Scottie apaixonou-se por Madeleine, mas quem era ela? Não era certamente a mulher de Gavin, que Scottie não chegou sequer a conhecer. Não também Judy, pois não era Judy que Scottie desejava – como é comprovado, aliás, pelo facto de a ter querido transformar noutra mulher, que não reconhecia em Judy completamente. Scottie apaixonou-se por alguém que tanto a mulher de Gavin como Judy eram, em certa medida, e não eram, numa outra.
A mulher de Gavin dá nome e uma referência identitária àquela pessoa, mas não existe para Scottie, pelo que ela não interessa verdadeiramente ao nosso propósito.
Já Judy identifica-se com Madeleine da única maneira que nos podemos identificar perante os outros recorrendo a uma identidade que não é nossa: utilizando-a como máscara. Judy mascara-se de Madeleine e assim nos surge uma primeira hipótese de resposta: Madeleine, a mulher amada, é uma máscara – a máscara usada por Judy.
A relação entre Judy e a sua máscara parece traduzir-se numa dependência que caminha nos dois sentidos. Em primeiro lugar, não há dúvida de que Madeleine não existiria se Judy não lhe tivesse dado vida. A mulher por quem Scottie se apaixona é uma criação (ou interpretação) de Judy. Mas nesta história, vendo bem, a própria Judy só existe quando coloca a máscara de Madeleine, ou por referência a ela. Judy apenas existe, primeiro, como a mulher que se parece com, e pode mesmo ser Madeleine; depois, como a mulher que era de facto Madeleine disfarçada. Não admira assim que, depois de desmascarada, Judy morra: agora que a máscara que lhe dava vida caiu, Judy não pode continuar a viver. E é importante perceber que isto acontece depois de Scottie a descobrir: com efeito, a máscara foi criada para os olhos deste, pelo que quando ele identifica Judy com a mulher que conheceu, a máscara cai e Judy já não se pode esconder. Não funcionando a máscara aos olhos daquele para quem nasceu, ela deixa de funcionar por completo, pois uma máscara carece dos olhos de um espectador para viver. E sem se poder esconder atrás da máscara, Judy morre.
Significa isto que Judy só poderia viver com outra identidade que não a sua, sendo quem não era? De certo modo, é isto que acontece, mas não estamos necessariamente autorizados a pensar que ela é uma pessoa falsa ou mentirosa em virtude disso.
Em bom rigor, o que Judy faz com Scottie é uma mera instância do que as pessoas fazem em geral: apresentar-se com máscaras diante dos outros. Especial é apenas a relação de identificação que ela tem com a sua máscara: identificando-se com esta, Judy não existe atrás dela – e por isso desaparece quando a máscara cai. Vivemos com a crença de que poderíamos sobreviver despidos das nossas máscaras, mas o caso de Judy é uma comprovação da irrealidade disto. A falsa Judy, afinal, não é vítima do seu engano, mas sim da sua verdade: precisamente porque nada esconde atrás da sua máscara, não pode viver sem ela. Identificando-se com a máscara que usa, Judy é demasiado verdadeira para os olhos dos seus espectadores, sempre prontos a suspeitar a existência possível de alguém por detrás do rosto que lhes é exibido.
Hitchcock tinha um apreço especial pela cena em que Judy aparece mais uma vez perante Scottie disfarçada de Madeleine. Referindo-se a esta como o objecto das fantasias sexuais de Scottie, dizia ele que o momento em que Judy aparece vestida por completo de Madeleine é aquele em que ela finalmente aparece simbolicamente despida diante do amante. Ora, este vestir que é simbolicamente um despir oferece afinal a imagem perfeita do que é para Judy pôr a sua máscara: exibir quem ela é verdadeiramente.
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