E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

O burro feliz

  No livro Esaú e Jacó, de Machado de Assis, o Conselheiro Aires vê a dada altura um homem bater no seu burro, que teima em não querer andar. Olhando o burro nos olhos, Aires descobre neles uma “expressão profunda de ironia e paciência” e imagina um monólogo (o “monólogo do burro”). No fim desse monólogo, o burro diria ao homem: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”.

  A posição do burro lembra a do cão atrelado a uma carroça das fábulas estóicas. A atitude do cão poderia ser a de resistir à trela que o puxava, sem por isso conseguir evitar ser arrastado, ou seguir pelo caminho a que estava condenado, poupando-se ao estrangulamento.
  A preferência dos estóicos por esta última hipótese parece indiciar que a resistência do burro que intriga o Conselheiro Aires seria por eles condenada. Merecerá ela verdadeiramente esta condenação? Revelará a sua postura apenas teimosia sem sentido e a estupidez de não saber aceitar a adversidade?
  A teimosia do burro parece inútil, já que ele, mais tarde ou mais cedo, terá mesmo de seguir o caminho que o homem lhe impõe. A resignação do cão que se abandona ao percurso da carroça aparece então eivada da sabedoria consciente de quem sabe aceitar o seu destino. A fatalidade domina os trajectos de um e outro, mas o cão é maior que o seu destino, porque ao aceitá-lo com a consciência daquilo a que está reduzido é capaz de o desprezar: todo o destino pode ser superado pelo desprezo (“Il n'est pas de destin qui ne se surmonte par le mépris”: Camus, Le Mythe de Sisyphe). Sábio como Sócrates, ele não se rebela nem teima contra a inevitabilidade, encontrando um lugar de paz interior em não se deixar afectar por aquilo que não pode mudar. Ele é o melhor seguidor do conselho com que Sócrates encerra o diálogo com Críton: "sigamos este caminho, já que é aquele que a divindade nos indica".
  É esta nota, todavia, que nos dá uma primeira pista para percebermos que talvez não devamos subestimar com tanta ligeireza a atitude do burro. Porque o seu monólogo, afinal, é a maior prova de que ele tem precisamente aquela consciência que torna superior a posição do cão sábio. Com efeito, é ele mesmo que reconhece ao dono o domínio deste. E é precisamente graças a este passo que ele pode dizer, com razão, que esse domínio não lhe serve de muito. Se não estivesse consciente da sua subjugação, morreria subjugado. Mas está e resiste ainda assim. Porque o faz? Pelo mesmo motivo pelo qual Sísifo insiste em ir buscar a sua pedra ao fundo da montanha para onde ela rolou mais uma vez. Sísifo sabe que é inútil tentar levar a pedra ao topo, porque ela há-de voltar a cair. Mas insiste. E se temos de imaginar Sísifo feliz, como recomendou Camus, a sua felicidade talvez não possa ser encontrada enquanto imaginarmos que ele é simplesmente obrigado a empurrar uma pedra uma e outra vez para a ver depois cair de volta ao princípio; descobriremos essa felicidade atentando antes em que é o próprio Sísifo que, livre, como o burro, para teimar, insiste em empurrar de novo. Não perceberemos a sua alegria nem a sua liberdade se insistirmos em pensar que de nada serve levar o pedregulho ao topo se este vai cair uma vez mais; porque assim falhamos em ver que, se isto acontece, é porque não há, de facto, sentido nenhum para o gesto repetido de insistência a não ser o que mora e se esgota no próprio gesto. A tragédia de Sísifo é a de um retorno frustrado à base da montanha. A sua felicidade, porém, é a de uma subida bem sucedida. A única prova deste sucesso é que ele nunca poderia descer de volta se não tivesse chegado ao topo; isto basta, porque a subida é afinal o único objectivo de si mesma.
  Também Sísifo pode rir-se da divindade que, uma vez chegada a pedra ao cume, a empurra de volta, obrigando-o a ir buscá-la novamente. Porque também ele pode dizer: “o teu domínio não vale muito, uma vez que me não tiras a liberdade de teimar”. É esta vontade indomável, consciente de ser inútil, sem esperança de qualquer sucesso e por isso mesmo vitoriosa, que o burro exibe nos seus olhos irónicos e pacientes. E talvez possamos assim lembrar o Conselheiro Aires de que, ao notar a "expressão de ironia e paciência" naqueles olhos, é também preciso imaginar que aquele burro absurdamente teimoso é feliz.

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