E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 2 de agosto de 2016

O meu inimigo no teu espelho

  No conto “The Sleep-Walkers” (Kahlil Gibran, The Madman: His Parables and Poems), duas sonâmbulas, mãe e filha, encontram-se durante a noite e insultam-se, expressando ódio e rancor uma pela outra. Mas quando o galo as desperta, saúdam-se com ternura e afecto.

  Uma leitura mais apressada poderá convencer-nos de que ambas – mãe e filha – são mentirosas ou falsas. Isto porque, durante o sono, elas mostram os sentimentos que realmente nutrem uma pela outra, aqueles sentimentos que ficam ocultados pela falsidade que as caracteriza quando acordadas. O sonambulismo, em suma, traz à superfície as emoções escondidas na vigília.
  Mesmo que esta leitura seja correcta, a história não tem de ser, porém, uma representação da hipocrisia de ambas. É muito possível que, durante o sono, elas expressem sentimentos de que não têm verdadeiramente consciência durante o dia. Sentimentos que, afinal, elas não escondem apenas dos outros, mas também de si mesmas.
  De imediato surge, todavia, a possibilidade de invertermos esta leitura. Podemos perguntar, com efeito, se o fingimento não aparecerá antes durante a noite. Pode dar-se o caso de os sentimentos que aparecem na vigília serem afinal os únicos que elas verdadeiramente nutrem uma pela outra. O ódio e o rancor surgidos durante a noite seriam então fingidos, como se o sonambulismo fosse a porta de entrada num palco onde elas representam papéis com os quais não se identificam verdadeiramente (quando acordadas). O sono seria então a oportunidade de colocar uma máscara.

  Seja como for, todas estas hipóteses parecem partilhar um elemento comum, que, por isso, daremos como aceite. Pelo menos no que respeita à projecção exterior daquilo que são (através da demonstração daquilo que sentem), parece haver duas pessoas tanto na mãe como na filha. A mãe projecta uma imagem de dia e uma outra de noite; a filha faz o mesmo. Ora, seja qual for a relação entre essas imagens, parece seguro que cada uma destas mulheres transporta sempre consigo o seu outro – neste caso, a sua outra.
  É no espelho que eu consigo encontrar o meu outro, aquele estranho que eu também sou e que me acompanha. E ele surge ali como reflexo, ou seja, com a minha imagem invertida. No conto, essa relação tem expressão nos próprios sentimentos demonstrados pelas mulheres, que, de noite, são exactamente o inverso daqueles mostrados durante o dia. A mãe sonâmbula, no fundo, é a outra da mãe que, durante o dia, trata a filha com carinho. O mesmo vale para esta.
  Dada esta inversão de imagem na mãe e na filha, seríamos tentados a pensar numa oposição entre cada uma das mulheres e a respectiva outra. Se cada uma realmente ignorar o que diz durante a noite, certamente que, ao descobri-lo, terá horror e vergonha de si mesma. Ainda que não desconheça os sentimentos veiculados durante o sono (e que, portanto, reprime durante o dia), seguramente que sentirá raiva dessa máscara que se vê obrigada a colocar quando encontra a sua parente.
  Esta oposição fácil de imaginar pode esconder, porém, uma ligação intrínseca entre cada mulher e a sua outra, que pode ser interessante descortinar.
  Comecemos por atentar no que cada sonâmbula diz à outra:

  "And the mother spoke, and she said: 'At last, at last, my enemy! You by whom my youth was destroyed—who have built up your life upon the ruins of mine! Would I could kill you!'
  "And the daughter spoke, and she said: 'O hateful woman, selfish and old! Who stand between my freer self and me! Who would have my life an echo of your own faded life! Would you were dead!'"

  Podemos perceber, em primeiro lugar, que a pessoa da filha aparece como uma resposta à da mãe. Isto resulta tanto das palavras da mãe – "You (...) who have built up your life upon the ruins of mine!" – como das da filha – "O hateful woman (...) who would have my life an echo of your own faded life!". Mas também a mãe – pelo menos esta odiosa mãe sonâmbula – é uma resposta ao aparecimento da filha (já que é obviamente em função dela que o ódio da mãe se desenvolve).
  Cada uma delas é uma reacção ao aparecimento da outra. E não admira que assim seja: a outra que cada uma delas é durante a noite (em relação àquilo que são durante o dia) nasce como reflexo no espelho em que elas se vêem, como referido atrás. Ora, se assim é, é claro que essa outra é sempre uma imagem que surge diante dos olhos de um terceiro (já que o nosso reflexo no espelho mostra-nos a nossa imagem para terceiros). Assim, é natural que cada uma das sonâmbulas só surja diante (leia-se: por efeito) do olhar da parente: é precisamente esse olhar que as sustém. Não admira também então que, embora cada uma expresse o desejo de que a outra morra, nenhuma delas possa verdadeiramente concretizar esse desejo: matar quem a olha seria matar-se a si própria (pois seria fazer desaparecer o olhar que lhe dá vida).
  Não é esse o único motivo, contudo, que impede cada uma das mulheres de matar a parente. Veja-se desde logo que se as sonâmbulas rancorosas são as outras das mulheres carinhosas acordadas, uma rápida troca de perspectivas permite-nos perceber facilmente que também estas últimas são as outras das sonâmbulas. Ora, se cada sonâmbula se abstém de matar, isso não se deve apenas ao desejo de sobreviver por si só, mas também à necessidade de manter viva a sua outra (deixando viver o objecto de afecto da sua outra durante o dia). E este é um modo mais indirecto, mas não menos verdadeiro, de se manter viva a si mesma: porque só continuando viva a pessoa que a sua outra ama durante o dia, pode viver a sonâmbula odiando-a durante a noite. Mais do que isso: é precisamente o amor que mantém juntas mãe e filha durante a vigília a garantir a proximidade suficiente para as sonâmbulas se poderem odiar durante o sono. Esta é mais uma comprovação de uma verdade que já conhecemos (encontrada, por exemplo, quando lemos The Story of an Hour, de Kate Chopin): a de que é o meu outro que sustém a pessoa que eu sou.
  É precisamente esta ligação intrínseca entre cada um e o seu outro que não deve ficar esquecida em favor da oposição mais superficial que facilmente se nota entre ambos. E essa ligação, neste conto como em qualquer outro lugar, vale também no sentido inverso: também a mãe e a filha carinhosas precisam, afinal, das sonâmbulas que odeiam durante a noite. Porque, no fim de contas, foi o encontro entre as mulheres que se odiavam que permitiu às duas acordarem para se abraçarem com amor.

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