E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

terça-feira, 22 de novembro de 2016

O rei fantasma

  No livro Das Parfum (Patrick Süskind), conta-se como Grenouille possuía a habilidade de, por um lado, memorizar tudo o que cheirava, e, por outro, reproduzir através das suas recordações todos os perfumes que trazia guardados na memória.

  Hume apresenta como generalizada a opinião de que há uma diferença marcada entre uma sensação e a recordação dessa sensação, sendo esta necessariamente inferior àquela: “Every one will readily allow, that there is a considerable difference between the perceptions of the mind, when a man feels the pain of excessive heat, or the pleasure of moderate warmth, and when he afterwards recalls to his memory this sensation, or anticipates it by his imagination. These faculties may mimic or copy the perceptions of the senses; but they never can entirely reach the force and vivacity of the original sentiment. (...) The most lively thought is still inferior to the dullest sensation.” (David Hume, An Enquiry concerning Human Understanding).
  O caso de Grenouille parece contrariar esta regra, pois a vivência das suas recordações é para ele tão intensa quanto a impressão original, i. e., nele a ideia não é inferior à sensação – o que significa que, no fim de contas, nele a ideia nunca deixa de ser sensação. É graças a esta particularidade que Grenouille pode retirar-se para dentro de si próprio durante sete anos, escondendo-se numa pequena gruta e vivendo apenas da reprodução mental das sensações olfactivas acumuladas ao longo da vida. Ele é afinal como o sábio estóico, pois basta-se a si mesmo: dispensa o mundo, as suas imagens e os seus perfumes. Não precisa de ir procurá-los lá fora, à realidade das coisas; encontra-as na verdade dos seus pensamentos. Por isso ele poderia dizer, como Bias diante dos persas, que, não tendo quaisquer posses ou amigos, tem no entanto tudo o que precisa, e tudo o que tem e de que precisa traz consigo.

  Durante sete anos, Grenouille, criatura sem bens de qualquer ordem, alimentando-se da água que lambe nas pedras e de ervas, leva a vida de um monarca feliz. O seu interior é o lugar onde ele vive verdadeiramente; aí ele é senhor de um reino e habita um castelo. Porque as suas ideias são sensações, tudo o que ele imagina é real nesse mundo e o exterior não tem para si qualquer importância. Grenouille não procura nada fora de si porque a paz que encontra no interior permite-lhe reinar, ter prazer e ser feliz. E por isso a sua história lembra-nos que os mundos internos só no exterior se tornam imaginários – e ele sabe que os castelos que fabricamos no nosso interior não precisam de ser trazidos cá para fora para os podermos habitar. Porque Grenouille percorre o caminho inverso: em vez de trazer o seu reino para o exterior, onde tudo se desfaria com o peso da realidade, é ele mesmo que migra para dentro de si, com a confiança de saber que as ilusões íntimas são apenas verdades pertencentes a outros mundos.

  Dá-se então uma catástrofe que obriga Grenouille a deixar o seu paraíso. Através de um sonho, descobre que não tem odor, não consegue cheirar-se a si mesmo. Este episódio é para ele tão terrível que tem de abandonar o seu retiro, pois sabe que não aguentará um outro sonho como aquele ("Er würde sein Leben ändern, und sei es nur deshalb, weil er einen so furchtbaren Traum kein zweites Mal träumen wollte. Er würde das zweite Mal nicht überstehen").
  A experiência traumática pela qual desaparecem o reino, o castelo e seus tesouros, na verdade, deixou tudo isso intacto, atingindo apenas um elemento do seu mundo: ele próprio. Porque Grenouille percebe (ou pressente) que, não tendo odor, não existe. O seu terror é o de descobrir-se um fantasma no reino de odores que criou e do qual se julgava Deus: afinal, mais do que os seus pastos, o seu castelo, os seus criados ou as suas garrafas armazenadas, é ele mesmo o elemento imaginário do seu universo.
  Pode o seu reino continuar a ser verdadeiro quando o rei que o governa não se encontra a si mesmo? Estando o universo dependente do seu criador, ele provavelmente desmoronar-se-ia assim que o demiurgo desaparecesse. O buraco que Grenouille descobre em si próprio engoliria então toda a vida daquele mundo interno. Mas Grenouille não criou verdadeiramente o reino que habitava. Porque todos os odores que ele convocava nas suas sessões foram encontrados fora de si, trazidos da realidade que ele quis desprezar. Grenouille é amo, rei, senhor no seu mundo. Mas esse mundo não é seu, pelo menos não na medida em que ele não o inventou do nada. Será Grenouille verdadeiramente um sábio estóico? Durante sete anos, tudo o que ele tinha e de que precisava trazia consigo, com desprezo pelo que o mundo lhe podia oferecer. Mas isto só pôde ser assim depois de ele ter trazido para dentro de si tudo o que conseguiu retirar ao mundo lá fora. Se Grenouille, em suma, não precisa do mundo exterior, por se bastar com o que traz dentro de si, isto só é possível na medida em que o seu mundo interno é afinal o mundo lá fora trazido para o seu interior.
  O mundo exterior não depende de Grenouille para ser verdadeiro. O interior sim. Porque afinal o seu reino só existiu enquanto ele o habitou. Um rei que dá vida ao seu reino: eis a grande dádiva que ele pode conceder ao seu universo pessoal. Ele não criou os odores que reproduzia incessantemente na sua memória. Mas trouxe-os para dentro de si e deu-lhes a vida a que eles tinham direito, a única que um perfume pode chegar a ter: a vida através da respiração de quem os recebe. Escapando a um mundo que não só não dependia de si para existir como o recusava e negava, Grenouille refugiou-se num outro mundo que, esse sim, só existia porque Grenouille o via e o respirava. Este outro mundo vai desaparecer quando ele partir, porque existia apenas para ele. Mas ele tem de partir, por perceber que não pôde afinal cumprir o seu desiderato: conseguiu um mundo que só existia porque ele lhe dava vida; mas não um mundo que lhe desse vida a ele.

  Mais tarde, já após ser condenado à morte e espancado pelo guardas, perguntam a Grenouille se ele precisa de algo, ao que ele responde não precisar de nada, explicando o narrador que ele já levava consigo tudo o que precisava.

  Podemos perceber agora melhor a ironia desta passagem. Mais uma vez ele parece o sábio estóico e este momento, aliás, lembra o de Bias à saída da sua cidade-natal. Só que Grenouille leva desta vez consigo um bem material: o frasco do seu precioso perfume.
  Eis algo que Grenouille tem de segurar na mão para não perder. Ora, a sabedoria estóica ensina-nos, no fundo, que tudo aquilo que é meu e de que verdadeiramente preciso é sempre algo que não tenho de agarrar, porque levo sempre comigo. As mãos só seguram aquilo que se pode perder e isso, por definição, é algo que não chega a pertencer-nos nunca. Eis então a tragédia de Grenouille: o perfume que leva na mão, o seu perfume, é precisamente o odor que ele não encontra em si e precisa de apanhar lá fora, no mundo que o negou e que ele pensou poder rejeitar. Ao procurar um sopro exterior, ele já se sabe condenado à partida, porque o espírito é sempre algo que tem de nascer a partir de dentro, de modo a poder sustentar o corpo.

  Conhecedor da verdade dos mundos internos e ciente de que os perfumes, como as imagens, podem sempre nascer de novo em recordações, Grenouille falhou apenas em conseguir encontrar no mundo o único elemento que faltava no seu reino maravilhoso: ele mesmo.

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