E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 29 de novembro de 2016

A hipótese do perdão


  No episódio “White Bear” (Carl Tibbetts), da série Black Mirror, Victoria Skillane acorda numa casa sem memória de quem é ou de como foi ali parar. Já na rua, é perseguida por muitas pessoas que a filmam sem reagir a nada do que diz e por algumas que parecem querer atacá-la com armas. Depois de várias provações, acaba por descobrir que é uma criminosa condenada por ter ajudado e filmado o namorado a torturar e queimar uma criança. Foi condenada a uma pena cujo propósito é o de submetê-la ao sofrimento infligido à sua vítima. Para isso, todos os dias apagam-lhe a memória e fazem-na viver aquele pesadelo até ao clímax em que lhe recordam o que fez. Apagam-lhe novamente a memória desse dia e do seu crime, e no dia a seguir recomeça tudo.

  A sentença que condena Victoria parece guiada pela lógica retributiva: a de devolver à agente do crime o mal por esta imposto à vítima, obrigando-a a passar pelo que a criança passou. Este episódio oferece, no entanto, uma boa ilustração de um problema latente na retribuição.
  Pela sua própria natureza, a retribuição traz sempre o perigo de deixar de ser retribuição. Com efeito, ela começa por ser uma paga, uma expiação pelo que se fez, pelo mal causado com o crime. Na medida em que a punição se guie apenas por este objectivo, ela terá de se manter proporcional, não podendo exceder a medida do mal praticado. Ora, o problema surge com a fácil associação deste intuito – que em si mesmo pode sustentar-se em meros raciocínios lógicos, sem carecer de base emocional – com o desejo de vingança. Este desejo começa precisamente na intenção de castigar o mal que nos foi feito, de devolver à pessoa o ataque que nos dirigiu. O problema da vingança, porém, é que ela não traz em si a solução para o problema que lhe deu origem, desde logo porque não tem o poder de apagar o mal feito.
  O mal cometido com o crime ou ofensa permanece lá, como uma afronta sempre evidente, sempre visível, pela razão simples de que o agente nunca pode desfazer o que fez. Pode arrepender-se, pedir desculpa, praticar boas acções, mas nada do que faça tem efeitos no passado, pelo que o gesto ofensivo mantém a inalterável e indestrutível realidade de ter acontecido, sem que nada lhe possa retirar essa dignidade. A vingança está assim condenada a fracassar porque não consegue fazer com que o que foi feito deixe de ter sido feito. Por isto, é como se o acto criminoso se renovasse continuamente, tornando-se inesgotável: a sede de vingança que ele gera não pode ser satisfeita nunca, visto que nenhum castigo imposto ao criminoso poderá apagar o que ele fez.
  A vingança falha ainda em virtude de outro factor: a impossibilidade de reproduzir o gesto inicial de afronta, de repetir a inauguração da violência pelo acto criminoso. É isto – a reprodução de um acto violento original – que, de todo o modo, parecem tentar conseguir os castigadores de “White Bear”. Por isso é tão importante apagar a memória de Victoria: por aí é retirado o sentido ao sofrimento que lhe é imposto, que fica sem razão aparente. Foi deste género o crime cometido contra a criança: a violência que o caracterizou não se explica apenas pela dureza da tortura em si, mas também pela ausência de qualquer motivo que a tornasse explicável ou até expectável. Nestes termos, se o ataque contra a criança pode ser devolvido à criminosa, isso só pode ser conseguido transformando esta numa inocente. O objectivo é aqui o de que a própria infractora sinta o ataque como a criança o sentiu, pelo que o importante é que ela seja inocente para si própria. E então é fundamental apagar-lhe a memória do seu crime, pois só aí ela poderá sentir a violência naquelas duas dimensões: não apenas a da dor em si, mas também (e talvez até sobretudo) a da ausência de qualquer contexto que permita explicar ou fazer esperar essa dor.
  Uma vez atingido este ponto, é obrigatório questionar a legitimidade para irrogar tal punição. Na medida em que são bem sucedidos, estes castigadores acabam a fazer exactamente o mesmo que Victoria. Também eles, de certo modo, atacam uma “inocente”. (Também) por isso, no fim do dia, se vêem obrigados a lembrar-lhe o que fez, procurando assim redimir-se a si próprios e ao seu sadismo. Só podem ter esperança de o conseguir dando à violência que infligem um sentido, transformando-a de tortura gratuita em castigo merecido. Obtêm deste modo a dita redenção? De certo modo, eles conseguem fazer com o seu gesto aquilo que não conseguem fazer com o de Victoria: embora também os ataques a esta não possam ser apagados – também eles não podem fazer com que o que fizeram deixe de ter sido feito –, chegam a um resultado alternativo: dão à sua violência uma história, um contexto que a explica e, supostamente, a torna expectável e até merecida; dão-lhe um sentido.
  Ainda que concordemos, por hipótese, com a ideia de que recordar ao agente o seu crime confere racionalidade ao procedimento dos castigadores e, por aí, o justifica, não basta isto para os redimir. Porque por esta via também se renova a inesgotabilidade do acto criminoso original. Com efeito, ao mesmo tempo que a explicação da conduta dos castigadores "legitima" esta e lhe retira o sentido de acto violento original (sem sentido, inesperado), devolve também precisamente este sentido ao crime de Victoria. Explicar o que fizeram recordando a Victoria o que ela fez é, no fim de contas, trazer de volta o crime desta e assim restituir-lhe a sua dignidade ontológica, a inamovibilidade que o torna inapagável, inerradicável. Deste modo, estão a condenar-se a si mesmos (como se isso não fosse já uma decorrência necessária da vingança) a terem de a castigar novamente. São eles mesmos, afinal, quem recupera o pecado original, não o deixando morrer. Se o crime de Victoria é inesgotável e nenhum castigo pode satisfazer a dívida de vingança gerada, isso deve-se (também) a que os próprios vingadores alimentam a sede de castigo através da punição. Por isso terão de continuar a apagar-lhe a memória depois de lhe lembrarem o seu crime, já que a dívida de vingança renasceu com esse recordar. É um círculo vicioso inescapável para os castigadores.

  A necessidade de recordar todos os dias a Victoria o seu crime revela uma ânsia profunda por parte dos seus algozes: a de manter a ligação ao crime original. Mas é precisamente por aqui que começamos a suspeitar que essa ligação, na verdade, já se perdeu há muito.
  No livro Alice Through the Looking Glass (Lewis Carroll), a Rainha Branca explica a Alice que ali (do outro lado do espelho) o processo judicial sofre uma inversão da sua ordem normal: primeiro cumpre-se a pena, depois é-se condenado, julgado e, por fim, comete-se o facto. A pena desliga-se aparentemente do crime, já que quando Alice indaga pela possibilidade de este não chegar a ser cometido, a Rainha não parece sequer considerar a hipótese de isso retirar sentido à punição, ficando apenas satisfeita por não haver crime: “'Suppose he never commits the crime?' said Alice./ 'That would be all the better, wouldn’t it?' the Queen said”.
  Da perspectiva de Victoria, é uma inversão deste género que parece ter lugar: ela começa por sofrer a pena e só depois o seu crime é introduzido. Mas também no seu caso o castigo se desliga do facto. Na verdade, a renovação constante do castigo implica a perda da proporcionalidade: Victoria é uma "incocente" que sofre repetidas vezes por ter feito uma inocente sofrer uma vez. A vingança funciona através deste desligamento. É como se o seu crime fosse colocado entre dois espelhos para ser reflectido (repetido) até ao infinito. E por aí a sua infracção revela-se como mero pretexto para um ecoar infindável de punições que se reclamam dela para existirem, mas que na verdade se alimentam a si mesmas.

  A vingança falha porque não pode apagar o que foi feito e porque, obcecada com o crime, não pode disfarçar o facto de que vai inevitavelmente desligar-se dele. Mas talvez seja este fracasso a apontar-nos uma outra via, porventura mais esperançosa. Porque ele pode levar-nos a aceitar que não podemos realmente apagar o mal cometido. E a pensar que em vez de nos perdermos obcecados com um gesto passado que só vive do alimento que nós mesmos lhe damos, poderemos talvez conseguir ultrapassá-lo trazendo esse gesto connosco e superando-o com os olhos num futuro depois dele. Este é o caminho que envolve sarar feridas em vez de mantê-las abertas, o propósito de construir coisas novas em lugar de destruir antigas. É o caminho do perdão.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O burro feliz

  No livro Esaú e Jacó, de Machado de Assis, o Conselheiro Aires vê a dada altura um homem bater no seu burro, que teima em não querer andar. Olhando o burro nos olhos, Aires descobre neles uma “expressão profunda de ironia e paciência” e imagina um monólogo (o “monólogo do burro”). No fim desse monólogo, o burro diria ao homem: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”.

  A posição do burro lembra a do cão atrelado a uma carroça das fábulas estóicas. A atitude do cão poderia ser a de resistir à trela que o puxava, sem por isso conseguir evitar ser arrastado, ou seguir pelo caminho a que estava condenado, poupando-se ao estrangulamento.
  A preferência dos estóicos por esta última hipótese parece indiciar que a resistência do burro que intriga o Conselheiro Aires seria por eles condenada. Merecerá ela verdadeiramente esta condenação? Revelará a sua postura apenas teimosia sem sentido e a estupidez de não saber aceitar a adversidade?
  A teimosia do burro parece inútil, já que ele, mais tarde ou mais cedo, terá mesmo de seguir o caminho que o homem lhe impõe. A resignação do cão que se abandona ao percurso da carroça aparece então eivada da sabedoria consciente de quem sabe aceitar o seu destino. A fatalidade domina os trajectos de um e outro, mas o cão é maior que o seu destino, porque ao aceitá-lo com a consciência daquilo a que está reduzido é capaz de o desprezar: todo o destino pode ser superado pelo desprezo (“Il n'est pas de destin qui ne se surmonte par le mépris”: Camus, Le Mythe de Sisyphe). Sábio como Sócrates, ele não se rebela nem teima contra a inevitabilidade, encontrando um lugar de paz interior em não se deixar afectar por aquilo que não pode mudar. Ele é o melhor seguidor do conselho com que Sócrates encerra o diálogo com Críton: "sigamos este caminho, já que é aquele que a divindade nos indica".
  É esta nota, todavia, que nos dá uma primeira pista para percebermos que talvez não devamos subestimar com tanta ligeireza a atitude do burro. Porque o seu monólogo, afinal, é a maior prova de que ele tem precisamente aquela consciência que torna superior a posição do cão sábio. Com efeito, é ele mesmo que reconhece ao dono o domínio deste. E é precisamente graças a este passo que ele pode dizer, com razão, que esse domínio não lhe serve de muito. Se não estivesse consciente da sua subjugação, morreria subjugado. Mas está e resiste ainda assim. Porque o faz? Pelo mesmo motivo pelo qual Sísifo insiste em ir buscar a sua pedra ao fundo da montanha para onde ela rolou mais uma vez. Sísifo sabe que é inútil tentar levar a pedra ao topo, porque ela há-de voltar a cair. Mas insiste. E se temos de imaginar Sísifo feliz, como recomendou Camus, a sua felicidade talvez não possa ser encontrada enquanto imaginarmos que ele é simplesmente obrigado a empurrar uma pedra uma e outra vez para a ver depois cair de volta ao princípio; descobriremos essa felicidade atentando antes em que é o próprio Sísifo que, livre, como o burro, para teimar, insiste em empurrar de novo. Não perceberemos a sua alegria nem a sua liberdade se insistirmos em pensar que de nada serve levar o pedregulho ao topo se este vai cair uma vez mais; porque assim falhamos em ver que, se isto acontece, é porque não há, de facto, sentido nenhum para o gesto repetido de insistência a não ser o que mora e se esgota no próprio gesto. A tragédia de Sísifo é a de um retorno frustrado à base da montanha. A sua felicidade, porém, é a de uma subida bem sucedida. A única prova deste sucesso é que ele nunca poderia descer de volta se não tivesse chegado ao topo; isto basta, porque a subida é afinal o único objectivo de si mesma.
  Também Sísifo pode rir-se da divindade que, uma vez chegada a pedra ao cume, a empurra de volta, obrigando-o a ir buscá-la novamente. Porque também ele pode dizer: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”. É esta vontade indomável, consciente de ser inútil, sem esperança de qualquer sucesso e por isso mesmo vitoriosa, que o burro exibe nos seus olhos irónicos e pacientes. E talvez possamos assim lembrar o Conselheiro Aires de que, ao notar a "expressão de ironia e paciência" naqueles olhos, é também preciso imaginar que aquele burro absurdamente teimoso é feliz.

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O rei fantasma

  No livro Das Parfum (Patrick Süskind), conta-se como Grenouille possuía a habilidade de, por um lado, memorizar tudo o que cheirava, e, por outro, reproduzir através das suas recordações todos os perfumes que trazia guardados na memória.

  Hume apresenta como generalizada a opinião de que há uma diferença marcada entre uma sensação e a recordação dessa sensação, sendo esta necessariamente inferior àquela: “Every one will readily allow, that there is a considerable difference between the perceptions of the mind, when a man feels the pain of excessive heat, or the pleasure of moderate warmth, and when he afterwards recalls to his memory this sensation, or anticipates it by his imagination. These faculties may mimic or copy the perceptions of the senses; but they never can entirely reach the force and vivacity of the original sentiment. (...) The most lively thought is still inferior to the dullest sensation.” (David Hume, An Enquiry concerning Human Understanding).
  O caso de Grenouille parece contrariar esta regra, pois a vivência das suas recordações é para ele tão intensa quanto a impressão original, i. e., nele a ideia não é inferior à sensação – o que significa que, no fim de contas, nele a ideia nunca deixa de ser sensação. É graças a esta particularidade que Grenouille pode retirar-se para dentro de si próprio durante sete anos, escondendo-se numa pequena gruta e vivendo apenas da reprodução mental das sensações olfactivas acumuladas ao longo da vida. Ele é afinal como o sábio estóico, pois basta-se a si mesmo: dispensa o mundo, as suas imagens e os seus perfumes. Não precisa de ir procurá-los lá fora, à realidade das coisas; encontra-as na verdade dos seus pensamentos. Por isso ele poderia dizer, como Bias diante dos persas, que, não tendo quaisquer posses ou amigos, tem no entanto tudo o que precisa, e tudo o que tem e de que precisa traz consigo.

  Durante sete anos, Grenouille, criatura sem bens de qualquer ordem, alimentando-se da água que lambe nas pedras e de ervas, leva a vida de um monarca feliz. O seu interior é o lugar onde ele vive verdadeiramente; aí ele é senhor de um reino e habita um castelo. Porque as suas ideias são sensações, tudo o que ele imagina é real nesse mundo e o exterior não tem para si qualquer importância. Grenouille não procura nada fora de si porque a paz que encontra no interior permite-lhe reinar, ter prazer e ser feliz. E por isso a sua história lembra-nos que os mundos internos só no exterior se tornam imaginários – e ele sabe que os castelos que fabricamos no nosso interior não precisam de ser trazidos cá para fora para os podermos habitar. Porque Grenouille percorre o caminho inverso: em vez de trazer o seu reino para o exterior, onde tudo se desfaria com o peso da realidade, é ele mesmo que migra para dentro de si, com a confiança de saber que as ilusões íntimas são apenas verdades pertencentes a outros mundos.

  Dá-se então uma catástrofe que obriga Grenouille a deixar o seu paraíso. Através de um sonho, descobre que não tem odor, não consegue cheirar-se a si mesmo. Este episódio é para ele tão terrível que tem de abandonar o seu retiro, pois sabe que não aguentará um outro sonho como aquele ("Er würde sein Leben ändern, und sei es nur deshalb, weil er einen so furchtbaren Traum kein zweites Mal träumen wollte. Er würde das zweite Mal nicht überstehen").
  A experiência traumática pela qual desaparecem o reino, o castelo e seus tesouros, na verdade, deixou tudo isso intacto, atingindo apenas um elemento do seu mundo: ele próprio. Porque Grenouille percebe (ou pressente) que, não tendo odor, não existe. O seu terror é o de descobrir-se um fantasma no reino de odores que criou e do qual se julgava Deus: afinal, mais do que os seus pastos, o seu castelo, os seus criados ou as suas garrafas armazenadas, é ele mesmo o elemento imaginário do seu universo.
  Pode o seu reino continuar a ser verdadeiro quando o rei que o governa não se encontra a si mesmo? Estando o universo dependente do seu criador, ele provavelmente desmoronar-se-ia assim que o demiurgo desaparecesse. O buraco que Grenouille descobre em si próprio engoliria então toda a vida daquele mundo interno. Mas Grenouille não criou verdadeiramente o reino que habitava. Porque todos os odores que ele convocava nas suas sessões foram encontrados fora de si, trazidos da realidade que ele quis desprezar. Grenouille é amo, rei, senhor no seu mundo. Mas esse mundo não é seu, pelo menos não na medida em que ele não o inventou do nada. Será Grenouille verdadeiramente um sábio estóico? Durante sete anos, tudo o que ele tinha e de que precisava trazia consigo, com desprezo pelo que o mundo lhe podia oferecer. Mas isto só pôde ser assim depois de ele ter trazido para dentro de si tudo o que conseguiu retirar ao mundo lá fora. Se Grenouille, em suma, não precisa do mundo exterior, por se bastar com o que traz dentro de si, isto só é possível na medida em que o seu mundo interno é afinal o mundo lá fora trazido para o seu interior.
  O mundo exterior não depende de Grenouille para ser verdadeiro. O interior sim. Porque afinal o seu reino só existiu enquanto ele o habitou. Um rei que dá vida ao seu reino: eis a grande dádiva que ele pode conceder ao seu universo pessoal. Ele não criou os odores que reproduzia incessantemente na sua memória. Mas trouxe-os para dentro de si e deu-lhes a vida a que eles tinham direito, a única que um perfume pode chegar a ter: a vida através da respiração de quem os recebe. Escapando a um mundo que não só não dependia de si para existir como o recusava e negava, Grenouille refugiou-se num outro mundo que, esse sim, só existia porque Grenouille o via e o respirava. Este outro mundo vai desaparecer quando ele partir, porque existia apenas para ele. Mas ele tem de partir, por perceber que não pôde afinal cumprir o seu desiderato: conseguiu um mundo que só existia porque ele lhe dava vida; mas não um mundo que lhe desse vida a ele.

  Mais tarde, já após ser condenado à morte e espancado pelo guardas, perguntam a Grenouille se ele precisa de algo, ao que ele responde não precisar de nada, explicando o narrador que ele já levava consigo tudo o que precisava.

  Podemos perceber agora melhor a ironia desta passagem. Mais uma vez ele parece o sábio estóico e este momento, aliás, lembra o de Bias à saída da sua cidade-natal. Só que Grenouille leva desta vez consigo um bem material: o frasco do seu precioso perfume.
  Eis algo que Grenouille tem de segurar na mão para não perder. Ora, a sabedoria estóica ensina-nos, no fundo, que tudo aquilo que é meu e de que verdadeiramente preciso é sempre algo que não tenho de agarrar, porque levo sempre comigo. As mãos só seguram aquilo que se pode perder e isso, por definição, é algo que não chega a pertencer-nos nunca. Eis então a tragédia de Grenouille: o perfume que leva na mão, o seu perfume, é precisamente o odor que ele não encontra em si e precisa de apanhar lá fora, no mundo que o negou e que ele pensou poder rejeitar. Ao procurar um sopro exterior, ele já se sabe condenado à partida, porque o espírito é sempre algo que tem de nascer a partir de dentro, de modo a poder sustentar o corpo.

  Conhecedor da verdade dos mundos internos e ciente de que os perfumes, como as imagens, podem sempre nascer de novo em recordações, Grenouille falhou apenas em conseguir encontrar no mundo o único elemento que faltava no seu reino maravilhoso: ele mesmo.