E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 23 de outubro de 2016

A rebelião dos nomes


  No livro Matteo perdeu o emprego, de Gonçalo M. Tavares, Baumann é um homem que cultiva um estranho hábito: recolhe lixo – latas, cascas de fruta, etc. – que limpa cuidadosamente e no qual trabalha até deixar as coisas com a aparência que tinham antes de terem sido utilizadas. A semelhança limita-se à aparência, pois as latas agora não têm nada dentro, as cascas têm apenas papel para ganharem volume, etc. Baumann recoloca então esses objectos no lugar onde primeiro apareceram prontos para serem consumidos: a casca da laranja entre as laranjas do supermercado, a lata vazia entre os refrigerantes.

  Estes não são, naturalmente, os objectos que as pessoas esperam encontrar quando procuram laranjas ou sumos. Com efeito, trata-se apenas da aparência desses objectos.
  Há um consumidor, porém, que provavelmente não se sentirá defraudado com tais produtos. Num outro livro do mesmo autor (O Senhor Juarroz), o senhor Juarroz visita com frequência os supermercados, mas apenas para realizar "compras visuais": não quer levar produto nenhum consigo, quer apenas vê-los. O senhor Juarroz vai ao supermercado como quem vai ao cinema.

  O senhor Juarroz é um consumidor de imagens. Ele quer a representação das coisas e não as coisas em si. E esta postura é a mesma perante uma outra representação das coisas: o nome que elas têm. Não nos devemos deixar enganar pelo que nos é apresentado como uma rebeldia do senhor Juarroz contra os nomes, quando se diz que "[p]ara mostrar que não se submetia à ditadura das palavras o senhor Juarroz todos os dias dava um nome diferente aos objectos". Com efeito, em rigor, não é contra as palavras, mas sim contra os próprios objectos, que ele se rebela. Pois a pretensão de libertar o objecto do seu nome, vinda de um amante de imagens, tem de ser vista como o desejo de libertar o nome do seu objecto. Por isso, poderíamos ler: para mostrar que não se submetida à ditadura das coisas, o senhor Juarroz todos os dias lhes dava um nome diferente.
  Claro que há uma razão para a formulação original referir a rebeldia à "ditadura das palavras". O que ele quer atingir não são propriamente os nomes, e sim as correntes que os ligam às coisas. Porque o senhor Juarroz ama as imagens pelas imagens, não pelas coisas que elas trazem, e, do mesmo modo, ama os nomes pelos nomes, não pelos objectos a eles acorrentados. Rebelde contra a tirania, a anarquia do senhor Juarroz vai muito além da democracia de um Humpty Dumpty (Lewis Carroll, Through the looking glass and what Alice found there), para quem as palavras designam o que o próprio falante desejar ("'When I use a word, Humpty Dumpty said in rather a scornful tone, 'it means just what I choose it to mean – neither more nor less.'"). Para o senhor Juarroz, as palavras designam coisas, mas não valem por isso, e por esta razão não têm de estar presas a um objecto concreto. A fungibilidade dos objectos designados por um nome mostra a liberdade do nome perante os objectos, o desprendimento com que ele pode passear sem estar atrelado a coisa nenhuma. Quando o senhor Juarroz acorda baralhado com os nomes novos que deu às coisas e não se lembra do nome da coisa que segura nesse momento, deixa-a cair e ela parte-se. Ora, se isto acontece, e como podemos comprovar pela ordem dos acontecimentos, tal não se deve a que o nome esvanece sem a coisa, mas sim a que esta deixa de existir sem o nome. Por isso, podemos inverter o dito de Pedro Eiras (em A Moral do Vento – Ensaio sobre o corpo em Gonçalo M. Tavares) e notar a sensibilidade extrema das coisas: quando o nome falta, a coisa parte-se.
  A postura do senhor Juarroz é assim completamente inversa à de outros rebeldes: os sábios que Gulliver encontrou na Grande Academia de Lagado (Jonathan Swift, Gulliver's Travels). Estes, com efeito, queriam abolir as palavras e, supondo que estas existem apenas para designar coisas, resolveram passar a carregar sacos cheios de coisas. As suas conversas sem palavras passavam então por mostrar o objecto que queriam referir quando pretendiam dizer algo.
  Como é fácil de ver, os sábios de Lagado revoltam-se verdadeiramente contra os nomes e submetem-se à ditadura dos objectos que eles designam. Não o senhor Juarroz, que prefere o nome à coisa. Por isso, aparentemente, o senhor Juarroz tem bem estudada a lição de Wittgenstein. Lembremos o § 293 das Investigações Filosóficas: supondo que cada pessoa tem uma caixa com um escaravelho; que cada uma só consegue espreitar a sua caixa, mas não a dos outros, e que, não obstante, todas usam a expressão "escaravelho" sem quaisquer disputas quanto ao seu significado, então não interessa verdadeiramente o que está dentro da caixa – que pode ser sempre o mesmo para todas as pessoas, pode ser sempre diferente, pode ir variando e, no limite, pode até a caixa estar vazia. A gramática da expressão prescinde do objecto, pois "a coisa na caixa não pertence de todo ao jogo de linguagem" ("Das Ding in der Schachtel gehört überhaupt nicht zum Sprachspiel"). O senhor Juarroz concorda com Wittgenstein, pois para nenhum deles é importante se há realmente um escaravelho na caixa ou não, e para ambos o nome pode realmente prescindir do objecto. No caso do senhor Juarroz, porém, isso deve-se apenas a uma razão estética: o seu amor pelas imagens.
  Porque para o senhor Juarroz não é importante se há um escaravelho dentro da caixa, também não lhe faz diferença, quando visita o supermercado, se as latas e cascas trazem realmente bebida e fruta dentro de si. E por isso os produtos que Baumann planta nas prateleiras parecem convir-lhe na perfeição.
  É significativo que Baumann utilize apenas restos de lixo, e não, por exemplo, latas novas de refrigerante que ele mesmo esvaziasse ou fruta fresca que ele próprio descascasse. Com efeito, é no lixo que Baumann pode verdadeiramente encontrar as imagens desprezadas das coisas. Porque as pessoas compararam as coisas pelas coisas, não pelas imagens. Mesmo que as imagens as tenham atraído em primeiro lugar, foi pelo objecto em si que elas as levaram, pelo que, assim que o objecto desapareceu, a imagem deixou de ter importância. Tudo o oposto da atitude do senhor Juarroz, que, amante fiel das imagens, seria incapaz de as trair com as coisas.
  Baumann recupera então as imagens desprezadas, depois de terem sido despidas dos seus objectos pelos amantes das coisas. É precisamente esta imagem, que assim volta sem coisa, que ele quer devolver. É este simbolismo que se perderia se ele se limitasse a adquirir latas novas que ele mesmo esvaziaria e devolveria vazias, sem nunca terem sofrido deterioração ou abandono. E por isso o seu produto é precisamente aquele que mais se adequa ao que o senhor Juarroz procura: imagens já despidas de coisas, já libertas dos objectos que outrora carregaram. Violadas pelos compradores comuns, que delas queriam apenas o corpo, as imagens aparecem agora mais puras para serem amadas pelo senhor Juarroz.
  O encontro impossível entre o senhor Juarroz e Baumann é assim apenas mais um na série de impossíveis encontros que todos gostaríamos de ter com a pessoa que sabe aquilo de que precisamos, mas não sabe como nos encontrar.

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