca de uma "vida boa", com e para outrem, em instituições justas ("Appelons 'visée éthique' la visée de 'vie bonne' avec et pour atrui dans des institutions justes").
  À segunda componente deste projecto ("com e para outrem") chama Ricoeur solicitude. Na primeira componente (busca de uma "vida boa"), analisada isoladamente, o aspecto reflexivo que aí se destaca pode ser designado por estima de si. Esta reflexividade parece ameaçar um fechamento do "si" sobre si mesmo. Todavia, segundo Ricoeur, a solicitude não se vem juntar, vinda de fora, à primeira componente, como se lhe fosse exterior, antes resulta do desdobramento dialogal da própria estima de si. Há uma tal continuidade entre estima de si e solicitude que elas não se podem pensar uma sem a outra ("l'estime de soi et la solicitude ne puissent se vivre et se penser l'une sans l'autre"). E isto explica-se na medida em que, em primeiro lugar, a reflexividade do "si", embora desligada do fechamento do "eu" ("Dire soi n'est pas dire moi"), ignora de qualquer modo (ou talvez por isso mesmo) a diferença entre "eu" e "tu". Em segundo lugar, a estima de si constrói-se por referência às capacidades do sujeito: o sujeito é o ser que pode avaliar as suas acções e os respectivos fins, e, por aí, avaliar-se a si mesmo, julgar-se bom; mas, segundo Ricoeur, a mediação do outro é necessária no trajecto que nos leva da capacidade à efectuação.

  Que leitura nos permite tudo isto fazer do percurso de Locke? O seu caminho oferece uma boa ilustração da identidade narrativa: aquela que medeia a dialéctica entre os pólos da mesmidade e da ipseidade.
  A família e colegas de Ivan ficam surpreendidos com as suas decisões. Todos eles conhecem o seu carácter e estas atitudes não parecem concordantes com a imagem que formaram dele. A sua surpresa, todavia, parece mostrar que eles consideram apenas o carácter de Locke, resumindo a isso a sua identidade. Como se a resposta à pergunta sobre a identidade devesse ser encontrada apenas no plano do quê, e não tanto do quem. Mas esta é uma noite em que a demarcação entre a mesmidade e a ipseidade, em Ivan, é clara.
  A decisão de Ivan baseia-se na assunção de um compromisso perante Bethan – e o seu filho. Apesar de todos impedimentos e inconveniências – a mulher, os filhos, o trabalho, os compromissos assumidos com outras pessoas –, ele garante que estará presente no parto. É muito clara aqui a ilustração da "constância de si" a que Locke se propõe. Por isso, a sua decisão só pode ser explicada como um gesto seu (um gesto que lhe pode ser imputado e no qual o podemos reconhecer) na medida em que o consideremos sob a perspectiva da ipseidade. É por desconsiderar esta dimensão e atender apenas ao carácter de Locke que a sua mulher já não o reconhece.
  A atitude de Ivan envolve então uma certa ruptura relativamente ao que já se havia sedimentado no seu carácter. Esta ruptura surge pelo aparecimento do outro perante o qual ele está obrigado por uma promessa. Com efeito, a constância de si, característica da ipseidade, traduz-se num modo de comportamento tal que alguém pode contar com o agente. Este é então responsável perante quem deve poder contar com ele. Ao outro, que pergunta "onde estás?", o agente responde "estou aqui" (a noção da constância de si é por isso eminentemente ética). O gesto de Ivan para com Bethan conjuga então as duas dimensões (literal e simbólica) do significado do cumprimento da promessa como ilustração da ipseidade: na promessa eu torno-me responsável perante o outro que conta comigo. É isto que, efectivamente, Locke diz a Bethan: quando ela lhe pergunta onde está, ele responde algo como: "não te preocupes, porque eu estou (estarei) presente". 

  A ipseidade não representa para Ivan, todavia, um salto no vazio, como se ele se tivesse simplesmente desligado do seu carácter e, qual homem sem qualidades, se condenasse a si mesmo à deriva de um renovar constante de comprometimentos sem qualquer fixação ou ancoragem. Entra aqui em cena a noção de identidade narrativa, que cumpre um papel de mediação entre a mesmidade e a ipseidade. É por ela que podemos perceber a narrativização do carácter, uma tarefa muito importante que confere ao carácter o movimento de que ele, se atendermos apenas às identificações e disposições já sedimentadas, parece despido. Como actua este elemento narrativo na história de Locke? De um modo subtil, mas relativamente simples de entender: embora as atitudes de Ivan surjam como surpreendentes aos olhos dos seus familiares, colegas e amigos, trata-se de todo um procedimento que visa reintegrar na sua história, numa perspectiva narrativa global, aquela estranha noite de loucura em que ele foi adúltero. As acções de Locke garantem precisamente que ele continua a ser aquela pessoa que todos eles identificam como o mesmo, através do seu carácter. Porque naquela noite gerou-se uma situação que resulta agora num chamamento – por outrem – a que ele tem de responder, sob pena de se demitir de todos os valores com os quais se identificou e que constroem desde sempre a sua maneira de ser. É precisamente abandonando tudo para acompanhar aquela semi-estranha no nascimento do filho que Locke consegue garantir que está onde sempre esteve.  

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O meu inimigo no teu espelho

  No conto “The Sleep-Walkers” (Kahlil Gibran, The Madman: His Parables and Poems), duas sonâmbulas, mãe e filha, encontram-se durante a noite e insultam-se, expressando ódio e rancor uma pela outra. Mas quando o galo as desperta, saúdam-se com ternura e afecto.

  Uma leitura mais apressada poderá convencer-nos de que ambas – mãe e filha – são mentirosas ou falsas. Isto porque, durante o sono, elas mostram os sentimentos que realmente nutrem uma pela outra, aqueles sentimentos que ficam ocultados pela falsidade que as caracteriza quando acordadas. O sonambulismo, em suma, traz à superfície as emoções escondidas na vigília.
  Mesmo que esta leitura seja correcta, a história não tem de ser, porém, uma representação da hipocrisia de ambas. É muito possível que, durante o sono, elas expressem sentimentos de que não têm verdadeiramente consciência durante o dia. Sentimentos que, afinal, elas não escondem apenas dos outros, mas também de si mesmas.
  De imediato surge, todavia, a possibilidade de invertermos esta leitura. Podemos perguntar, com efeito, se o fingimento não aparecerá antes durante a noite. Pode dar-se o caso de os sentimentos que aparecem na vigília serem afinal os únicos que elas verdadeiramente nutrem uma pela outra. O ódio e o rancor surgidos durante a noite seriam então fingidos, como se o sonambulismo fosse a porta de entrada num palco onde elas representam papéis com os quais não se identificam verdadeiramente (quando acordadas). O sono seria então a oportunidade de colocar uma máscara.

  Seja como for, todas estas hipóteses parecem partilhar um elemento comum, que, por isso, daremos como aceite. Pelo menos no que respeita à projecção exterior daquilo que são (através da demonstração daquilo que sentem), parece haver duas pessoas tanto na mãe como na filha. A mãe projecta uma imagem de dia e uma outra de noite; a filha faz o mesmo. Ora, seja qual for a relação entre essas imagens, parece seguro que cada uma destas mulheres transporta sempre consigo o seu outro – neste caso, a sua outra.
  É no espelho que eu consigo encontrar o meu outro, aquele estranho que eu também sou e que me acompanha. E ele surge ali como reflexo, ou seja, com a minha imagem invertida. No conto, essa relação tem expressão nos próprios sentimentos demonstrados pelas mulheres, que, de noite, são exactamente o inverso daqueles mostrados durante o dia. A mãe sonâmbula, no fundo, é a outra da mãe que, durante o dia, trata a filha com carinho. O mesmo vale para esta.
  Dada esta inversão de imagem na mãe e na filha, seríamos tentados a pensar numa oposição entre cada uma das mulheres e a respectiva outra. Se cada uma realmente ignorar o que diz durante a noite, certamente que, ao descobri-lo, terá horror e vergonha de si mesma. Ainda que não desconheça os sentimentos veiculados durante o sono (e que, portanto, reprime durante o dia), seguramente que sentirá raiva dessa máscara que se vê obrigada a colocar quando encontra a sua parente.
  Esta oposição fácil de imaginar pode esconder, porém, uma ligação intrínseca entre cada mulher e a sua outra, que pode ser interessante descortinar.
  Comecemos por atentar no que cada sonâmbula diz à outra:

  "And the mother spoke, and she said: 'At last, at last, my enemy! You by whom my youth was destroyed—who have built up your life upon the ruins of mine! Would I could kill you!'
  "And the daughter spoke, and she said: 'O hateful woman, selfish and old! Who stand between my freer self and me! Who would have my life an echo of your own faded life! Would you were dead!'"

  Podemos perceber, em primeiro lugar, que a pessoa da filha aparece como uma resposta à da mãe. Isto resulta tanto das palavras da mãe – "You (...) who have built up your life upon the ruins of mine!" – como das da filha – "O hateful woman (...) who would have my life an echo of your own faded life!". Mas também a mãe – pelo menos esta odiosa mãe sonâmbula – é uma resposta ao aparecimento da filha (já que é obviamente em função dela que o ódio da mãe se desenvolve).
  Cada uma delas é uma reacção ao aparecimento da outra. E não admira que assim seja: a outra que cada uma delas é durante a noite (em relação àquilo que são durante o dia) nasce como reflexo no espelho em que elas se vêem, como referido atrás. Ora, se assim é, é claro que essa outra é sempre uma imagem que surge diante dos olhos de um terceiro (já que o nosso reflexo no espelho mostra-nos a nossa imagem para terceiros). Assim, é natural que cada uma das sonâmbulas só surja diante (leia-se: por efeito) do olhar da parente: é precisamente esse olhar que as sustém. Não admira também então que, embora cada uma expresse o desejo de que a outra morra, nenhuma delas possa verdadeiramente concretizar esse desejo: matar quem a olha seria matar-se a si própria (pois seria fazer desaparecer o olhar que lhe dá vida).
  Não é esse o único motivo, contudo, que impede cada uma das mulheres de matar a parente. Veja-se desde logo que se as sonâmbulas rancorosas são as outras das mulheres carinhosas acordadas, uma rápida troca de perspectivas permite-nos perceber facilmente que também estas últimas são as outras das sonâmbulas. Ora, se cada sonâmbula se abstém de matar, isso não se deve apenas ao desejo de sobreviver por si só, mas também à necessidade de manter viva a sua outra (deixando viver o objecto de afecto da sua outra durante o dia). E este é um modo mais indirecto, mas não menos verdadeiro, de se manter viva a si mesma: porque só continuando viva a pessoa que a sua outra ama durante o dia, pode viver a sonâmbula odiando-a durante a noite. Mais do que isso: é precisamente o amor que mantém juntas mãe e filha durante a vigília a garantir a proximidade suficiente para as sonâmbulas se poderem odiar durante o sono. Esta é mais uma comprovação de uma verdade que já conhecemos (encontrada, por exemplo, quando lemos The Story of an Hour, de Kate Chopin): a de que é o meu outro que sustém a pessoa que eu sou.
  É precisamente esta ligação intrínseca entre cada um e o seu outro que não deve ficar esquecida em favor da oposição mais superficial que facilmente se nota entre ambos. E essa ligação, neste conto como em qualquer outro lugar, vale também no sentido inverso: também a mãe e a filha carinhosas precisam, afinal, das sonâmbulas que odeiam durante a noite. Porque, no fim de contas, foi o encontro entre as mulheres que se odiavam que permitiu às duas acordarem para se abraçarem com amor.