E não era com as próprias bocas que riam, mas com outras.

Odisseia, canto XX

domingo, 29 de janeiro de 2017

O infinito possível

  No conto "Desilusão" ("Enttäuschung"), de Thomas Mann, o narrador reproduz o discurso que ouviu a um desconhecido certa vez e que o deixou perturbado. Conta ele que cresceu na casa de um reverendo, rodeado de limpeza e retórica empolada. Grandes palavras como "bem" e "mal", "belo" e "feio" prometiam-lhe grandes experiências, mas ao longo da vida, quando estas chegaram, sentiu-se sempre desiludido.

  O que esperava este desconhecido? Que queria ele encontrar e não conseguiu?
  A sua reacção de desilusão é sempre a pergunta: "então é isto?", ficando subentendido que está a perguntar "é (apenas) isto (e nada mais)?". Cada uma das experiências é tornada um "isto" que desilude. Sucedendo o mesmo em todas as ocasiões, surge a hipótese de que o que desilude não é algo específico a cada uma das experiências, mas comum a todas a elas. E que não é cada um dos "istos" a possuir algo de único que os outros não têm, mas o próprio facto de serem "istos" que explica a desilusão em todas as ocasiões.
  Só na medida em que é um ser-para-si, como explica Sartre (L'être et le néant), pode o sujeito aperceber-se de alguma coisa e debruçar-se sobre ela. Tomando consciência de si como não sendo aquela coisa em concreto, nem se resumindo àquela experiência específica, o ser-para-si identifica o objecto em análise e destaca-o, separa-o dos outros. E assim o objecto torna-se um "isto".
  Este destacamento do objecto passa necessariamente por lhe desenhar os contornos. Só na medida em que lhe vê os limites consegue o sujeito olhar o objecto e apreendê-lo. Conhecer implica assim, para o sujeito, transcender esse objecto. O "isto" surge quando é olhado a partir de um ponto de vista exterior de quem o consegue abranger na sua inteireza, percebendo por aí a sua finitude.
  O homem estranho desilude-se precisamente com a possibilidade de transcendência. O objecto nunca esgota o seu campo de visão, a experiência termina sempre cedo demais, quando ele ainda está disponível para continuar a viver. O que o desconhecido queria era precisamente uma experiência que o esgotasse, um objecto cujos limites ele não fosse capaz de alcançar, muito menos ultrapassar. No fim de contas, ele pretendia apenas aquilo que as palavras lhe prometeram. Porque o poço de cada palavra é sem fundo: por mais que espreitemos, por mais que acreditemos ter encontrado o fim, nunca o conseguiremos verdadeiramente, pois ele não está lá para ser encontrado. Não admira assim, por exemplo, o pedido de Kafka para que a edição da sua "Metamorfose" ("Die Verwandlung") não incluísse qualquer representação do insecto Gregor Samsa. Se o insecto é "irrepresentável", deve-se isso apenas a que desenho nenhum poderá ser feito sem contornos ou fronteiras. As palavras, ao invés, oferecem caminhos que só terminarão quando se cansarem os pés do leitor-ouvinte-caminhante.
  No fundo, o desconhecido desilude-se porque procura nas suas experiências o que só podemos encontrar nas palavras. O seu erro, muito comum, é o de julgar que as palavras, mentirosas, prometem algo que a pobre realidade que descrevem não pode proporcionar. Na verdade, são as experiências que vivemos que surgem como oportunidades para as palavras nascerem. E isso é uma forma de magia: a que constrói algo inesgotável a partir de algo limitado. O erro do desconhecido, em suma, foi o de ignorar que só uma palavra pode ser infinita.

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