E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

sexta-feira, 28 de outubro de 2016

O outro que me pertence

  No conto "Idades", de Luís Fernando Veríssimo (As mentiras que as mulheres contam), uma mulher de 34 anos diz às pessoas que tem 52, com o objectivo de as ouvir comentar, espantadas, que não aparenta a idade que diz ter.

  O que quer esta mulher? Como explica Sartre (L'être et le néant), o olhar do outro faz nascer um ser em nós, um modo de ser que, apesar de referido a nós, não nos pertence verdadeiramente, na medida em que não o podemos resgatar: o nosso ser-para-outrem. Este modo de ser é constituído pelo olhar do outro, pelo que escapa ao nosso controlo.
  Na medida em que o modo como aparecemos ao outro pode ser procurado no espelho, e na medida em que é no espelho que posso encontrar o meu outro, este meu outro pode ser identificado com o modo como apareço aos outros.
  O que a mulher quer é trocar a sua imagem no espelho. Trocar de outra. Porque a idade que ela diz ter vai necessariamente mudar a apreciação que os outros fazem da sua aparência e, portanto, o modo como a vêem. Simultaneamente, também o modo como aparece aos outros.
  A mulher oferece então uma outra outra aos outros. Impõe-lhes a sua outra, rejeitando aquela que eles lhe queriam impor. Deste modo, perante a impossibilidade de se apoderar da outra que o olhar dos outros faz nascer em si, ela opta pela alternativa de a substituir por uma a que ela mesma dá vida.
  É então que se cria o jogo duplo que é, no fim de contas, o seu verdadeiro objectivo: os outros proclamam rejeitar essa outra que ela lhes propõe – o que, naturalmente, é o que ela pretende ouvir. Mas essa rejeição só a delicia na medida em que eles, na verdade, acreditam que ela tem realmente 52 anos; ou seja, a rejeição pelos outros da outra que ela lhes oferece só lhe interessa se eles na verdade a aceitarem.
  Consegue ela então inverter o processo que se estabelece normalmente entre si e o seu público: porque os olhos deste constituíam nela um modo de ser que escapava ao seu controlo, que ela não podia recuperar, mas com o qual tinha de viver, a cuja imputação não podia escapar. Com a sua mentira sobre a idade, parece ser ela a impor aos outros o seu modo de aparecer diante dos seus olhos. Rapidamente percebemos, no entanto, que não é sequer aí que verdadeiramente mora o seu triunfo. Porque ela não ganha, obviamente, com a aceitação pelos outros da idade que ela diz ter, e sim com com a ideia deles de que ela terá outra idade, menos avançada. Com efeito, a incredulidade relativamente aos 52 anos e, sobretudo, a suspeita de que será mais nova, significam, no fundo, o seguinte: ao olharem para ela e ao descobrirem nela algo que não corresponde ao que pensam estar a ver, a sua reacção é, como tem de ser, a de que não conseguem captar o modo como ela lhes aparece.
  Uma vez que a imagem que têm diante dos olhos não coincide com o que pensam ver, essa imagem permanece-lhes estranha. Quando lhe perguntam pelo segredo para a sua aparência tão jovem, isto é apenas um outro modo de perguntar pela chave de acesso a esse espaço secreto onde ela guarda a sua outra, essa outra que ela exibe sem que eles consigam apoderar-se dela.
  A mulher triunfa assim nesta troca de espelhos que faz ao substituir a outra que o olhar dos outros faz nascer em si pela outra que ela fabrica e lhes impõe, parecendo guardar a primeira para si. Mas é claro que essa primeira outra só existe desde que nasce nos olhos dos outros e enquanto aí se mantiver. O triunfo da mulher assenta numa verdadeira ilusão: como os melhores ilusionistas, ela alimenta o mistério exibindo aquilo que esconde. Os outros querem resgatar o estranho ser-para-outrem daquela mulher sem tomarem consciência de que ele nunca deixou de lhes pertencer. Porque, no fim de contas, talvez seja esse o único modo de tornarmos nosso o que não pode deixar de ser alheio: fazermos acreditar o seu verdadeiro dono que a coisa só a nós pertence.

domingo, 23 de outubro de 2016

A rebelião dos nomes


  No livro Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo M. Tavares, Baumann é um homem que cultiva um estranho hábito: recolhe lixo – latas, cascas de fruta, etc. – que limpa cuidadosamente e no qual trabalha até deixar as coisas com a aparência que tinham antes de terem sido utilizadas. A semelhança limita-se à aparência, pois as latas agora não têm nada dentro, as cascas têm apenas papel para ganharem volume, etc. Baumann recoloca então esses objectos no lugar onde primeiro apareceram prontos para serem consumidos: a casca da laranja entre as laranjas do supermercado, a lata vazia entre os refrigerantes.

  Estes não são, naturalmente, os objectos que as pessoas esperam encontrar quando procuram laranjas ou sumos. Com efeito, trata-se apenas da aparência desses objectos.
  Há um consumidor, porém, que provavelmente não se sentirá defraudado com tais produtos. Num outro livro do mesmo autor (O Senhor Juarroz), o senhor Juarroz visita com frequência os supermercados, mas apenas para realizar "compras visuais": não quer levar produto nenhum consigo, quer apenas vê-los. O senhor Juarroz vai ao supermercado como quem vai ao cinema.

  O senhor Juarroz é um consumidor de imagens. Ele quer a representação das coisas e não as coisas em si. E esta postura é a mesma perante uma outra representação das coisas: o nome que elas têm. Não nos devemos deixar enganar pelo que nos é apresentado como uma rebeldia do senhor Juarroz contra os nomes, quando se diz que "[p]ara mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objectos". Com efeito, em rigor, não é contra as palavras, mas sim contra os próprios objectos, que ele se rebela. Pois a pretensão de libertar o objecto do seu nome, vinda de um amante de imagens, tem de ser vista como o desejo de libertar o nome do seu objecto. Por isso, poderíamos ler: para mostrar que não se submetida à ditadura das coisas, o senhor Juarroz todos os dias lhes dava um nome diferente.
  Claro que há uma razão para a formulação original referir a rebeldia à "ditadura das palavras". O que ele quer atingir não são propriamente os nomes, e sim as correntes que os ligam às coisas. Porque o senhor Juarroz ama as imagens pelas imagens, não pelas coisas que elas trazem, e, do mesmo modo, ama os nomes pelos nomes, não pelos objectos a eles acorrentados. Rebelde contra a tirania, a anarquia do senhor Juarroz vai muito além da democracia de um Humpty Dumpty (Lewis Carroll, Through the looking glass and what Alice found there), para quem as palavras designam o que o próprio falante desejar ("'When I use a word, Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, 'it means just what I choose it to mean – neither more nor less.'"). Para o senhor Juarroz, as palavras designam coisas, mas não valem por isso, e por esta razão não têm de estar presas a um objecto concreto. A fungibilidade dos objectos designados por um nome mostra a liberdade do nome perante os objectos, o desprendimento com que ele pode passear sem estar atrelado a coisa nenhuma. Quando o senhor Juarroz acorda baralhado com os nomes novos que deu às coisas e não se lembra do nome da coisa que segura nesse momento, deixa-a cair e ela parte-se. Ora, se isto acontece, e como podemos comprovar pela ordem dos acontecimentos, tal não se deve a que o nome esvanece sem a coisa, mas sim a que esta deixa de existir sem o nome. Por isso, podemos inverter o dito de Pedro Eiras (em A Moral do Vento – Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares) e notar a sensibilidade extrema das coisas: quando o nome falta, a coisa parte-se.
  A postura do senhor Juarroz é assim completamente inversa à de outros rebeldes: os sábios que Gulliver encontrou na Grande Academia de Lagado (Jonathan Swift, Gulliver's Travels). Estes, com efeito, queriam abolir as palavras e, supondo que estas existem apenas para designar coisas, resolveram passar a carregar sacos cheios de coisas. As suas conversas sem palavras passavam então por mostrar o objecto que queriam referir quando pretendiam dizer algo.
  Como é fácil de ver, os sábios de Lagado revoltam-se verdadeiramente contra os nomes e submetem-se à ditadura dos objectos que eles designam. Não o senhor Juarroz, que prefere o nome à coisa. Por isso, aparentemente, o senhor Juarroz tem bem estudada a lição de Wittgenstein. Lembremos o § 293 das Investigações Filosóficas: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). O senhor Juarroz concorda com Wittgenstein, pois para nenhum deles é importante se há realmente um escaravelho na caixa ou não, e para ambos o nome pode realmente prescindir do objecto. No caso do senhor Juarroz, porém, isso deve-se apenas a uma razão estética: o seu amor pelas imagens.
  Porque para o senhor Juarroz não é importante se há um escaravelho dentro da caixa, também não lhe faz diferença, quando visita o supermercado, se as latas e cascas trazem realmente bebida e fruta dentro de si. E por isso os produtos que Baumann planta nas prateleiras parecem convir-lhe na perfeição.
  É significativo que Baumann utilize apenas restos de lixo, e não, por exemplo, latas novas de refrigerante que ele mesmo esvaziasse ou fruta fresca que ele próprio descascasse. Com efeito, é no lixo que Baumann pode verdadeiramente encontrar as imagens desprezadas das coisas. Porque as pessoas compararam as coisas pelas coisas, não pelas imagens. Mesmo que as imagens as tenham atraído em primeiro lugar, foi pelo objecto em si que elas as levaram, pelo que, assim que o objecto desapareceu, a imagem deixou de ter importância. Tudo o oposto da atitude do senhor Juarroz, que, amante fiel das imagens, seria incapaz de as trair com as coisas.
  Baumann recupera então as imagens desprezadas, depois de terem sido despidas dos seus objectos pelos amantes das coisas. É precisamente esta imagem, que assim volta sem coisa, que ele quer devolver. É este simbolismo que se perderia se ele se limitasse a adquirir latas novas que ele mesmo esvaziaria e devolveria vazias, sem nunca terem sofrido deterioração ou abandono. E por isso o seu produto é precisamente aquele que mais se adequa ao que o senhor Juarroz procura: imagens já despidas de coisas, já libertas dos objectos que outrora carregaram. Violadas pelos compradores comuns, que delas queriam apenas o corpo, as imagens aparecem agora mais puras para serem amadas pelo senhor Juarroz.
  O encontro impossível entre o senhor Juarroz e Baumann é assim apenas mais um na série de impossíveis encontros que todos gostaríamos de ter com a pessoa que sabe aquilo de que precisamos, mas não sabe como nos encontrar.

domingo, 16 de outubro de 2016

A máscara falhada

   No livro Das Parfum (Patrick Süskind), quando Grenouille coloca umas gotas do seu perfume, a multidão que antes o queria trucidar passa a adorá-lo, a ponto mesmo de ser tido por todos como inocente dos crimes que obviamente cometera.
   Este é o momento do grande triunfo de Grenouille, aquele em que consegue emanar um odor que atrai todos os outros. Mas não é como tal que ele o vive. De facto, este triunfo assusta-o precisamente porque ele não o pode usufruir ("Er wurde ihm fürchterlich, denn er konnte keine Sekunde davon genießen").
   O triunfo é obra de Grenouille, mas não é seu, não lhe pertence, pela razão simples de que não é verdadeiramente a ele que se dirigem aquelas pessoas e sim à máscara que ele criou. A máscara não mostra o seu interior, desconhecido até para si mesmo. Esse, de resto, é o verdadeiro motivo do seu terror. Porque se Grenouille trabalhou para criar tal perfume e desencadear nos outros uma reacção, fê-lo para, uma vez na vida, conseguir exteriorizar o seu íntimo, como as restantes pessoas ("Er wollte sich ein Mal im Leben entäußern. Er wollte ein Mal im Leben sein wie andere Menschen auch und sich seines Innern entäußern"). Mas falha no seu intento. As pessoas apaixonam-se por uma máscara que ele veste sem poder chamá-la sua. Porque todas as máscaras são usadas com o propósito aberto de nos escondermos, na esperança inconfessada de nos mostrarmos a outra luz. Não é isso que acontece com Grenouille, que esperava descobrir o que esconderia e mostraria a sua máscara assim que a colocasse, e acaba por compreender que para si todas as máscaras são impossíveis, pois nelas nada se mostra, e atrás delas, onde ele se queria encontrar, nada se esconde.
   O caso do Joker é outro em que atrás da máscara habita apenas a escuridão, mas aí o pesadelo mora do lado do espectador: o Joker identifica-se com a sua máscara, mora nela e não atrás dela, pelo que o terror surge apenas para quem assiste ao seu sorriso. Grenouille, ao invés, não consegue identificar-se com as máscaras de odor que cria. Veste-as na esperança de conseguir descobrir-se a si mesmo nelas e atrás delas, mas falha porque nada encontra ("und er trug unter dieser Maske kein Gesicht, sondern nichts als seine totale Geruchlosigkeit").
   Não admira assim que Grenouille precisasse de um público. Com efeito, a máscara permite-me conhecer-me a mim mesmo – pelo que mostra de mim escondendo-me –, mas ela só funciona perante o olhar dos outros. Esse, de resto, é o segredo para derrotar o Joker: fechar os olhos, retirar o público ao seu sorriso. Grenouille precisava também do seu público para dar vida à sua máscara e encontrar-se finalmente. Foi bem sucedido quanto ao primeiro intento, mas falhou no segundo.
   Os sentimentos das pessoas por Grenouille são agora de adoração, veneração até. Grenouille dirige-lhes o seu ódio, mas este não atinge ninguém. A sua máscara actua por ele, em vez dele. A generalidade das pessoas actua através das suas máscaras, mas o caso de Grenouille não chega sequer a ser o inverso disso, porque a sua máscara não parece precisar dele para actuar. Grenouille, no seu íntimo, é tão inexistente para a multidão como para si mesmo.
   É esta então a sua grande derrota. Porque ele quis procurar-se nos outros depois de não conseguir encontrar-se dentro de si mesmo. Colocou uma máscara para que o vissem e assim poder encontrar-se no reflexo dos olhares alheios. No fundo, quis descobrir-se pelo atalho dos olhos dos outros, quis que o seu reflexo lhe mostrasse quem era. Mas os outros vêem uma máscara que, afinal, não é a sua, e por isso nada pode dizer-lhe sobre si próprio.
   A máscara que nos pertence é aquela que, erguendo uma barreira aos olhares estranhos, abre a porta para que um estrangeiro visite o nosso íntimo. Por isso, ao ver Richis, o pai de uma das suas vítimas, Grenouille alegra-se, pensando que aquele não se deixará enganar pela sua máscara e que o vai matar; que assim será Richis o primeiro estrangeiro a visitar o seu interior, o primeiro elemento estranho que lhe permitirá familiarizar-se consigo ("endlich, endlich etwas in seinem Herzen, etwas anderes als er selbst!"). O plano de Grenouille revela aqui uma sabedoria muito peculiar: ele tem consciência de que é preciso deixarmos entrar em nós um elemento estranho para nos revelarmos a nós mesmos.
   O seu plano falha, porque também Richis conhece apenas a máscara, não vê nem ouve ninguém atrás dela. Também ele o adora e não chega sequer a perceber o seu ódio. Não chega nunca a ver Grenouille, deixando-o na angústia de não saber se de facto haveria algo para ver.
   Por ter falhado em mostrar-se aos outros, Grenouille não chegou a conseguir ver-se a si mesmo. Ao contrário de quem se engana escondendo-se de si e dos outros atrás de máscaras, Grenouille vestiu uma máscara para se mostrar aos outros e a si próprio, mas não conseguiu – não porque a sua máscara tenha mostrado o que devia esconder ou escondido o que devia mostrar, mas sim porque, aparentemente, nada havia a mostrar ou a esconder. Uma máscara falhada, eis aquilo a que se pode resumir a história de Grenouille.