E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 26 de agosto de 2016

"Eu estou aqui" - "Locke" (Steven Knight) e a ipseidade


  No filme Locke (Steven Knight), Ivan Locke é um capataz que, na véspera do dia em que deveria supervisionar uma obra de grandes dimensões, descobre que Bethan, uma colega com quem teve relações extra-conjugais meses antes, vai ter um filho seu. Apesar das obrigações laborais e de ser esperado em casa pela mulher e pelos filhos para ver um jogo importante na televisão, Ivan resolve ir até Londres para estar presente no momento do nascimento do filho. Ivan foi abandonado em criança pelo pai, algo que nunca lhe perdoou, mesmo quando ele voltou. Durante as horas de viagem, Locke faz e recebe vários telefonemas da sua mulher, do seu filho, de Bethan e de pessoas relacionadas com o seu trabalho e a obra do dia seguinte. Nesse período, e após explicar a situação, é despedido, a mulher expulsa-o de casa e consegue, apesar de vários contratempos, gerir todos os preparativos necessários para a obra correr bem. Tem também várias conversas imaginárias com o seu pai, como se este estivesse sentado no banco de trás, embora tenha consciência de que ele está morto. Finalmente, quando está prestes a chegar, Locke ouve pelo telefone o choro saudável da criança já nascida.

  Locke é habitualmente uma pessoa calma, organizada, perfeitamente cumpridora das suas obrigações e conforme ao que é esperado dele. Percebemo-lo pelas reacções espantadas das diversas pessoas com quem vai falando. Todas se mostram admiradas, tanto com a revelação do adultério como com a sua intenção de não estar presente no local de trabalho no dia seguinte. Estas atitudes não parecem concordantes com o carácter da pessoa que todos eles conhecem.
  Até que ponto Ivan está a mudar o seu modo de ser, a tornar-se (ou a mostrar ser) uma outra pessoa?

  Identifica-se a pessoa com o seu carácter? Segundo Ricoeur (Soi-même comme un autre), o carácter surge como corpo da nossa identidade na medida em que é um modelo de permanência no tempo ("permanence dans le temps") do sujeito. Num sentido possível da identidade – o da mesmidade ("mêmeté") –, a continuidade ininterrompida ("continuité ininterrompue") de algo aparece como um critério decisivo para aferirmos se esse algo é ainda o mesmo, por comparação com a situação inicial; a resposta positiva permitir-nos-á afirmar a identidade com base na permanência no tempo desse algo.
  O carácter é precisamente o conjunto dos traços distintivos que permitem identificar um indivíduo humano como o mesmo ("l'ensemble des marques distinctives, que permettent de réidentifier un individu humain comme étant le même"). É o conjunto das disposições duradouras pelas quais reconhecemos alguém ("l'ensemble des dispositions durables à quoi on reconnaît une personne"). Estas disposições duradouras que formam o carácter nascem dos hábitos que constroem a história deste (e isso faz-se através de uma sedimentação que tende a fazer esquecer a inovação que a precedeu). Cada hábito tornado uma disposição duradoura passa a ser um traço distintivo que, juntamente com as restantes disposições, formam o carácter da pessoa e permitem identificá-la. Além dos hábitos, a estas disposições podemos ligar também as identificações adquiridas ("identifications acquises") com valores, normas, ideais, etc., nos quais a pessoa se reconhece e que, assim, introduzem um elemento de alteridade que faz também parte da  sua identidade (e aqui, tal como com os hábitos, há um processo de interiorização que vem a apagar aquela alteridade inicial). A estabilidade destes hábitos e identificações adquiridas asseguram a mesmidade da pessoa, garantindo-lhe a permanência no tempo e permitindo identificá-la como a mesma. O carácter é portanto o "quê" que responde à pergunta "quem é aquela pessoa?", ou seja, é o quê do quem ("Le caractère, c'est véritablement le 'quoi' du 'qui'").
  O modo como se constroem as disposições duradouras que formam o carácter (os referidos processos de sedimentação e interiorização) indiciam já, porém, que a consideração do carácter propriamente dito pode não ser suficiente para esgotar a problemática da identidade. Quando a identificação com certos heróis ou valores, por exemplo, resulta na interiorização daquilo que se vem a tornar uma nova disposição duradoura, é preciso notar que, no início deste processo, há um elemento externo ao sujeito, que aparece de fora. Este "trazer" de algo vindo de fora para dentro tem de ser obra de um "si" que não é identificável com o carácter. Este trabalho tem de ser realizado por um agente na forma de uma identidade que, escondendo-se sob a permanência do mesmo no tempo, começa a surgir a cada nova "interiorização". Por aqui, em suma, começa a ficar sugerida a distinção entre a identidade reconduzível a uma problemática de mesmidade (identidade-idem) e aquela que podemos associar à ipseidade (identidade-ipse).
  A ipseidade é um outro modelo de permanência no tempo, distinguível do carácter. No carácter, tende a ficar a oculta a ipseidade pela mesmidade. Ricoeur identifica um caso, porém, em que o afastamento entre ambas é claro: aquele em que o sujeito mantém a palavra dada. Esta situação é uma tal em que a permanência no tempo é uma do si, já não do mesmo. Por isso, à pergunta pela identidade da pessoa, responde-se aqui com o "quem" e já não com o "quê". Porque nesta situação a identidade do si separa-se da mesmidade do carácter. Manter a palavra dada implica uma constância de si ("un mantien de soi") que, ao contrário do carácter, já não se deixa inscrever na categoria das coisas em geral, mas apenas na do "quem". E por isso se distingue a fidelidade à palavra dada da perseveração do carácter, a continuação do carácter da constância na amizade, etc. Manter a promessa pode mesmo então ser visto como um desafio ao tempo ("un défi au temps"): ainda que os meus desejos ou opiniões mudem, permanecerei fiel à minha palavra.
  Segundo Ricoeur, o "propósito ético" do "si" resume-se na busca de uma "vida boa", com e para outrem, em instituições justas ("Appelons 'visée éthique' la visée de 'vie bonne' avec et pour atrui dans des institutions justes").
  À segunda componente deste projecto ("com e para outrem") chama Ricoeur solicitude. Na primeira componente (busca de uma "vida boa"), analisada isoladamente, o aspecto reflexivo que aí se destaca pode ser designado por estima de si. Esta reflexividade parece ameaçar um fechamento do "si" sobre si mesmo. Todavia, segundo Ricoeur, a solicitude não se vem juntar, vinda de fora, à primeira componente, como se lhe fosse exterior, antes resulta do desdobramento dialogal da própria estima de si. Há uma tal continuidade entre estima de si e solicitude que elas não se podem pensar uma sem a outra ("l'estime de soi et la solicitude ne puissent se vivre et se penser l'une sans l'autre"). E isto explica-se na medida em que, em primeiro lugar, a reflexividade do "si", embora desligada do fechamento do "eu" ("Dire soi n'est pas dire moi"), ignora de qualquer modo (ou talvez por isso mesmo) a diferença entre "eu" e "tu". Em segundo lugar, a estima de si constrói-se por referência às capacidades do sujeito: o sujeito é o ser que pode avaliar as suas acções e os respectivos fins, e, por aí, avaliar-se a si mesmo, julgar-se bom; mas, segundo Ricoeur, a mediação do outro é necessária no trajecto que nos leva da capacidade à efectuação.

  Que leitura nos permite tudo isto fazer do percurso de Locke? O seu caminho oferece uma boa ilustração da identidade narrativa: aquela que medeia a dialéctica entre os pólos da mesmidade e da ipseidade.
  A família e colegas de Ivan ficam surpreendidos com as suas decisões. Todos eles conhecem o seu carácter e estas atitudes não parecem concordantes com a imagem que formaram dele. A sua surpresa, todavia, parece mostrar que eles consideram apenas o carácter de Locke, resumindo a isso a sua identidade. Como se a resposta à pergunta sobre a identidade devesse ser encontrada apenas no plano do quê, e não tanto do quem. Mas esta é uma noite em que a demarcação entre a mesmidade e a ipseidade, em Ivan, é clara.
  A decisão de Ivan baseia-se na assunção de um compromisso perante Bethan – e o seu filho. Apesar de todos impedimentos e inconveniências – a mulher, os filhos, o trabalho, os compromissos assumidos com outras pessoas –, ele garante que estará presente no parto. É muito clara aqui a ilustração da "constância de si" a que Locke se propõe. Por isso, a sua decisão só pode ser explicada como um gesto seu (um gesto que lhe pode ser imputado e no qual o podemos reconhecer) na medida em que o consideremos sob a perspectiva da ipseidade. É por desconsiderar esta dimensão e atender apenas ao carácter de Locke que a sua mulher já não o reconhece.
  A atitude de Ivan envolve então uma certa ruptura relativamente ao que já se havia sedimentado no seu carácter. Esta ruptura surge pelo aparecimento do outro perante o qual ele está obrigado por uma promessa. Com efeito, a constância de si, característica da ipseidade, traduz-se num modo de comportamento tal que alguém pode contar com o agente. Este é então responsável perante quem deve poder contar com ele. Ao outro, que pergunta "onde estás?", o agente responde "estou aqui" (a noção da constância de si é por isso eminentemente ética). O gesto de Ivan para com Bethan conjuga então as duas dimensões (literal e simbólica) do significado do cumprimento da promessa como ilustração da ipseidade: na promessa eu torno-me responsável perante o outro que conta comigo. É isto que, efectivamente, Locke diz a Bethan: quando ela lhe pergunta onde está, ele responde algo como: "não te preocupes, porque eu estou (estarei) presente". 

  A ipseidade não representa para Ivan, todavia, um salto no vazio, como se ele se tivesse simplesmente desligado do seu carácter e, qual homem sem qualidades, se condenasse a si mesmo à deriva de um renovar constante de comprometimentos sem qualquer fixação ou ancoragem. Entra aqui em cena a noção de identidade narrativa, que cumpre um papel de mediação entre a mesmidade e a ipseidade. É por ela que podemos perceber a narrativização do carácter, uma tarefa muito importante que confere ao carácter o movimento de que ele, se atendermos apenas às identificações e disposições já sedimentadas, parece despido. Como actua este elemento narrativo na história de Locke? De um modo subtil, mas relativamente simples de entender: embora as atitudes de Ivan surjam como surpreendentes aos olhos dos seus familiares, colegas e amigos, trata-se de todo um procedimento que visa reintegrar na sua história, numa perspectiva narrativa global, aquela estranha noite de loucura em que ele foi adúltero. As acções de Locke garantem precisamente que ele continua a ser aquela pessoa que todos eles identificam como o mesmo, através do seu carácter. Porque naquela noite gerou-se uma situação que resulta agora num chamamento – por outrem – a que ele tem de responder, sob pena de se demitir de todos os valores com os quais se identificou e que constroem desde sempre a sua maneira de ser. É precisamente abandonando tudo para acompanhar aquela semi-estranha no nascimento do filho que Locke consegue garantir que está onde sempre esteve.  

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