E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 16 de outubro de 2016

A máscara falhada

   No livro Das Parfum (Patrick Süskind), quando Grenouille coloca umas gotas do seu perfume, a multidão que antes o queria trucidar passa a adorá-lo, a ponto mesmo de ser tido por todos como inocente dos crimes que obviamente cometera.
   Este é o momento do grande triunfo de Grenouille, aquele em que consegue emanar um odor que atrai todos os outros. Mas não é como tal que ele o vive. De facto, este triunfo assusta-o precisamente porque ele não o pode usufruir ("Er wurde ihm fürchterlich, denn er konnte keine Sekunde davon genießen").
   O triunfo é obra de Grenouille, mas não é seu, não lhe pertence, pela razão simples de que não é verdadeiramente a ele que se dirigem aquelas pessoas e sim à máscara que ele criou. A máscara não mostra o seu interior, desconhecido até para si mesmo. Esse, de resto, é o verdadeiro motivo do seu terror. Porque se Grenouille trabalhou para criar tal perfume e desencadear nos outros uma reacção, fê-lo para, uma vez na vida, conseguir exteriorizar o seu íntimo, como as restantes pessoas ("Er wollte sich ein Mal im Leben entäußern. Er wollte ein Mal im Leben sein wie andere Menschen auch und sich seines Innern entäußern"). Mas falha no seu intento. As pessoas apaixonam-se por uma máscara que ele veste sem poder chamá-la sua. Porque todas as máscaras são usadas com o propósito aberto de nos escondermos, na esperança inconfessada de nos mostrarmos a outra luz. Não é isso que acontece com Grenouille, que esperava descobrir o que esconderia e mostraria a sua máscara assim que a colocasse, e acaba por compreender que para si todas as máscaras são impossíveis, pois nelas nada se mostra, e atrás delas, onde ele se queria encontrar, nada se esconde.
   O caso do Joker é outro em que atrás da máscara habita apenas a escuridão, mas aí o pesadelo mora do lado do espectador: o Joker identifica-se com a sua máscara, mora nela e não atrás dela, pelo que o terror surge apenas para quem assiste ao seu sorriso. Grenouille, ao invés, não consegue identificar-se com as máscaras de odor que cria. Veste-as na esperança de conseguir descobrir-se a si mesmo nelas e atrás delas, mas falha porque nada encontra ("und er trug unter dieser Maske kein Gesicht, sondern nichts als seine totale Geruchlosigkeit").
   Não admira assim que Grenouille precisasse de um público. Com efeito, a máscara permite-me conhecer-me a mim mesmo – pelo que mostra de mim escondendo-me –, mas ela só funciona perante o olhar dos outros. Esse, de resto, é o segredo para derrotar o Joker: fechar os olhos, retirar o público ao seu sorriso. Grenouille precisava também do seu público para dar vida à sua máscara e encontrar-se finalmente. Foi bem sucedido quanto ao primeiro intento, mas falhou no segundo.
   Os sentimentos das pessoas por Grenouille são agora de adoração, veneração até. Grenouille dirige-lhes o seu ódio, mas este não atinge ninguém. A sua máscara actua por ele, em vez dele. A generalidade das pessoas actua através das suas máscaras, mas o caso de Grenouille não chega sequer a ser o inverso disso, porque a sua máscara não parece precisar dele para actuar. Grenouille, no seu íntimo, é tão inexistente para a multidão como para si mesmo.
   É esta então a sua grande derrota. Porque ele quis procurar-se nos outros depois de não conseguir encontrar-se dentro de si mesmo. Colocou uma máscara para que o vissem e assim poder encontrar-se no reflexo dos olhares alheios. No fundo, quis descobrir-se pelo atalho dos olhos dos outros, quis que o seu reflexo lhe mostrasse quem era. Mas os outros vêem uma máscara que, afinal, não é a sua, e por isso nada pode dizer-lhe sobre si próprio.
   A máscara que nos pertence é aquela que, erguendo uma barreira aos olhares estranhos, abre a porta para que um estrangeiro visite o nosso íntimo. Por isso, ao ver Richis, o pai de uma das suas vítimas, Grenouille alegra-se, pensando que aquele não se deixará enganar pela sua máscara e que o vai matar; que assim será Richis o primeiro estrangeiro a visitar o seu interior, o primeiro elemento estranho que lhe permitirá familiarizar-se consigo ("endlich, endlich etwas in seinem Herzen, etwas anderes als er selbst!"). O plano de Grenouille revela aqui uma sabedoria muito peculiar: ele tem consciência de que é preciso deixarmos entrar em nós um elemento estranho para nos revelarmos a nós mesmos.
   O seu plano falha, porque também Richis conhece apenas a máscara, não vê nem ouve ninguém atrás dela. Também ele o adora e não chega sequer a perceber o seu ódio. Não chega nunca a ver Grenouille, deixando-o na angústia de não saber se de facto haveria algo para ver.
   Por ter falhado em mostrar-se aos outros, Grenouille não chegou a conseguir ver-se a si mesmo. Ao contrário de quem se engana escondendo-se de si e dos outros atrás de máscaras, Grenouille vestiu uma máscara para se mostrar aos outros e a si próprio, mas não conseguiu – não porque a sua máscara tenha mostrado o que devia esconder ou escondido o que devia mostrar, mas sim porque, aparentemente, nada havia a mostrar ou a esconder. Uma máscara falhada, eis aquilo a que se pode resumir a história de Grenouille.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.